Um tour pela garçonnière perdida de Oswald de Andrade

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O pequeno elevador com portas de ferro pantográficas (de fechar manualmente) está quebrado. São só três andares, quase todos vazios – alguns têm apenas equipamentos de combate ao fogo pelos corredores, banners e postêres pelas paredes, uma maca com um boneco de botas de borracha para exercícios de evacuação e um quarto-sala de aula sempre cheio de aprendizes de bombeiros no terceiro andar.

Apesar de uma ou outra baixa típica de atraso na manutenção, o prédio segue impecável ali no meião da Rua Líbero Badaró, no Centro de São Paulo, embora distante da frenética atividade que abrigou entre os anos de 1917 e 1918, na matinê do modernismo paulista. O edifício em questão é importante, protagonizou um dos capítulos mais tristes da vida de Oswald de Andrade (1890-1954), o trágico romance com uma moça de 19 anos apelidada de Deisi (ou Miss Ciclone).

“Bem-vindos a este hospício. Aqui somos todos loucos. Loucos uns pelos outros”, diz o pôster na parede do prédio que hoje abriga um Centro de Formação do Corpo de Bombeiros, homens que se dedicam a apagar o fogo. E foi justamente num quartinho de 40 m2 desse edifício que escritores e intelectuais se dedicaram um dia a acender o seu fogo, gente como Oswald de Andrade, Monteiro Lobato (que um dia esqueceu ali sobre uma cama os originais de seu romance Urupês, publicado em 1918), Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Vicente Rao, Ignácio da Costa Ferreira, Sarti Prado, Pedro Rodrigues de Almeida. Um apartamento no segundo andar, alugado por Oswald e decorado com uma vitrola, discos de Arthur Rubinstein e Heitor Villa-Lobos, um sofá com almofadas verdes, andorinhas de louça, móveis de vime, um bidê cheio de colônias francesas e uma mesinha de chá abrigou os encontros amorosos furtivos destes e de outros intelectuais (notem: todos homens) da pauliceia desvairada. Todos usavam codinomes (ou estes lhes eram pespegados). Oswald era Miramar ou Garoa.

Na época, esses locais tinham certa fleuma (os motéis só chegaram ao Brasil em 1968) e eram chamados de garçonnières – em 1987, o diário que Oswald e os colegas escreveram de sua experiência ali, O Perfeito Cozinheiro das Almas Desse Mundo, foi editado pela Ex Libris em uma edição luxuosa, fac-similar, com preciosas caricaturas e prefácio de Haroldo de Campos. Na época, para escrever uma resenha do livro, e de posse do endereço que se divulgara do local, o número 67, rodei lá pela Líbero Badaró para tentar localizar a garçonnière de Oswald, mas não havia mais aquele número. Pareceu-me que tinha sido demolido.

Durante mais de um século, o “Covil da rua Libero Badaró” ficou incógnito ali no centro (embora já seja declarado patrimônio histórico desde 1992), até que, em 2016, o publicitário, produtor e escritor José Roberto Walker, pesquisando para o livro Neve na manhã de São Paulo (Companhia das Letras, 2017, 368 páginas) o localizou. Fica atualmente no número 452. Walker estava interessado em contar o romance trágico entre Oswald e Deisi, a Miss Ciclone e achou após descobrir que a numeração da rua já havia mudado 4 vezes. Mas, desde que se revelou a existência do local, nada aconteceu ao edifício, que o escritor disse, em entrevista à época na Folha de S.Paulo, que considerava fundamental ser preservado por conter parte da história da evolução do modernismo.

A estudante Deisi, cujo nome real era Maria de Lourdes Castro de Andrade, foi o amor de quase todos eles, mas amava profundamente o jornalista, poeta, escritor (autor de Serafim Ponte Grande e Memórias Sentimentais de João Miramar) e agitador cultural Oswald. Quando ele a conhece, a descreve como “uma garota esquelética e dramática com uma mecha de cabelo na testa” que uma prima traz para um almoço em sua casa na Rua Augusta. Nesse instante, Oswald a convida a amá-lo. Ela responde: “Sim, mas sem premeditação. Quando nos encontrarmos”.

Deisi era um espírito livre demais para o corporativismo masculino misógino e machista da turma de Oswald. “Ela sozinha basta para encher um ambiente intelectual de homens do quanto ele precisa do feminino para sua alegria e para seu encanto. Ela é multiforme e variável na sua interessante unidade de mulher moderna”, escreveu João de Barros (codinome de Pedro Rodrigues de Almeida), confidente de Oswald.

Oswald se apaixona por ela, mas passa a alimentar, concomitantemente, um ciúme doentio. Quando estavam juntos, a garçonnière era exclusiva, penduravam uma bandeira vermelha na porta para que soubessem. Mas sua convicção de que “todos amavam a Ciclone” o impulsiona ao chauvinismo. Passa a segui-la, conta que a viu entrar numa pensão de rapazes no Anhangabaú. “Chego a tempo de vê-la galgar, ligeira, o estribo poeirento de um bonde e mergulhar com a lentidão do monstro de ferro, nesse abismo brumoso da várzea que me faz supor, para lá do bastidor de crimes das vielas, a existência de romance em que ela se obstina. Com uma timidez de potache, murmurei-lhe, entre dentes, um bom dia idiota. Ela nem sorriu nem olhou. Partiu. Pela primeira vez, percebi uma coisa séria – que ela me faz falta. Assinado: Mirabismo”, ele escreveu.

Em vez de Miramar, Oswald se casmurrizava progressivamente. “Deisi é visgo puro. Não tenho coragem de romper. Ela também não explica nada, não conta, não se defende. Em junho, ela me diz que está grávida. De quem? Não pergunto, ela não fala. Concordamos no aborto”.

Durante o aborto, Deisi tem hemorragia e fica muito doente. Os médicos fazem uma cirurgia mal-sucedida e ela é desenganada. Oswald então se casa com ela no leito de morte, tendo como testemunhas Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato e Ignácio da Costa. “Esfacela-se meu sonho”, diz Oswald. “A que encontrei enfim, para ser toda minha, meu ciúme matou”. Deisi foi enterrada vestida de branco no jazigo da família Andrade, na rua 17, número 17, no Cemitério da Consolação, segundo escreveu Mario da Silva Brito.

Ao amigo João de Barros, ele passa a fazer uma pergunta recorrente: “Você, que acompanhou tudo, que sempre esteve junto de nós, acha que eu fui o culpado?”.

Ao final de tudo, é decretado o fechamento da garçonnière da Libero Badaró, e parece que Oswald vai pendurar as chuteiras. Mas não. Ele abre outra garçonnière, dessa vez na Rua Pedro Américo, na Praça da República, local que presencia a ebulição das ideias modernistas com mais intensidade. Essa ainda não fui atrás, quem sabe na semana que vem?

Na foto, à direita, a estudante Deisi, a Miss Ciclone, que amou Oswald aos 19 anos
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