Nos anos 1950, teve início um movimento intenso de regravações do nosso cancioneiro popular devido ao surgimento da nova mídia que substituiu os discos de 78 rpm: o long play (LP). Além de reedições, muitos cantores e compositores de sucesso ainda atuantes voltaram aos estúdios e fizeram novas gravações e relançaram seus antigos sucessos na nova mídia. Vale observar que novas formas de captação de sons deram uma qualidade muito superior aos discos. E o lançamento do LP João Gilberto – Chega de Saudade, no final de 1959, vai muito além disso; traz uma sonoridade impactante, um jeito novo de cantar e, principalmente, de tocar violão. Mais: além de composições novas com harmonias e letras sofisticadas – com destaque para o poeta/diplomata Vinicius de Moraes -, João Gilberto demostrava que sambas do passado entravam na dança de sua revolução musical. Zuza Homem de Mello é brilhante quando define o que acontecia.
O primeiro vinil de João revelou que a nova forma poderia ser instaurada para muito além das quatro canções revolucionárias. João demonstrou que sambas do passado entravam na dança de sua revolução musical. Os dois sambas de Ary Barroso, “Morena Boca de Ouro” e “É Luxo Só”, o de Dorival Caymmi, “Rosa Morena”, e até um clássico de seu ídolo Orlando Silva, “Aos Pés da Cruz”, de Marino Pinto e Zé Gonçalves, também passavam a ser uma coisa nova na concepção de João Gilberto. Era uma outra bossa que nem Ary nem Caymmi nem Orlando sonhavam poder existir. Ficou nítido que a bossa nova, expressão aplicada por Tom Jobim para defini-lo no texto da contracapa, não era um gênero. Era uma forma leve extensível a qualquer canção brasileira. Esse LP de João Gilberto dura 22 minutos e 35 segundos definindo outra marca inédita, a economia, a depuração do supérfluo. Na condução dos arranjos de Antonio Carlos Jobim o guia era o violão de João Gilberto. Espremendo a essência de cada canção, João concentrava a fluidez rítmica e melódica; penetrando na sua construção original, introduzia com Tom uma harmonia de acordes invertidos executados em bloco. Sem perda do caráter brasileiro, aquela música alcançava um contexto universal.
Quando, em 2001, realizei o filme Samba Riachão, a minha intenção foi falar sobre esse tal samba da Bahia. Riachão me pareceu ideal para isso pela sua trajetória. Esse depoimento, abaixo, de Riachão para o filme, sintetiza muito o porquê de eu achar nele o personagem ideal para falar de samba:
Riachão: Pagode é da família do samba. Pagode é uma coisa maravilhosa, não só o nome como as coisas de músico que a turma joga no ar. Maravilha! Pagode é um negócio… Fundo de Quintal! É beleza pura! O meu fundo de quinta! Esse samba gostoso… cavaquinho, pandeiro… Hoje, como você está vendo aí, a Bahia é um bocado de coisa diferente que deixa a gente confuso na sensibilidade do povo se tratando de música. O Rio de Janeiro preza e ama mais o samba do que a própria Bahia. Me perdoe meu povo baiano, eu devo dizer isso. Mas é a dura realidade. O Rio de janeiro ama o samba de uma maneira que quem devia amar tanto assim era a Bahia. Porque na Bahia que nasceu o samba. O samba nasceu na Bahia. Essa que é a dura realidade. Se os baianos começarem a ouvir com cuidado, eles vão ver que eu estou certo. Eu, quando criança, jovenzinho, ficava olhando para o céu, procurando ver qual a minha estrela. Então, tinham estrelas bonitas: tinha uma que era a da madrugada, Estrela Dalva, outra brilhava, outra… até chegar aquela que estava apagando e acendendo. Essa era a que eu mais ficava olhando. Ficava olhando assim… ela apagava, daqui a pouco ela voltava… eu não tirava os olhos do céu, olhando aquilo. Ela apagava, daqui a pouco ela voltava, eu olhando… E eu dizia: Será que aquela é que é minha? Aquela que é minha estrela? Porque as outras tão brilhando constantemente. Aquela, apaga e acende. Mas eu fixava os olhos naquele lugar. Ela tornava a voltar, então, eu achava que aquela que era a minha estrela.
