Mineiro de Caratinga, Agnaldo Timóteo (1936-2021) teve outras profissões antes de conseguir se consolidar como cantor. No estado natal, foi torneiro-mecânico (e cantava em circos e programas de calouros nas horas vagas). Estabelecido no Rio de Janeiro em 1960, em busca do ideal artístico, foi garoto de recados, funcionário de repartição e motorista da estrela Angela Maria, que se apresentava ainda em forma apesar do advento da bossa nova, que viera para pregar a pecha de anacrônicos nos vozeirões da “era de ouro”. Ainda que ao longo da vida tenha conquistado fama, sucesso e dinheiro – e mandatos políticos sob ideologia sempre flutuante -, Agnaldo era egresso de um estrato social que hoje enfrenta majoritariamente o extermínio causado pela covid-19 e pela política sanitária praticada por supostos antipolíticos.
Bossa nova à parte, Agnaldo queria soltar o vozeirão no rádio, e para alcançar isso teve como madrinha a patroa, que lhe abriu caminhos para começar a gravar em 1961, inicialmente sem sucesso algum. Enquanto o amigo suburbano Roberto Carlos migrava da sub-bossa nova para o rock’n’roll, Agnaldo fincou os pés no romantismo de voz de trovão e aguardou a maré alta. Essa veio a partir de 1965, quando conseguiu emplacar no rádio uma versão do hit “The House of the Rising Sun”, do grupo inglês de blues-rock The Animals. “A Casa do Sol Nascente” esterilizava completamente o sentido soturno da letra original (que tratava de um garoto crescido numa casa de prostituição), mas serviu sob medida para os propósitos de Agnaldo, que a cantava bem mais mansamente que na maioria absoluta de suas gravações futuras.
Seguindo o exemplo de estrelas da canção popular das décadas anteriores (inclusive a proto-roqueira Celly Campello), os dois primeiros álbuns, entre 1965 e 1966, foram completamente preenchidos por versões de sucessos pop dos Beatles (“Yesterday”, “Michelle”) de filme de James Bond (“From Russia with Love” virou “Em Busca do Amor”) e dos cancioneiros italiano e francês (caso de “Aline”, lançada originalmente pelo francês Christophe). Esse método começou a mudar no terceiro disco, Obrigado Querida (1967), quando o cantor recebeu do então astro máximo da música jovem brasileira, Roberto Carlos, uma canção inédita (e jamais gravada pelo autor), “Meu Grito”.
Roberto compôs pensando no amor escondido que vivia com Nice e não podia ser revelado em público para não desapontar as fãs. Mas “Meu Grito” servia à perfeição para Agnaldo Timóteo falar, sem falar, sobre a condição homossexual que levaria (semi-)oculta até o final da vida: “Ai, que vontade de gritar seu nome bem alto no infinito/ dizer que meu amor é grande, bem maior do que o meu próprio grito/ mas só falo bem baixinho e não conto pra ninguém/ pra ninguém saber seu nome, eu grito só ‘meu bem'”.
Roberto, agora com o parceiro Erasmo Carlos, continuou compondo sob medida para Agnaldo: “Deixe-Me Outro Dia, Menos Hoje” (1968), “Os Brutos Também Amam” (1972), “Frustrações” (1973). De Tim Maia, o cantor gravou “These Are the Songs” (1970), a mesma balada soul que tornaria Elis Regina célebre como descobridora de Tim. As versões continuaram, e só a partir de O Intérprete (1970) as canções originais brasileiras passaram a predominar sobre as outras.
Por mais que interpretasse standards de Charles Aznavour (“La Mamma”, 1965, em português, “She”, 1974, em inglês), Nat King Cole (“Love Letters”, 1967, também em português), Frank Sinatra (“Eu Já Me Habituei”, 1969, versão de “My Way”, ou “All the Way”, 1971, em inglês), Carlos Gardel (“O Dia Que Me Queiras”, 1970), Orlando Silva (“Vestido de Lágrimas”, 1971, “Velho Realejo”, 1972), Nelson Gonçalves (“A Volta do Boêmio”, 1971, em espanhol), Vicente Celestino (“Porta Aberta”, 1974), Angela Maria/Elis Regina (“Vida de Bailarina”, 1976), Dolores Duran e Tom Jobim (“Por Causa de Você”, 1977), Édith Piaf (“Hino ao Amor”, 1986)…, Agnaldo Timóteo não era assimilado como bom cantor pela intelligenzia conterrânea. Isso ajuda a explicar a existência da canção “Os Brutos Também Amam” (do disco homônimo embalado em capa de imaginário black power): “bruto” era, a grosso modo, como a MPB o via. A mídia, o jornalismo e a crítica musical batiam tambor para o senso comum. Ao olhar de nossas elites colonizadas, a música, tal como a política, não era lugar para ex-torneiros-mecânicos.
Esse estranhamento faria com que Agnaldo vivesse às turras com os colegas emepebistas, sempre lançando farpas contra chicos, caetanos e bethânias. Como relata Paulo César de Araujo no importante livro Eu Não Sou Cachorro, Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar (2002), o emepebista Gonzaguinha, numa ponte improvável, compôs “Grito de Alerta” (1979) inspirado no amigo mais popular, mas foi a versão de Maria Bethânia que imortalizou a canção. Agnaldo também gravou “Olhos nos Olhos” (1976), de Chico Buarque, em interpretação tonitruante, mas mais uma vez quem ficou com a fama toda foi Bethânia.
