Era 4 de setembro de 1990, e a então prefeita Luiza Erundina (PT) largou uma reunião no meio e se encaminhou, às pressas, para o bairro de Perus. Naquela manhã, uma vala clandestina com mais de mil ossadas, ocultadas pela ditadura civil-militar na segunda metade dos anos 1970, estava sendo reaberta. Ativistas políticos e vítimas dos esquadrões da morte foram enterrados no cemitério municipal de Perus, como se fossem indigentes. Diante de jornalistas, Erundina declarou: “Temos que levá-los às últimas consequências, dure o tempo que durar, custe o que custar”. Trinta anos depois, os bastidores desse escandaloso episódio da história brasileira emerge no projeto Vala de Perus: Uma Biografia, do jornalista Camilo Vannuchi.
A descoberta da vala se deu pelo esforço do jornalista Caco Barcellos e de um consciente administrador de cemitérios, Antônio Pires Eustáquio. O jornalista da TV Globo mergulhou em laudos periciais largados em um “muquifo” no Instituto Médico Legal de São Paulo. Ele buscava informações sobre desconhecidos mortos pela Polícia Militar, que resultou no livro Rota 66: A História da Polícia Que Mata (Globo e Record). Mas nas fichas encontrou também pistas que revelavam uma outra história, a do paradeiro de militantes políticos. Foi quando Caco Barcellos se encontrou com Eustáquio, ou Toninho, que administrava o Cemitério Dom Bosco. Toninho decidiu revelar a verdade que o aparato de repressão do Estado tentou ocultar por décadas. Temia guardar esse segredo. “Como eu posso administrar um cemitério com uma bomba dessas?”, dizia.
Ocultar a história
O livro Vala de Perus está sendo escrito e publicado no site do Instituto Vladimir Herzog em capítulos semanais. Nesta semana, quando se completam 30 anos da revelação do escândalo, saíram os dois primeiros de um total de oito. O ritmo da narrativa é o de um portentoso romance policial, envolve e fisga a atenção. Protagonistas da história e parentes de desaparecidos políticos, como Suzana Lisboa, Iara Xavier Pereira e Amelinha Teles, relatam a dificuldade para encontrar a verdade.
A estratégia da ditadura era sepultar os militantes assassinados não pelos nomes, mas pelos codinomes de guerrilheiros, exumando depois os corpos e levando-os para uma vala comum e ilegal. O Dom Bosco foi construído a toque de caixa pelo então prefeito Paulo Maluf, colaborador do regime. Até meados de 1979, algumas vítimas da repressão já haviam sido localizadas nesse cemitério, como Joaquim Seixas e Alexandre Vannucchi Leme, enterrados ali sem autorização da família.
Camilo Vannuchi é primo em segundo grau de Alexandre Vannucchi Leme e filho de Paulo de Tarso Vannuchi, ex-ministro dos Direitos Humanos no governo Lula e membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Recém-doutorado pela Universidade de São Paulo, o jornalista e escritor integra o grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, também da USP, e publicou, ainda neste ano, a biografia Marisa Letícia Lula da Silva (Alameda).
Vala de Perus: uma biografia. De Camilo Vannuchi, Instituto Vladimir Herzog. No site http://memoriasdaditadura.org.br/vala-de-perus-uma-biografia/