Eu me lembro que eu vi uma palavra assim: “Se o Rio não escrever a Bahia não canta!”. Olha, eu nasci com esse dom de cantar, eu não sei… aquilo… eu vi assim aquelas pequenas palavras e me senti… aquilo me doeu. Não sei por que me doeu. Não sei nem explicar. Me doeu, e eu fui pra casa com aquilo no juízo. O dia todo… o resto da tarde… trabalhei, mas com aquilo. Aí, o Nosso Pai, Jesus Cristo, me mandou o primeiro samba. Que foi, que nós brincamos outro dia, “Deixa o Dia Raiar”: “Eu sei que sou malandro, sei/ conheço o meu proceder/ eu sei que sou malandro, sei/ conheço o meu proceder/ deixa o dia raiar/ deixa o dia raiar/ a nossa turma é boa/ ela é boa/ somente para batucar”.
Eu tinha um desejo enorme de dar a minha contribuição ao cinema brasileiro ao levar pra tela grande uma das muitas histórias do mundo do samba. É um imenso tesouro ainda guardado nos desafiando a todo instante. Sempre achei esquisito nunca se referirem a João Gilberto como um sambista. Agora, com vocês, o sambista João Gilberto! O mesmo acontece em relação Chico Buarque de Hollanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil… O samba nasceu urbano e moderno junto com o rádio e se transformou em cultura de massa, influenciando e sendo influenciado. Esse poder que o samba tem de se renovar constantemente e ser denominado, por exemplo, bossa nova, tropicalismo ou axé music, esse assunto sempre me interessou. No filme, decidi me ater ao samba da Bahia para não me perder na vastidão do samba e seus geniais protagonistas. Eu optei pelo auxílio luxuoso de um pandeiro. E também havia um movimento, entre nós baianos, para quebrar um jejum de 18 anos da Bahia sem produzir longa-metragem. Samba Riachão surgiu disso aí… de influências e misturas, sincretismo e pluralidade. O passado afirma e o presente confirma; o samba surgiu de misturas e continua sendo o resultado de uma constante miscigenação. Quando se tem a oportunidade de conversar com Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, esses bambas, o principal assunto não poderia ser outro senão o próprio samba. Samba Riachão aposta nisso aí, numa narrativa criada a partir de depoimentos de bambas sobre a influência do samba na música deles. Eu entrevistei mais pessoas do que as que estão no filme. Por mais que eu tenha me preparado e me organizado, quando iniciei o processo de captação dos depoimentos/performance, o filme foi se revelando a partir dessa experiência.
Cada uma dessas personalidades me concedeu uma, duas horas de atenção e no final eu tinha um material riquíssimo. O processo de viver um momento intensamente com cada um deles. E ao mesmo tempo lidar com esse material sem apego na hora da montagem. Ficaram muitas pérolas de fora. É inevitável. Nessa hora é vital que o seu principal objetivo seja o seu guia.
Foram muitos momentos, mas eu destacaria o encontro com Dorival Caymmi na casa dele em Copacabana. A sua secretária havia posto uma porção de dificuldades para o nosso encontro. A mais importante: não poderíamos subir com câmeras – quem detinha os direitos de imagem de Dorival Caymmi não permitia… Tudo bem. Quando, finalmente, conseguimos marcar uma hora, para a nossa surpresa foi o próprio Dorival quem abriu a porta de casa e nos recebeu carinhosamente com um abraço: “Meus jovens, como anda a nossa Bahia?”. E aí começamos a conversar, rir de fatos acontecidos, lembrar canções… A conversa fluía muito bem. Num determinado momento, cerca de meia hora depois, ele me perguntou: “Se é um filme que você está fazendo, por que você não está filmando?”. Aí, quando eu tentei explicar ele nem me deixou concluir e já disse: “O equipamento está lá embaixo? Pode mandar subir!”. E me concedeu quase duas horas de entrevista. Quando nos despedíamos, ele carinhosamente falou: “Gostei de você. Me telefone vez em quando”. Aí eu falei assim, nem sei por que: “Mas a gente está indo amanhã pra Bahia”. E ele, de pronto, rebateu: “Pode ligar a cobrar!”. Quando saíamos na calçada em direção à van, olhei pra trás e lá estava Dorival Caymmi na sacada da varanda acenando para nós. Essa cena eu não filmei, mas ela mora na minha cabeça.
