A fuligem dos escapamentos dos ônibus no corredor da Avenida Domingos de Morais não o perturba. Muito menos a pressa dos transeuntes que passam perto de derrubar sua organizada paleta de cores.
A persistência da arte de Renato Firmino nas ruas de São Paulo parece ter um efeito que vai além do debate existencial da arte, suplanta questões tradicionais. Talvez seja pelo efeito de contracorrente: o grafite, outra ativa linguagem contemporânea de intervenção na paisagem urbana, é hoje feito principalmente de convocação e ativismo. O grafite geralmente pede engenho e astúcia, é uma corrida de engajamento. Já o trabalho desse pintor-carroceiro não é afeito à conclamação (nem mesmo tem a obrigação do contemporâneo). Também jamais carrega os condimentos tradicionais da arte de rua, como sarcasmo, ironia ou controvérsia.
É uma espécie de componente de pacificação que surge de imediato quando passamos por sua carroça. Firmino exalta as virtudes da arte sem precisar duelar com ninguém, sem precisar de chancelas, de reverências, de justificação.
Ele conta que nasceu na Casa Verde, na Zona Norte de São Paulo. A família, essa ele perdeu de vista há muito tempo. Ele diz que está há 50 anos vivendo na rua, mas já falou em 40 anos em 2017, então deve ser alguma coisa entre 40 e 50 anos. O número de pessoas na rua explodiu em São Paulo: são estimados cerca de 32 mil cidadãos em situação de rua hoje, o dobro do que havia em 2015, no ano em que se urdiu o golpe de Estado contra Dilma Rousseff.
Renato Firmino pinta sobre superfícies de rejeitos urbanos: pedaços de lona, de madeira, tecidos emborrachados, até mesmo aquele tecido de firmar massa de gesso. Um tema engole todos os outros: o edifício do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Masp, e é daí que vem o apelido que ganhou: o Artista do Masp. Mesmo quando ele se desloca, está ancorado com sua carroça em outro lugar da cidade, o grande Vão Livre de Lina Bo Bardi o acompanha, a Paulista o circunda. Os quadros que vai pintando estão à venda. Ele diz que, de vez em quando, alguém para e paga R$ 40, R$ 50 em cada tela, mas não é um mercado estável, assim como a rua também não é – há muitas telas empilhadas no interior da carroça.
Em 2017, a fotógrafa e videoartista Rochelle Costi encontrou pela primeira vez Renato na frente do Trianon com sua carroça-ateliê. Consta que ele ficou uns 20 anos por ali. Rochelle, descendo do ônibus, o convidou para fazer uma visita ao Masp que tanto pintava. Firmino não quis, ficou intimidado. Ela levou 8 meses para fazê-lo dar um passo adiante e conhecer o que havia além da fronteira entre a rua e a vernissage. Em seguida, a artista o engajou em um projeto que, pela primeira vez, fez com que Renato saísse das calçadas do outro lado da Avenida Paulista e entrasse no Masp como artista convidado. O título do trabalho era “Negócios à Parte”.
Nesse período, Renato, que também faz música, também ganhou a chance de mostrar suas composições em programa jornalístico da Rede Globo. Com o tempo, perdeu o constrangimento e passou a visitar o museu com frequência.
Renato não teme nada nas ruas, diz. Já foram mais tranquilas, ele concorda, mas o único problema é que não dá mais para deixar a sua carroça-ateliê ali na esquina enquanto vai até um bar buscar um refrigerante. Não se sente à vontade com isso mais. A carroça dele é tão acolhedora que parece até uma daquelas bancas dos bouquinistes franceses.
Como carroceiro de objetos recicláveis, as cores da carroça de Firmino afirmam autoridade autoral e fogem ao (bom) trabalho dos coletivos como o Pimp my Carroça, que torna as carroças da rua invólucros de uma linguagem reconhecível, previamente admitida.
Por uma temporada, suas obras estiveram à venda na lojinha do Masp, que repassava o dinheiro a ele. Poderia ser definido como naïf, pela produção seriada, o traço “rude”, mas isso não abarcaria as estratégias de identidade e de autopreservação que envolvem o trabalho de Firmino na rua. Menos ainda a sua capacidade de envolvimento com o espectador, a proposta de diálogo que embute sua atuação.
Ele não explica muito bem porque, mas não tem ficado muito tempo mais lá na área do Masp, diz que não está dando mais certo. Agradece o danoninho que lhe trouxemos da lanchonete, e retoma a mistura de tintas.
Passados 4 anos daquela tentativa de resgate hospedada pelo Masp, Firmino segue impassível na sua rotina de pintar enquanto vive, viver enquanto pinta. Não se distinguem as duas coisas. Ao contrário, por exemplo, dos artistas que pintam ao vivo nas chamadas “feirinhas hippies”, Firmino não tem uma atuação episódica, a pintura é parte das engrenagens da sua carroça e de sua carroceria.
E ele mesmo não julga que adquiriu maior ou menor relevo com a atenção que recebeu do maior museu da América Latina. Permanece rigorosamente igual em rotina e método. Pintar não se superpõe a nada em seu mundo, é apenas uma atividade entre as tantas que exerce na lida da sobrevivência na grande cidade, como encontrar um lugar para encher a garrafa de água ou um banheiro limpo.