O kit gay existe. E é imprescindível

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Em 28 de agosto de 2018, o então candidato à presidência Jair Bolsonaro foi entrevistado ao vivo pelo Jornal Nacional. Ele tentou mostrar um exemplar do livro “Aparelho sexual e Cia”, da editora Companhia das Letras, repetindo ao vivo que se tratava de um “kit gay”, um pacote didático comprado pelo MEC (Ministério da Educação) para ser distribuído nas escolas públicas. “Estão ensinando em algumas escolas que homem com mulher está errado”, disse o candidato. O apresentador William Bonner fez valer a regra da sabatina, a de não poder mostrar material físico, mas não desmascarou o candidato.

Nada do que Bolsonaro dizia era verdade. A mentira sobre o “kit gay” foi criada pelas milícias digitais nas redes sociais e foi aríete da campanha de falso moralismo de Bolsonaro, alicerçada em mentiras em cadeia (potencializadas por disparos sistemáticos nas redes sociais). O livro, na verdade, não estava em pacote algum do governo federal – o que existia era um esforço de combate ao ódio de gênero que tinha sido articulado no projeto Escola sem Homofobia.  Que não era destinado a crianças, mas a adolescentes. Por conta da falta de uma educação adequada, por exemplo, o jogador de vôlei Mauricio Souza foi demitido essa semana do Minas Tênis Clube por crime de homofobia.

A grande mentira de Bolsonaro não seria aquela inaugural da TV, infelizmente. Ele todo era a articulação de mentiras em cadeia, complementadas sempre por estratagemas alicerçados em aberrações de natureza sexual, como a criação fantasiosa de uma “mamadeira de piroca” que seria distribuída pelo adversário direto. Ao final, essa estratégia da extrema direita, tolerada pelo Tribunal Superior Eleitoral, virou política de Estado e mostrou-se letal, culminando na morte de mais de 600 pessoas na pandemia de coronavírus.

Passados quase quatro anos daquela farsa no Jornal Nacional, a designer, cineasta, quadrinista e pesquisadora Kael Vitorelo publica agora o livrinho ilustrado Kit Gay, no qual examina as falsas questões propostas por políticos oportunistas e esclarece as questões relativas às diferenças de gênero.  Vitorelo é mestre em Semiótica pela PUC-SP com bolsa da Capes/CNPq e dirigiu o documentário Mulheres Desenhadas.

Ao assumir o nome pejorativo do material inventado pelos bolsonaristas, Vitorelo busca desconstruir o discurso homofóbico a partir de suas contradições, seus dogmas e virulência, ao mesmo tempo em que mostra o que é, como é, o que implica, qual a singularidade em ser LGBTQIA+.  Quando se dispõe a enfrentar os tabus de peito aberto (incluindo o tabu do termo “kit gay”), além da reposição da verdade, a artista também se dispõe a reconstituir a trajetória histórica e social da dicotomia hetero-homo que tanto se evita debater, por medo ou covardia.

Kit Gay é estruturado como os antigos almanaques de farmácia, com pequenos jogos, figuras de recortar e ilustrações típicas de quiz show, o que resulta numa divertida incursão por uma temática que poderia resultar séria demais, muito discursiva.  A autora inicia a viagem como personagem de si mesma, num pequeno passeio autobiográfico, mostrando qual é sua própria conceituação do que seja não-binário, para depois enveredar pela “história que não se ensina nas escolas”, mas que deveria ser ensinada. Vitorelo arranca o lençol do “fantasma” que assusta os paranoicos defensores do papel tradicional do macho e da fêmea subalterna.

Kit Gay. De Vitorelo. 96 páginas, Veneta Editora, 35 reais
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