Dorival Caymmi (cantando): “Qual é o bicho que não bate com a cabeça?/ é coruja!/ paco, paco, paco, paco, paco!/ é coruja!” – Isso aí é samba! Eu trouxe pra música popular… A minha prestação de serviços dá nisso (cantando): “Dez horas da noite,/ na rua deserta,/ a preta mercando parece um lamento…”, e ao natural: “ihê, abará…” – eu era criança, eu ouvia longe aquela voz, ia chegando perto… “ihê, abará.. Ihê, abará…” – Ismael Silva… Compositor de mão cheia… Wilson Batista… Olhe como é bem urbano (cantando): “Eu tiro o domingo para descansar,/ mas não descansei, que doido fui eu/ regressei do futebol,/ todo queimado de sol,/ o Flamengo perdeu pro Botafogo,/ amanhã vou trabalhar,/ meu patrão é vascaíno/ e de mim vai zombar” – esse era Wilson Baptista. E Ismael Silva… E vem mais outros… Era uma porção deles, todos muito bons. E o samba mandando. – O ambiente musical na Bahia, de profissional não tinha nenhum… Porque não tinha cantor profissional nem no rádio. No rádio era amadorismo.
(Cantando:) “Ó jardineira por que estás tão triste?/ mas o que foi que te aconteceu?/ foi a camélia que caiu do galho,/ deu dois suspiros e depois morreu” – isso é Humberto Porto, meu amigo em Salvador. Viu? Já, assim, chegado ao rádio… amador… No sábado e domingo era dia dele “peruar” a Rádio Sociedade, a Rádio Comercial e a Rádio Clube. Eram apenas três rádios.
Esse tipo de música, que os baianos tiveram a oportunidade de aparecer profissionalmente, foi da tropicália pra cá. Então, vai aparecer uma era profissional de música na Bahia. Quer dizer, e, então, tomou conta do Brasil. E já tinha uma facilidade de comunicação… Viajar… Todo mundo saía pra pegar o Rio de Janeiro. Quem fez o samba mesmo, que moldou, foi o Gilberto Gil com aquele samba que é muito carioca: “Aquele Abraço” é um documento.
O Sucesso? – esse é que é o segredo, você dar o espontâneo… saber como manejar a harmonia, a melodia, sentir o gosto do povo, o que é que o povo quer. As malícias, os dizeres populares, os ditados. Aí o sujeito aprende, joga no samba e dá certo.
Gilberto Gil: Esse condensado, essas pequenas células melódicas, típicas daqui da região, já são ligadas a uma coisa nordestina… Você já percebe um pouco nessa transição entre a beira-mar e o sertão. Quer dizer, é uma coisa ligada a essa cultura musical que se desenvolve nesse eixo liderado por Bahia e Pernambuco. – Ataulfo Alves… Que é o que? É uma extensão já diferenciada, já mais estilizada, talvez, do Ismael Silva, que é quem muda o samba, dá uma cadência diferenciada ao samba, dá um fraseado mais escorrido, mais lento… Dá uma divisão diferente ao samba, com frases longas, pra poder descansar o ritmo por trás da pronúncia do samba, da pronúncia da frase sambística. Há aí um encadeamento enorme, é uma escola longa com vários mestres, vários discípulos que foram se tornando mestres mais adiante. “Aquele Abraço” é um samba estranho. Tá entendendo? Até hoje. Ele nem é um samba clássico, com aquele encadeamento harmônico bachiano, nem mais um samba simples, um samba chulado, daqui do Recôncavo, e já com os componentes da coisa que o Jorge Ben tratava. Quer dizer, já samba-blues. “Aquele Abraço” é um samba-blues. – É misterioso isso. Não se sabe bem. Tem uma coisa, assim, da simplicidade. O povo gosta de ouvir, sentir uma certa identificação com a simplicidade. Às vezes ele ouve um negócio que ele diz assim: “Pô, o cara podia facilitar, mas o cara não facilitou, rapaz! O cara complicou! Esse negócio é bom, mas o cara complicou!”. O povo tem essa sensação… essa consciência…
“Torna a repetir, meu amor! Ai, ai, ai… ” e essas: “O guarda civil não quer/ a roupa no coarador/ Meu Deus onde eu vou coarar?/ Coarar minha roupa…” Riachão cresceu aí. Cresceu nessa coisa como compositor e como intérprete, como grande artista de carnaval –o samba de roda do Recôncavo da Bahia, finalmente, criando um gênero popular no país.
