A estrada que conduz o roadie ao futuro às vezes é só parafernália pesada, instrumentos e cabos. Mas também pode levar à glória e à História. Noel Gallagher foi roadie da banda Inspiral Carpets antes de fundar o Oasis. Lemmy foi roadie de Jimi Hendrix antes do Motörhead. David Gilmour foi pau para toda obra no papel de roadie antes de ser escalado para ocupar a frente do palco com o Pink Floyd.
No Brasil, o roadie mais talentoso do rock foi esse cidadão aqui: Getúlio Côrtes.
No começo dos anos 1960, ele era roadie de Renato e Seus Blue Caps, encarregado de transportar para lá e para cá os instrumentos da mais badalada banda daqueles anos. Ele era de Madureira; Renato Barros, líder do grupo, era de Piedade, assim como seu irmão também famoso, o cantor Ed Wilson, de quem Côrtes era amigo. Como Getúlio queria muito ficar por perto do emergente negócio da música, Renato o levou para excursionar com ele, carregar os pesados instrumentos.
Getúlio lembra que a Jovem Guarda era um fenômeno de tirar o fôlego. “A gente viajava muito. Uma vez, no Paraná, em 1967, nós fomos recebidos que nem os Beatles, tinha guarda de batedor, multidão de fãs, carreatas, uma doideira”. Como ambos morassem longe, de vez em quando Renato o levava para dormir na casa de sua namorada, a cantora Lilian (da dupla Leno e Lilian), em Copacabana, porque tinham trabalho logo cedo no centro. “Eu era um tipo de babá”, conta.
Renato era boa praça, procurou encaminhar o amigo roadie, que compunha umas canções e, na época, cantava num conjunto chamado The Wonderful Boys. Em 1965, Renato acabou gravando dele uma canção que surgira de forma meio insólita.
“Foi assim: lá em Madureira, tinha um gato que não me deixava dormir, miava a noite toda. Eu fazia música num quartinho nos fundos da casa. Estava doido da vida com o bichano. ‘Vou matar esse gato miserável!, eu pensava. Mas aí eu refleti: a vida de um gato já é bastante difícil, deixa o bichinho na dele. Foi então que comecei a escrever sobre as dificuldades da vida de um gato. Aí pintou Negro Gato. O curioso é que, depois que fiz a canção, ele sumiu. Nunca mais o vi. Vai ver ele foi enviado só para me dar a inspiração”, lembra Getúlio.
A gravação de Renato e Seus Blue Caps de Negro Gato não ficou tão legal, pondera o compositor, e por isso acabou não estourando. Mas algum tempo depois ele encontrou Roberto Carlos no estúdio da gravadora CBS, tinham se conhecido numa emissora de rádio e o Brasa o tratava com afeição, sabia que era compositor e tinha escolhido uma canção sua, Noites de Terror, para gravar. Roberto, por acaso, ouviu a versão de Renato no estúdio e disse: “Pô, essa canção é bacana! Vou gravar também, Getúlio, mas vou gravar do meu jeito!”. O “jeito” de Roberto foi um incêndio, a gravação de Roberto se espalhou e dominou as paradas do rádio.
Depois de o Brasa catapultar Negro Gato, todo mundo queria gravar Getúlio Côrtes. Era um selo de garantia de rock de qualidade. Wanderléa gravou duas músicas dele, Erasmo Carlos gravou 3 músicas, Renato e seus Blue Caps gravaram 5, Jerry Adriani gravou 5 músicas. Odair José, José Roberto, Lafayette, Os VIPs, Bobby di Carlo, Rosemary, Leno, Martinha, Tony e Frankye: a lista é imensa. Por insistência de Leno, acabou entrando em seu próprio papel na foto de capa de um disco mitológico, Johnny McCartney, de Leno e Raul Seixas.
“Conheci todo mundo naquele tempo. Tony Tornado vivia numa pindura desgraçada. Ele morava lá em Oswaldo Cruz, conheci ele ali. Wilson Simonal era mensageiro do Carlos Imperial, era meu amigo também. Imperial era muito inteligente, mas não era músico. Nunca foi compositor, fazia umas coisinhas aqui e ali, mas ele tinha outro talento: o poder de conhecer as pessoas, saber extrair o melhor delas”.
Roberto Carlos o levou para trabalhar consigo, na sua empresa. “A partir daí, onde Roberto ia, eu ia atrás”.
Depois, Getúlio trabalhou na TV com o diretor Carlos Manga, também indicado por Roberto. Estava numa onda boa. “Íamos lançar o programa Jovem Guarda no Rio. Mas foi então que eu fiquei doente, tive uma anemia profunda. Era 1969, eu fiquei fora seis meses com um problema sério no pulmão esquerdo. O médico disse: tem que parar. Muita vezes, é preciso parar para preservar a vida, que é mais importante. A questão toda se resume em saber dos limites da gente. Você vê, gente extremamente talentosa, como Tim Maia, Luiz Melodia, Elis, eles não souberam lidar com seus limites. O cara está no auge e pensa: ‘Eu posso tudo’. Não pode. A matéria vai se desgastando, pô! A gente é carne, em três dias os bichos te comem. Você está aqui de passagem, e tem muita gente que não aceita isso”, conta.
