Uma longa entrevista de 1h30 num lugar que parece uma câmara frigorífica, na frente de um muro de concreto, com a imagem do entrevistado basicamente entre o primeiro plano e o meio primeiro plano, pode ser considerada cinema? Narciso em férias, o documentário de Renato Terra e Ricardo Calil que foi exibido pela primeira vez ontem, 7, no Festival Internacional de Cinema de Veneza parece, de cara, provocar deliberadamente esse antigo debate: O que é cinema? Qual é o cinema “rico” e qual o cinema “pobre”, em termos de recursos formais? A que se presta o cinema, elucidação ou reiteração?
Para radicalizar ainda mais tal debate, há a questão de que é ninguém menos que Caetano Veloso o entrevistado, e só são “tocadas” duas músicas do compositor e cantor durante todo o tempo do filme: Irene e Terra (essa, na verdade, serve para subir os créditos no final). As outras músicas são Súplica, de Orlando Silva, mãe de toda a simbologia inicial, e Hey, Jude, dos Beatles.
Outro princípio assumido pelos diretores é não dar demasiada importância ao didatismo. Quando Caetano cita algumas canções e personagens, como a música Onde o azul é mais azul, o filme não se preocupa em oferecer a elucidação disso, colocar uma legenda dizendo tratar-se de uma música de Braguinha, por exemplo. Ou quando ele fala dos dois livros que lhe deu no cárcere o editor Ênio Silveira (O Bebê de Rosemary, de Ira Levin, de 1967, e O Estrangeiro, de Albert Camus, de 1942), não há uma interferência informativa qualquer na edição.
Não se procura estabelecer nexo causal entre as informações que Caetano vai desfilando – o “falso” Antonio Callado, o encontro com Perfeito Fortuna na cadeia, a identidade do detento pernambucano que os dividiu na solitária em São Paulo. Na fórmula mais investigativa que consagrou o gênero documentário, a confirmação de que a denúncia que os levou à prisão foi a do apresentador Randal Juliano, durante o programa Guerra é Guerra, na TV Record (a bravata de que teriam deturpado o Hino Nacional Brasileiro durante uma apresentação na boate Sukata, no Rio de Janeiro), teria tido desdobramentos. O show era de Caetano e Gil, na prisão, mas o que houve com os Mutantes, também no elenco, depois daquilo? Como se relacionam os interrogatórios dos dois detidos pelo mesmo “crime”?
Em alguns momentos, o documentário “editorializa” as aproximações temporais e as reflexões sociopolíticas de Caetano com o momento do Brasil atual, e não há nenhum pudor em esconder essa intenção. É um manifesto, e não há conflito entre essa condição e a da cinematografia. Isso porque Terra e Calil parecem ter decidido que a entrevista que tinham em mãos era tão coesa, tão pontualmente importante e tão funcionalmente estética que não era preciso recorrer às fórmulas tradicionais de “dramatizar” um documentário. Caetano está trêmulo na maior parte das cenas. Esforça-se para parecer seguro de si, confiante na força da autodeterminação intelectual contra a patética marcha do autoritarismo, mas ele mesmo não parece confiar muito nisso. Sabe que a imagem que mais define o confronto entre civilização e barbárie é aquela do general que primeiro os recepcionou no cárcere, sem dizer palavra, sentado numa mesa à sua frente, mas distante, e que pediu um jantar aos subordinados e jantou sem cerimônia com os dois imóveis, sentados, cativos e sem arbítrio, ali no salão.
Em Narciso em férias, Caetano passa por uma experiência análoga à visita a um campo de concentração ou ao Museu do Holocausto, em Jerusalém: o absurdo da violência que sofreu é revivido em uma turnê guiada, como que se lhe fosse dada a oportunidade de decidir em qual medida aquilo o afetou. E, nas frases soltas, constroi a própria estupefação de sobrevivente. “Me senti ressequido, espiritualmente ressequido”, diz. (Pensei) que a vida era só aquilo, e que eu tinha tido um sonho das outras coisas”. E, mais dilacerante, logo no final, frente ao espelho: “Não é que eu não sabia quem era, eu não sabia o que era aquilo”.