Caetano Veloso: Eu sempre tive, dentro de minha casa, a prática do samba de roda com os amigos, com os vizinhos, com os familiares, com todos os conhecidos… E a ideia de que aquilo era o samba tradicional, do qual o samba que se desenvolveu e que se tornou cultura de massa através do rádio e do disco no Rio de Janeiro, tinha nascido ali, onde eu nasci e daquela forma. “Rosa Morena”, o próprio João Gilberto, muitas vezes, mencionou como sendo o samba que permitiu a ele criar o estilo que veio a ser conhecido como bossa nova, de uma maneira orgânica, harmônica e íntegra. Dorival Caymmi é, sem dúvida nenhuma, não só um dos grandes criadores de samba, como, ao mesmo tempo, alguém que trouxe uma modernização, em termos internacionais, ao samba urbano carioca e uma volta à ligação direta com o samba de roda da Bahia. É o samba que pontua tudo isso aí. Essa história que você tá contando foi toda pontuada pelo samba dessa maneira, mas porque é fatal. A expressão central da música popular brasileira é a forma samba. – A manutenção do reconhecimento do samba, como expressão central da música popular brasileira, permanecia. Quer dizer, o tropicalismo é, sobretudo pra mim, a experiência de “Baby”, que é samba em três, é um samba ternário. Também de “Saudosismo”, que é sobre a bossa nova, que é samba, e feito também em ternário, é uma outra experiência com samba. E é também o movimento de “Enquanto Seu Lobo Não Vem” e “A Voz do Morto”. “A Voz do Morto” é um samba que me foi encomendado pela Aracy de Almeida, que era chamada de “o samba em pessoa”, justamente. Ela dizia: “Esses filhos da puta querem salvar as glórias nacionais. Glórias nacionais aqui! No cu, ó! Colé, glórias nacionais o caralho”. Foi o que ela me pediu: “Eu quero que você faça um samba dizendo isso”. Muito engraçada, muito agressiva, muito malandra, né? Me pediu: “Eu quero que você faça um samba dizendo isso. E depois, porra! Eu já tô farta de ser a voz desse morto!”, se referindo ao Noel Rosa. O morto é o Noel Rosa. A pedido da Aracy de Almeida. “A Voz do Morto”: “Eles querem salvar as glórias nacionais,/ as glórias nacionais, coitados/ ninguém me salva, ninguém me engana,/ eu sou alegre, eu sou contente, eu sou cigana/ eu sou terrível, eu sou o samba/ a voz do morto, o cais do porto, expede um torto/ a vez do louco, a paz no mundo/ na glória”. – Ah, porque as letras são muito primárias, as meninas rebolam, botam a bunda, e não sei o quê. A mulher é objeto. Fica uma porção de bobagens que não me interessa. Quando eu tô vendo uma coisa maravilhosa acontecendo, que é aquele samba surgir. Não é só o cuzinho das louras, é a cozinha do ritmo.
Tom Zé (cantando): “Na sexta-feira, meio-dia,/ mochila descarrilhou/ as classes não teve nada/ São João foi quem ajudou/ Dona Chimi não tem o que fazer/ matar um boi pra os vadio comer/ ai, amor!” – Pra mim tudo eram instituições… Por exemplo, eu nasci e vi a casa de correio de Irará. Pra mim aquela casa sempre existiu, né? Então, o samba do Rio e o samba de Irará, eu nasci e encontrei eles. Então, pra mim, aquilo era uma coisa que vinha com o planeta Terra. Eu não pensava que aquilo era diferente nem nada. Então, o samba do Rio é aquilo e tal. Eu nunca tive um preocupação crítica. Mas eu me lembro que aquele compositor mineiro: “Quem sabe a quentura da panela/ é a colher, é a colher…”, como é o nome dele? Ataulfo Alves… quando ele compôs um tipo de samba diferente, ele me deu uma capacidade crítica. Porque o samba dele era maneiro… é um estilo dele… as pastoras… As moças cantavam com ele, ele botava um coro e ficou muito com esse título. Ele me deu senso crítico, porque ele fez um samba um pouco diferente do samba carioca, ele era mineiro, mas muito adaptado ao Rio, então eu pude perceber que as coisas poderiam ser, ligeiramente, diferentes.