Aquele começo era um tempo duro para todo mundo, lembra Getúlio, mas foi se tornando ainda mais duro para outras. Gil e Caetano, por exemplo, foram presos e eram obrigados a tomar banho frio no quartel de madrugada. “Meu irmão era paraquedista no quartel onde estavam presos, em Realengo. Meu irmão é o Gerson King Combo. Quando eu estava entrando na Jovem Guarda, ele me dizia: ‘Para com isso, para com esse negócio de rock!’. Ele estava na onda do James Brown, da música black. Ele gosta de sossego. Agora mesmo estamos fazendo música juntos”, revela.
Getúlio Côrtes tem um sentimento completo de gratidão para com o showbiz que frequentou – e ainda frequenta. Tem atualmente 82 anos, e há poucos dias lançou um lindo videoclipe, o primeiro de sua pródiga carreira, cantando uma das 14 canções suas que Roberto Carlos, seu vizinho na Urca, no Rio, gravou: Por Motivo de Força Maior. Gravou na janela da casa de Madureira onde nasceu (na casa da frente, ainda vive seu irmão, Gerson King Combo). Sua interpretação é puro rock, tá intacta a rebeldia, mas tem umas carícias de soul.
A carreira musical tem sido boa, mas é claro que Getúlio também enfrentou as pedreiras.
“Já teve muita gente que me prejudicou. Nossa Senhora! Tem gente que não pode ver o sucesso dos outros. Sendo crioulo, então, é pior ainda! Mas se você planta coisa boa, só colhe coisa boa”, ele conta. “Até hoje tem preconceito, só que é velado. Eu me lembro que tinha pessoa que não entrava no mesmo elevador que eu estava. Deixava passar, não entrava. Mas, se a gente for ligar pra isso, não vive. É só briga. E a vida não é isso”.
“Simonal foi um injustiçado. Negro não pode fazer sucesso que já vem logo uma gracinha. Quem fez a caveira dele foi um jornalista que está vivo até hoje. Simonal cometeu um erro. Ele teve um empresário que roubou o dinheiro dele. Quando ele descobriu, mandou a polícia bater no cara. O jornalista botou a boca no mundo. Simonal bebia muito, tanto que morreu de cirrose”.
“Se você prestar bem atenção, verá que tem poucos negros no topo. Emílio Santiago teve um papel interessante, porque lidava com aquele repertório fino”, pondera Getúlio.
“Não bebo, não fumo. Nunca fui muito chegado nas festas, mas joguei muito dinheiro fora. Tinha um Karmann Ghia, depois comprei um Opala”. Roberto o ajudou a ser mais centrado, ele revela. “Me deu muito puxão de orelhas!”.
Há 3 anos, Roberto Carlos fez um show no Vivo Rio. Getúlio foi. “Fiquei quase uma hora esperando. Mas, quando ele me viu no camarim, ficou emocionado, quase chorou. Ele berrou: ‘Negro gato! Meu compositor predileto!’. Então, com aquele jeito dele, chegou ao meu ouvido e falou baixinho: ‘Tá tudo funcionando aí direito? Porque aqui tá tudo falhando’. E deu uma gargalhada. É o jeito dele, é brincalhão e divertido”.
Há alguns dias, Getúlio foi à cremação do antigo companheiro Renato Barros, dos Blue Caps, no Cemitério do Caju. A última vez que se encontraram foi há uns 5 meses na casa de Renato em Jacarepaguá. “Devo tudo que tenho na vida a Renato”, confidenciou. Getúlio notou que, na cerimônia, não tinha ninguém dos velhos companheiros, nenhum artista. Mas também, tem essa pandemia, Getúlio Côrtes mesmo não dá mole, tá recolhido. Ainda assim, já compôs 8 músicas para um disco novo (somente em 2018 é que gravou o primeiro álbum, Histórias de Getúlio Côrtes, um dos melhores atos do rock nacional daquela temporada).
“Gravo com um amigo pianista, o Tadeu, que tem um estúdio em Niterói. Mas demora pra caramba. As pessoas pensam que fazer uma música é fácil. Eu levei três meses para fazer o Negro Gato”. O que ele levou três meses para compor, o País já canta há mais de 50 anos.
Bons tempos, que tenho muita saudades!
O compositor quando acerta uma musica de sucesso, tanto pode disparar na carreira quanto minguar, é uma questão de sorte, compus Roy Rogers nos anos 70 e foi sucesso com Marcelo Costa, mas minha carreira de compositor não decolou apesar de centenas de outras composições, a vida é assim mesmo.