Sem querer parecer pedante, porque é um fato de múltiplas consequências, vou dar aqui minha opinião sobre o que significa a vitória de Joe Biden na disputa presidencial norte-americana. O que acho que muda realmente na política internacional e, em especial, em relação ao Brasil.

A mais importante mudança é o impacto na volatilidade da situação democrática no Brasil. Explico essa opinião fazendo uma pequena memória de um acontecimento recente.

No dia 30 de julho, uma reportagem de Monica Gugliano na revista Piauí, ignorada pelo grosso da imprensa brasileira, se tornava a peça de jornalismo mais aguda dos últimos anos sobre a crise democrática no Brasil. Com o título de Vou intervir!, a reportagem narrava uma reunião no dia 22 de maio no gabinete da presidência do País com, além do presidente, os ministros-generais Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno. Eles tramaram enviar tropas para invadir o Supremo Tribunal Federal, destituir os 11 ministros da corte e consolidar um golpe de Estado no País.

O motivo era a decisão do ministro Celso de Mello de autorizar a Procuradoria Geral da República a pedir a entrega do celular do presidente da República no bojo de um processo judicial. Três dos presentes à reunião, com assustadora desinibição, concordaram sem ressalvas com o golpe de Estado. Um deles, porém, achou que ainda não era o caso: por ironia, o irascível general Augusto Heleno, que terminou por mediar uma solução intermediária, a de soltar uma nota “apenas” ameaçando um golpe.

A reportagem da Piauí, uma denúncia gravíssima irrebatida, evidenciava duas coisas: primeiro, que o grupo que se aboletou no poder, composto de arrivistas temporãos das Forças Armadas, sentia-se naquele momento tão confiante em sua posição de força que podia dispor a qualquer hora do seu mais truculento exercício de submissão dos instrumentos da democracia: a decretação de um Estado de exceção. Segundo: o cerco à democracia era conduzido por um bureau absolutamente desqualificado, de motivações personalistas, sem a mínima coesão.

Mas, para quem acompanha a movimentação dos golpes no mundo com alguma argúcia, o que eles tramaram só acontece quando os golpistas pressentem a chancela de suas atitudes por um árbitro poderoso e irrechaçável. O famoso “costas quentes”. Essa fiança sempre tem vindo dos Estados Unidos, ao menos na América Latina, às vezes com algum organismo de legitimação na retaguarda, como a OEA.

Para continuar meu raciocínio, faço uma pergunta ao leitor: alguém duvida que o presidente em exercício nos Estados Unidos, Donald Trump, deixaria de dar, naquele momento, a chancela para um golpe de Estado do establishment bolsonarista no Brasil? Penso que não há ninguém que duvide disso, e nem se trata de um debate político aqui. A fidelidade canina do Itamaraty aos USA, algo que prescinde até de ações de contrapartida, e a necessidade eleitoreira de encontrar uma força sul-americana de caráter mercenário em suas pretensões (papel análogo ao que representaram países como Honduras e o próprio Iraque em alguns momentos históricos) tornava isso um fato consumado.

Pois bem: a eleição de Joe Biden provavelmente soterra essa volatilidade. A simples possibilidade da deslegitimação, pelos Estados Unidos, de uma agressão dessa natureza já obriga o Estado menor de Bolsonaro a ser pelo menos mais cauteloso. O preço de uma aventura dessas a partir de agora provavelmente será a abominação internacional, com a perspectiva de conduzir o grupo no poder a uma condição de párias globais, interditar seu ainda privilegiado trânsito pelos organismos colegiados internacionais. Com Trump como fiador, o governo brasileiro ainda podia blefar e posar de bufão em fóruns de emergentes, mas agora não poderá mais. Podem cassar seu convite.

Sim, eu sei: o governo Obama, presumivelmente mais progressista, ordenou espionagem de caráter comercial em relação ao Brasil. Mas eu refuto o argumento de que as coisas seguem rigorosamente iguais, acho isso levemente infantil. O compromisso público, algo que Biden exibe, exige uma certa transparência nas ações, capacidade de submeter-se à lógica argumentativa, apego ao menos ao teatro da dialética. Isso tem um efeito bom, mesmo que boa parte dos amigos politizados julgue mais psicológico que efetivo. Mas hoje vou discordar. A política, vou aqui cometer mais uma obviedade, transita grandemente num território simbólico. Se Trump encoraja a Ku Klux Klan, mesmo que esse encorajamento seja sabidamente contra a lei, o resultado é a conflagração, é o empoderamento dos preconceitos, dos ódios. É muito mais difícil lutar num mundo em que o criminoso se sente representado e blindado e inalcançável. Ao se recusarem a continuar transmitindo uma saraivada de mentiras de Trump em cadeia nacional, as emissoras de TV avançaram sobre o dogma estéril da imparcialidade cúmplice. Essa seria então uma segunda implicação da eleição de Joe Biden e Kamala Harris (nunca esquecer a risada deliciosa de Kamala ao receber a ligação de Joe, aquilo tem força): reforça a sensação de que ainda é possível mudar as regras das mediações indiferentes.

 

 

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