Seu Isac, que era marceneiro, defronte da minha casa, um homem sério e sisudo. Porque, naquele tempo, os homens eram todos sérios e sisudos, não tinha um homem brincalhão. Principalmente com criança… Criança não fazia… ninguém falava com criança, criança só ficava assistindo, na melhor das hipóteses. Ou trabalhando, ajudando a família. Criança não era consumidor de brinquedo naquele tempo. Era um investimento da família e a gente tinha que responder imediatamente. Então eu via seu Isac. Seu Isac era um marceneiro sério, pai de oito filhos e tal. No dia de carnaval, tava ele lá na rua tocando, tocando aquelas marchinhas descaradas naquele clarinete, ele era clarinetista. E eu dizia: “Mas seu Isac toca clarinete!”. E no dia do bumba-meu-boi ele vestia aquela máscara do bumba-meu-boi e tava lá ele brincando, dizendo aquelas malandragens. Eu ficava admirado de como é que aquele homem podia se metamorfosear desse jeito. Então, eu pensava que pra poder eu ser cantor, pra eu poder cantar, pra eu dar vazão a essa veia satírica que eu tinha, eu tinha que buscar o homem mítico que eu tinha, talvez, plantado lá no… Como é que chama essa parte do cérebro aqui? Na parte mais antiga do cérebro. Mas eu tive que construir isso mesmo – tem o córtex e o hipotálamo, era mais do hipotálamo – eu tive que construir isso com as duas coisas: com o hipotálamo e com a capacidade de ir me adaptando… de ir fazendo texto que correspondesse ao folclore e tal… Eu tenho isso parecido com o Riachão. Você vê que é uma pessoa muito simpática. Esses rapazes aqui da Bahia, Gil, Caetano, todos meninos, como a gente fala, amam ele. Esse tipo de música que é “mordente”, que bate na veia. Às vezes, é mais satírico do que os ditos satíricos. É assim que se fala? Satírico mesmo, né? Às vezes, ele vai mais na veia da contradição da sociedade do que essas pessoas que querem fazer logo um texto claramente satírico.
Roberto Mendes: O importante da chula não é maneira de tocar, mas sim a adaptação dessas notas à clave, já existente aqui, criada pelo negro. A música baiana da chula, o samba de roda, é apenas a quarta festa, mas a chula é um comportamento, a chula é a necessidade de se criar versos pra driblar a dor da saudade. Entendeu mais ou menos? Não é tão diferente da comida, não. Ambas surgiram da miséria, a comida surgiu do sobejo, do resto de tudo. A feijoada… Imagine só, comer um pé de porco, orelha de porco. Olhe pra uma feijoada, você corre! Não é agradável, não, mas ficou bonita pelo sabor. E o prato do samba… Olhe, o prato é redondo, o prato e a faca… Ligado ao comportamento da chula, aquela coisa cíclica, manutenção de Equilique, essa coisa da manutenção do ensemble, aquela coisa de não tirar o pé do chão e o movimento sedutor da bunda de ir e vir daqui pra ali, um pêndulo, de uma maneira até confortável, definindo o que era o ensemble: um giro em torno do umbigo. E a macemba, a umbigada. Só as mulheres sambavam nessa época, uma maneira de seduzir, uma iniciação ao sexo também. As meninas sambavam… Agora, uma coisa era comum nesse ponto: tanto a mais velha como a nova, a menina e a senhora, era o mesmo processo de sedução. Isso que é legal entendendo a chula. E repare que todas as letras de samba de roda, que traduz a chula, ou melhor, esse comportamento traduzido em canção, que virou o samba de roda por manifestação. Ela é uma coisa engraçada porque ficou assim: eram versos tirados por parelhas de sambistas, de chuleiros, para, também, de outra forma, seduzir a mulher. “Quem entrou na roda foi uma mulher.” Às vezes, tinham chulas criadas até com um pouco de desaforo, um desafio: “Lé lé meu amor lé lé, no cabo da minha enxada não conheço coroné”. Sabe, sentido dúbio né… Também era uma valorização do trabalho, né?
