A política brasileira virou literalmente um carnaval

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O duo Criolina comanda o Bota Pra Moer, terça de carnaval, no circuito da Avenida Beira-Mar, em São Luís. Foto: Layla Razzo
O duo Criolina comanda o Bota Pra Moer, terça de carnaval, no circuito da Avenida Beira-Mar, em São Luís. Foto: Layla Razzo

É muito provável que nenhuma das músicas que Zeca Baleiro gravou em “Escória”, seu ep carnavalesco, alcançará o status de hit, seja pelo cantor e compositor maranhense não se valer de meias palavras ou eufemismos, seja pela caretice reinante nos meios de comunicação (e consequentemente entre seu público), que seguem se chocando mais com beijos entre pessoas do mesmo sexo que com corpos mutilados pela violência nossa de cada dia.

Baleiro, em “Escória”, é uma espécie de ponta de um iceberg: a folia e o espírito anárquico característicos do período carnavalesco se fundem à indignação diante do cotidiano Festival de Besteiras que Assola o País, ave, Stanislaw Ponte Preta!, diante de falas, gestos, grosserias e decretos do neofascista Jair Bolsonaro e seu entorno.

“Escória, escória/ nem fodendo vocês vão/ conseguir entrar pra história”, dispara logo no início da faixa de abertura, que dá título ao ep. Mais direto, impossível. “Bichos escrotos II” cita diretamente o clássico oitentista do Titãs e atenta para o fenômeno de o que há de mais grotesco ter saído do armário no Brasil pós-golpe.

Sambas, frevos e marchas, gêneros identificados com a folia de Momo, têm se dedicado à crônica sobre a atual tragédia política brasileira. Escolas de samba cariocas também dedicaram enredos à realidade nacional. A Estação Primeira de Mangueira, atual campeã, já havia se detido sobre o tema ano passado, quando levou à avenida o samba-enredo “História pra ninar gente grande” (Manu da Cuíca/ Luiz Carlos Máximo/ Deivid Domenico/ Tomaz Miranda/ Mama/ Ronie Oliveira/ Marcio Bola/ Danilo Firmino), que versava sobre o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, que segue não elucidado, mais de 700 dias depois. A música foi regravada por Maria Bethânia, em “A menina dos meus olhos” (Biscoito Fino, 2019), que a baiana dedica à escola de samba do coração.

Este ano a Mangueira volta à carga: “A verdade vos fará livre” (Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo) já alfineta o presidente de extrema-direita desde o título, um trocadilho com o versículo bíblico repetido à exaustão e heresia como mote de campanha do ex-capitão. Os versos mais diretos também não disfarçam: “favela, pega a visão/ não tem futuro sem partilha/ nem Messias de arma na mão”.

Em “Guajupiá, terra sem males” (Valtinho Botafogo/ Rogério Lobo/ José Carlos/ Zé Miranda/ Beto Aquino/ Pecê Ribeiro/ D’Sousa/ Araguaci) a Portela também bota o dedo na ferida: “Nossa aldeia é sem partido ou facção/ não tem “bispo”, nem se curva a “capitão””.

Também o samba-enredo da São Clemente traz um recado explícito, com sua ala de compositores reforçada pelo humorista Marcelo Adnet – autor de “O conto do vigário”, em parceria com André Carvalho, Pedro Machado, Gustavo Albuquerque, Gabriel Machado, Camilo Jorge, Luiz Carlos França e Raphael Candeia. “Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu!/ E o país inteiro assim sambou/ “Caiu na fake news!””, versa a letra sobre um dos motores da eleição do neonazista Jair Bolsonaro.

No Maranhão a folia também é pautada pelo mau momento político vivido pelo Brasil. Joãozinho Ribeiro, que celebrou ano passado 40 anos de carreira musical, compositor conhecido por sua obra marcada pela crítica e denúncia social, lançou o ep “Frevo desaforado” – com participação especial de Baleiro, intérprete da faixa-título – em que sobram críticas ao “cordão dos puxa-sacos” e cita o clássico “Oração latina” (Cesar Teixeira), hino de movimentos sociais do estado.

O duo Criolina (foto), formado pelo casal Alê Muniz e Luciana Simões, comanda há três anos o bloco Bota Pra Moer, no carnaval maranhense. O nome do bloco é uma homenagem ao pernambucano Antonio Lima, um misto de gênio e louco que fez parte da paisagem ludovicense nas décadas de 1950 e 60, sendo muito conhecido pelo episódio em que carregava uma bandeira à frente dos grevistas que protestavam contra a posse do governador Eugênio Barros em 1951. Chegando à porta do Palácio dos Leões e observando as fileiras da polícia, virou-se, entregando a bandeira e dizendo: “até aqui eu carreguei, daqui pra frente vocês arranjem um mais doido do que eu”. O afoxé-tema do bloco em 2020 aportuguesa o lema francês “Libertê, igualitê, fraternitê” (Alê Muniz/ Luciana Simões/ Celso Borges), falando sobre vestir “a fantasia de amor e liberdade”, indesejada pelos sexualmente mal-resolvidos que estão no poder. Dia 25/2 (terça-feira de carnaval), o Criolina recebe os pernambucanos Otto e Duda Beat no circuito da Avenida Beira-Mar (Centro), na programação oficial do carnaval da Prefeitura de São Luís e Governo do Maranhão.

Por falar em Greve de 51, Cesar Teixeira também meteu sua colher neste angu. Ex-integrante da ala de compositores da tradicional Turma do Quinto, com que rompeu por divergências políticas (a adesão da escola à família Sarney), ele canta em “Greve de 51”: “No carnaval/ eu vou botar pra moer./ Mamãe eu quero beber/ Lamartine e rum./ Tô fazendo greve,/ Greve de 51./ Já estou no Paralelo,/ com meu chinelo/ eu vou matar essa barata/ psicopata. Ditadura nunca mais./ Eu só tenho saudade/ dos velhos carnavais,/ do baile do Moisés/ às cinco da manhã./ Nossa República/ era a Gruta do Satã”, entre citações aos que comandam a nova ditadura e cenários de antigos carnavais na capital maranhense.

O Bloco Os Comunas do Solartralha congrega frequentadores e simpatizantes de dois aprazíveis “ambientes livres de bolsominions”, o Solar Cultural da Terra Maria Firmina dos Reis, bar, armazém e livraria do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), e a Feira e Botequim da Tralha, sai com a marchinha “Solartralha” (Rondinele/ Noleto): “Minha bandeira é vermelha/ com ela não me atrapalho/ somos comunas na veia/ vou mandar o fascismo/ pra casa do caralho”.

Afiados, a ala de compositores de oposição a Jair Bolsonaro também ironizou a campanha de abstinência sexual proposta pela ministra Damares Alves, da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos. Parceria de Joãozinho Ribeiro, Cesar Teixeira e Zeca Baleiro, “Foda zero” é outro petardo explícito: “A sinistra decidiu/ que eu não posso/ brincar como eu quero/ baixou um decreto que diz/ a ordem agora/ é foda zero!”, começa. E arremata: “Zero pra ela/ e pra abstinência/ eu quero é poder/ brincar de saliência!”.

Ao cordão dos inconformados não faltarão criatividade, irreverência, bom humor e protesto. Quem disse que carnaval é coisa de alienados?

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