Capa de Dementia 21, de Shintaro Kago
Dementia 21, de Shintaro Kago, lançado em 2018 nos Estados Unidos pela Fantagraphics, chega agora às livrarias num esforço da Todavia Livros

É uma espécie de Zé do Caixão do mangá japonês. Shintaro Kago, de 51 anos, nada de braçada em meio ao bizarro, ao nonsense, ao fabuloso e ao inverossímil nas histórias em quadrinhos. Nos escombros dos fundamentos do velho e desgastado gênero terror, ele constrói uma obra totalmente livre, capaz de se valer tanto do sobrenatural quanto das estruturas da ficção científica para tecer comentários profundos e sarcásticos sobre a natureza humana. Dentaduras com vontade própria, idosos sádicos, aposentados dementes de 20 metros de altura: a obra-chave de Kago, Dementia 21, lançado em 2018 nos Estados Unidos pela Fantagraphics, chega agora às livrarias num esforço da Todavia Livros, em edição caprichada. Kago, como mestres do quadrinho ocidental do naipe de Frank Miller ou Alan Moore, inocula muitos comentários da política, da cultura pop e da crônica mundana de forma incidental em seus quadrinhos.

A grande sacada de Dementia 21 é colocar uma cuidadora de idosos isolados, a jovem Yukie Sakai, numa espécie de vertiginoso jardim de alucinações não apenas do mundo real, mas também da própria carga de perversões, pecados e débitos daquelas figuras de idade avançada que já viveram muito, mas deixaram alguma pendência importante para trás. Ela flana por um mundo pervertido como se fosse uma Alice de Lewis Carroll. Passa de cenários psicodélicos a experimentos análogos aos de David Mazzuchelli em Rubber Blanket.

Cultuadíssimo entre os artistas do mangá da atualidade, Shintaro Kago vai de influências que envolvem desde Salvador Dalí até Katsuhiro Otomo. Ele acaba de publicar, no último mês de fevereiro, também nos Estados Unidos e pela mesma Fantagraphics, o volume 2 de Dementia 21. É considerado um dos expoentes do gênero ero-guro nansensu, corrente nascida nos anos 1930 e que usa o humor, o grotesco, a escatologia e o nonsense para falar de forma ácida da sociedade japonesa e de suas normas e tabus. Usa também conceitos da psiquiatria e da psicanálise, de regressão a psicose.

Há uma espécie de atualização de temas kafkianos na saga da jovem Yukie, e sua alienação a torna uma personagem quase etérea. Kago se vale de uma carga moderna de rejeições (o pavor das rugas, das dentaduras, das fraldas geriátricas) quase com delícia. A obsessão de Yukie é a de uma tarefeira, está sempre preocupada com a avaliação do cliente no seu palmtop, mesmo atravessando tragédias de dimensões monumentais, como se fosse um Uber dos cuidados de enfermaria.

Dementia 21. De Shintaro Kago, tradução de Drik Sada. Todavia Livros, 2020. 280 páginas, 70 reais.
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