Eu, antes, tinha gravado com Maria Bethânia “Filosofia Pura”, em 1983, que era uma chula. Aí, fui gravar com Bethânia, no outro ano, uma canção chamada “Beira do Mar”. A vaidade do santoamarense faz uma canção exuberante. Veja só, eu já comecei errado! Eu devia ter começado normalmente como as pessoas fazem… A vaidade me empurrou, eu gravei no início o que eu deveria ter gravado no final, eu devia ter gravado agora, não quando eu tava começando a gravar. Bethânia exige muito, tinha que ter qualidade. Então, eu tive que me esmerar pra fazer uma canção que chamasse a atenção de todos. Foi nessa época que eu conheci o Nilton Assunção, conheci o Toninho Horta, ficamos próximos e ele não acertava tocar esse tipo de canção. Primeiro pela idéia rebelde de compor. Era uma afinação estranha, porque tocava isso como se fosse um bissanji, um instrumento de cabaça, feito de coité, toca com aquelas palhetas ali… Aí eu fiz isso… Desafinei o violão…
Jorge Alfredo: Botou a prima e o bordão em ré, foi?
Roberto Mendes: É, em ré. Tudo em Ré. E subindo e descendo… O violão é um instrumento que você sabe, né?: descendo em intervalo de quarta e subindo em intervalo de quinta. Então, era complicado fazer no violão. Então, fomos tentando até que conseguimos. Gravamos assim… Muitos anos depois, fui fazer um show na Dinamarca, cheguei lá e conheci um cara, um africano de Mali, com um instrumento chamado cora. Cheguei lá e o cara tava tocando algo similar à minha música e eu não sabia que aquele arpejo podia ser tirado no violão, e que era o comportamento do “Baião”. E Elomar tinha me dito, no Rio, que Luiz Gonzaga tinha dito pra ele que “Baião”, na verdade, é essa Bahia grande que é uma clave de chula. Eu associei isso e disse: “Não é possível!”. Voltei a afinar o violão normal e estudei o tema da corda pra ver se eu realizava. Voltei a afinar o violão normal, porque era quase impossível tocar em ré. Aí, você vê como é que fica….
Jorge Alfredo: Essa é a clave da chula, né? Tem um fole aí, né?
Roberto Mendes: É. Tem tudo. Eu regravei esse disco de Luiz Brasil, porque, na realidade, foi Elomar quem me falou isso que Gonzaga tinha falado. E como Gonzaga e Caymmi são duas matrizes brasileiras, os dois pilares da música popular brasileira que eu mais admiro, e que eu copio. Eu costumo dizer o seguinte: “Existem duas maneiras de fazer música no Brasil: uma é copiando bem Gonzaga e Caymmi, a outra é copiando mal Gonzaga e Caymmi”. Eu copio muito os dois. E parece que os dois vêm de toda uma coisa que vem da chula. Da mesma clave. Todos os dois exprimem no mesmo tempo essa função… Eu me lembro de quando Gil fez o “Expresso 2222”, ele sai dessa clave do “Expresso” e cai no “Baião”. Tem várias chulas que podem ser tocadas assim. Gil está muito próximo da chula. Gil está muito próximo disso aqui. Gonzaga… Você sabe que eu nunca consegui tocar Gonzaga, se não fosse do jeito mais… Olha, Gonzaga pra mim foi a canção… Eu vi fazer a canção a partir de Gonzaga… Gonzaga, talvez, ritmicamente, seja a pessoa mais completa no Brasil, a pessoa mais terra, mais chão. Gonzaga era uma pessoa especial. Gonzaga não dá pra tocar como ele tocava. Era ele. Eu não sou disciplinado como meu irmão pra tocar a música de outros. Eles acreditam numa melodia real. A minha melodia real é a do momento. Se eu estou feliz a melodia real é feliz. Se eu não tô bem, a melodia real é triste. A melodia é real no momento em que se encontra. Com a melodia real, arranjo, tudo você pode fazer, harmonia você pode criar. Mas melodia, não. Melodia é um sentimento do momento, é a razão do momento. Eu não consigo tocar música no mesmo dia, na mesma hora… Eu não consigo nem ensaiar. Eu preciso de disciplina. Ter sempre meu filho por perto: “Não, meu pai! Não foi assim, não!”