Cena de "A Vida Que Eu Sonhava Ter", de Eliane Scardovelli

Em certa medida, o curta-documentário A Vida Que Eu Sonhava Ter (2021), de Eliane Scardovelli, lembra o matricial filme de Helena Solberg, A Entrevista (1966). As duas obras são elaboradas a partir dos depoimentos de mulheres que refletem sobre os devires da feminilidade, acompanhados, visualmente, da reconstituição de um cotidiano encenado – no primeiro caso, pela própria diretora, no segundo, por Glória Solberg, cunhada de Helena.  Isso posto, se em A Entrevista predomina a contradição nas falas de jovens ainda muito mergulhadas na misoginia dos anos 1960 – o feminismo, lembremos, acabara de chegar aos trópicos – em A Vida Que Eu Sonhava Ter as personagens – cujas idades variam entre 62 e 84 anos – parecem engendrar um discurso quase coeso, de quem já sabe, pela experiência, que às mulheres são destinadas grandes agruras, impulsionadas pelo patriarcado que continuamente se reinventa no nosso tempo. O curta foi selecionado para a mostra competitiva do festival É Tudo Verdade, que aconteceu no último mês. 

Os testemunhos de Leda, Regina, Adélia e Edite, colhidos em 2016 na cidade mineira de Poços de Caldas, discorrem, sobretudo, sobre as tensões que assinalaram seus casamentos. “Neste negócio”, alcunha providencial usada por Adélia para se referir a uma relação, muitas vezes, pragmática e protocolar, não há ilusões que resistam. Leda, por exemplo, foi forçada a se casar aos 13 anos de idade, depois de ter sido engravidada por um homem de família relativamente influente na região. Adélia, por sua vez, foi vítima de violência doméstica, com plena consciência da objetificação a qual era reduzida: “Tive que aguentar 39 anos submissa a ele”, lamenta. Edite tomou trauma de homem, já que o marido a “pegava na marra” para aplacar a vontade de sexo. Regina reflete se teria uma sina diferente caso tivesse recusado o matrimônio, mas chega à conclusão de que a alternativa ainda seria servir aos irmãos. 

Enquanto essas desventuras, ao mesmo tempo individuais e coletivas, constituem um fio narrativo pela escuta, a água é o elemento visual que costura a coerência imagética. O filme se inicia com o mar visto de cima; lentamente, a câmera se aproxima de sua força revoltosa e do seu fluxo implacável, indomável. Num corte rápido, engendra-se um raccord, uma rima entre quadros, ao mesmo tempo bonito e deprimente: a ressaca das ondas se transfigura em água de balde, jogada no piso de casa para que se inicie uma longa rotina de faxina. A vastidão do oceano é reduzida à água retida e gradeada, que escoa, dócil, pelo ralo. Com ela se lava roupa, se faz comida, se arruma a louça. Também com ela se toma um banho demorado no chuveiro que serve um pouco como abrigo e refúgio de um dia de trabalho extenuante. Eliane Scardovelli, na verdade, gravou essas cenas – com a direção de fotografia de Rafael Batista – durante a pandemia de covid-19, quando não só as mulheres foram forçadas ao confinamento doméstico, mas quando sobretudo elas continuaram, nele, sobrecarregadas com a labuta diária. 

Apesar de se engajar com denúncias já antigas de que o pessoal também é político, A Vida Que Eu Sonhava Ter não se exime de apostar na esperança. No fim, a obra sugere que à frustração de um amor idealizado pode-se responder com a emancipação dos desejos possíveis. O curta termina com Eliane Scardovelli no mar, como quem busca retornar a uma existência selvagem e desobedientemente, fora das amarras patriarcais. Afinal, como pondera uma das personagens, ainda estamos vivas, então é possível lutar. 

 

Juliana Gusman é jornalista, professora e pesquisadora, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

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