A capa do álbum Frustrações (1973) resiste como metáfora de quem era Agnaldo Timóteo nos anos 1970: um ídolo popular que, entre desavenças com a MPB universitária e sob o manto que ocultava sua sexualidade, sentia-se solitário, no centro de um estádio vazio. Marginalizado, ao mesmo tempo que popular, o artista inaugurou um novo rumo em 1974, quando gravou a balada trágica “Amor Proibido”, composta por Dora Lopes (também homossexual, também uma marginalizada por excelência). Era uma volta à tática usada em “Meu Grito”: “Já ficou entendido/ que o amor que vivemos/ é um amor proibido/ pode o mundo inteiro falar/ que eu fico contigo”.
Num tempo em que o termo “entendido” era vigente para homossexuais tratarem uns aos outros e em que o ocultamento da sexualidade era norma (ao contrário do que acontece com os artistas da safra atual), Dora e Agnaldo disparavam, derretidos em dor, frustração, culpa e ressentimento: “Eu confesso, fiz tudo,/ não adianta, eu não mudo/ amor cego não pode ver/ sair pela cidade pra esquecer a verdade/ não consigo me convencer”. E concluíam, corajosos: “Amor proibido/ à minha maneira/ é autenticidade/ vou ficar contra o mundo/ e não posso fugir desse amor que é verdade”.
“Amor Proibido” foi o prelúdio para a série atormentada hoje conhecida como trilogia gay de Agnaldo Timóteo, formada pelos álbuns Galeria do Amor (1975), Perdido na Noite (1976) e Eu Pecador (1977). Embora os três seguissem os parâmetros de sempre em sua discografia, cada um deles começava com um inspirado bolerão sob forte cunho sexual (ao mesmo tempo que premido pelo catolicismo e pela moralidade de fachada). Todos foram compostos por Timóteo em pessoa.
“A Galeria do Amor” flagrava-o à caça de rapazes na underground Galeria Alaska, no Rio de Janeiro, ainda que nada disso fosse explicitado nos versos: “Numa noite de insônia saí/ procurando emoções diferentes/ e depois de algum tempo parei/ curioso por certo ambiente/ onde muitos tentavam encontrar/ o amor numa troca de olhar/ na galeria do amor é assim/ muita gente à procura de gente/ a galeria do amor é assim/ um lugar de emoções diferentes/ onde a gente que é gente se entende/ onde pode se amar livremente”.
“Perdido na Noite” segue a sina, embebido em solidão: “Somos amantes do amor, liberdade/
somos amados por isso também/ e se buscamos uma cara-metade/ como metade nos buscam também/ estou perdido/ estamos perdidos/ mas a esperança ainda é real/ pois quando menos se espera aparece/ uma promessa de amor ideal”. O tango rasgado “Eu Pecador” encerra o ciclo às voltas com a ressaca da culpa católica: “Senhor, eu sou um pecador/ e venho confessar/ porque pequei/ Senhor, foi tudo por amor/ foi tudo uma loucura/ mas eu gostei/ Senhor, não pude suportar/ a estranha sensação/ de experimentar/ um amor por vós não concebido/ um amor proibido/ pela vossa lei/ (…) Senhor, eu sou um pecador/ sou um frequentador/ da esquina do pecado”. A afirmação “mas eu gostei” não deixa espaço para dúvidas: deuses às favas, o narrador foi, é e será um frequentador da “esquina do pecado”.
Enquanto Bethânia colhia louros pela linguagem de fresta elaborada à maneira do colega dito “cafona”, Agnaldo seguiu se equilibrando entre a popularidade e a marginalidade. Só angariou apoio extra na velha guarda, quando Angela Maria o trouxe para o show e disco Angela & Timóteo, Juntos (1979). Talvez o “pecado” original do “bruto” Agnaldo fosse sempre misturar requintes como “Travessia”, de Milton Nascimento, com pérolas kitsch do quilate de “Mamãe” e “Canção da Criança” (as três constam do disco de duetos com Angela), despriorizar Chico Buarque com “Estrada da Vida” (1981), sucesso caipira de Milionário e José Rico, cantar suavidades de modo “bruto”.
Conforme a popularidade foi ficando rarefeita e Agnaldo Timóteo tornou-se ele próprio velha guarda, os apoios se reciclaram na forma de programas sensacionalistas de TV e mandatos conquistados para ser deputado federal pelo Rio de Janeiro (1983-1986, 1995-2000) e vereador por São Paulo (2005-2013). Tal qual acontecia na música, as definições político-partidárias de Agnaldo recombinavam direita, esquerda e centro sem fazer distinções aparentes entre os polos. Sem mercado e sem indústria, o artista veterano vendeu CDs manufaturados em banquinhas em praça pública, como numa volta às profissões do começo da vida. Morre de covid-19 neste 3 de abril de 2021, idoso, homossexual, preto, pertencendo a vários grupos de risco ininterruptamente caçados pelo topo da sociedade brasileira.