. Eu vou cuidando, mas é bom que me chamem atenção pra isso, porque eu gosto mesmo é de compor. E eu terminei virando artista por causa disso. O que me preocupou mais foi o zelo pela minha cultura, pela minha região, pelo meu lugar. Eu não tive essa coragem que por exemplo Caetano teve, de sair. Eu não sairia, se fosse necessário eu ter de sair. Eu acho bom ele ter saído pra me dar essa possibilidade de estar hoje mais fiel à minha aldeia. A minha fidelidade muito vai da gratidão por ele ter saído. Eu fiz música a vida inteira pra mim mesmo, pra resolver uma questão muito pessoal. Nunca bebi, nunca fumei, nunca fiz festa. Muito raramente viajo. Moro onde quero morar, nasci onde queria ter nascido, e quero morrer na minha cidade. Então, música pra mim não tem essa coisa… Viajo pra tocar fora, vivo bem em qualquer lugar do muito, porque a razão exige que você conviva bem com as pessoas, mas feliz, sem o menor esforço. Então, música, pra mim, é uma coisa muito pessoal. Quando gravei “Minha História”, que é uma idéia de toré, eu via as taquaras, via o toré de garanhões de Águas Belas – Zé das Flautas, muitos anos atrás, tinha me falado pra eu observar isso -, via aquele movimento lento, muito repetitivo, e eu via muita singularidade na dor. Mesmo quando era pra realização do prazer, mas tem muita dor. O prazer tem isso. Por trás do prazer, há uma coisa de desejo, sempre tem uma dor. É a solução pra sanar. O prazer é engraçado: ele sempre resolve a dor. Não existe prazer pela razão. A razão é contra o prazer. A razão, quando ela chega, mata o prazer. O prazer vem da dor, da necessidade de solucionar qualquer fome. Então, eu via isso quando eu fiz a canção “Minha História“, que a princípio eu fiquei assustado, porque eu tinha feito um arranjo pra uma canção e Jota Velloso disse: “Vamos fazer uma letra pra isso!”. Aí descreve sobre minha vida, vou ficando um pouco mais amadurecido. O amadurecimento é uma coisa engraçada pro homem, eu falo homem, o “bicho homem”. Quanto mais compreensão você tem, você sente que está chegando o fechamento do seu ciclo. É muita compreensão pras coisas. Por exemplo, eu já vejo a minha filha namorar e aceito isso de uma maneira natural. Não aceitaria se não tivesse compreensão pra tal. Mas aceito isso… Poderia ser uma relação de ciúme. Não! Essa compreensão me assusta. Eu acho até estranho. Não é a reação normal. Eu poderia ficar um pouco chateado. Queria fazer um “charmezinho”… Mas não, isso me prova que existe uma proximidade do fechamento do meu ciclo. Então, Jota fez essa canção pra mim já achando também isso. Falava que eu tava de cabeça branca, mas não é só a cabeça branca, é a claridade da visão. Isso reflete direto na visão, você vai começando a clarear as coisas, vai entendendo as coisas mais rápido. Até mesmo o que você achava absurdo, não é mais absurdo. Eu nunca bebi, ia ver meu filho bebendo… Fumar? Eu nunca fumei. Ele tá fumando do meu lado, tudo bem… É estranho. Aí essa canção que Jota fez comigo me deixou confortável. Quando você se encontra com o seu limite, ainda existe a turbulência. Então, não tem paz. O que é o som? O que é o silencio? O silêncio é absoluto. É a fusão dos opostos, é matemático. Todos opostos têm a mesma origem, e a fusão dele é da origem. Na origem tudo é modular, não tem jeito. Então, esse zelo pelo módulo, pelo absoluto, é o que fez a canção. Uma curva é feita através da outra. Enquanto a última onda simpática não adormecer, não se encontrar com seus limites, não tem silêncio. Pra que volte tudo isso de novo, você tem que acordar o silêncio. Como é que acorda o silêncio? É pedindo com sentimento de ambas as partes da separação dos opostos. Então volta de novo aquela ruptura. Por isso que a onda é simétrica. Jogue uma pedra no mar, observe, várias ondas vão surgir, você vai ver como elas se respeitam… O processo é simétrico. Uma não cresce mais que a outra. Não há possibilidade. Na música é a mesma coisa. Se não houver esse respeito, esses encontros e desencontros gradativos, não vai existir canção nenhuma. Não pode. Até na coisa tonal tem um respeito à tonalidade, à coisa da ida e vinda. Em algum lugar há esse encontro.
Jorge Alfredo Guimarães é compositor, cantor e cineasta baiano. Lançou os LPs Jorge Alfredo (1979) e Bahia-Jamaica (1980), esse último em dupla com o também baiano Chico Evangelista. Nesse último está o samba-reggae(-afoxé-ijexá-etc.) pioneiro “Rasta Pé“, finalista do festival MPB 80, da Rede Globo. Como cineasta, dirigiu o documentário Samba Riachão (2001). Este texto foi publicado originalmente no volume 2 dos livros Cidade da Música da Bahia.