Cinzento remete ao antigo Previsão do Tempo, que Marcos Valle lançou no auge do período Médici da ditadura
Cinzento, de Marcos Valle, é um álbum que remete à história esquecida da música brasileira. O cantor, compositor e instrumentista carioca o concebeu pensando em outro título de sua discografia, o histórico, mas desconhecido Previsão do Tempo (1973). As alusões começam pela capa: se no antigo LP Valle aparecia afogado numa piscina, em Cinzento ele ressurge sufocado por um saco plástico.
As imagens pesadas remetem ao terror dos tempos. Previsão do Tempo referia-se ao Brasil do general Emílio Garrastazu Médici, dividido entre enxergar as torturas e os desaparecimentos políticos que aconteciam nos porões e se refugiar no hedonismo quase alegre do “desbunde total” ao qual a música do artista egresso da bossa nova se entregava. Cinzento adapta tal ideário ao Brasil bolsonarista e adota a mesma estratégia de outrora, de fazer citações sutis à realidade em meio a uma atmosfera de enlevo e fuga.
Em tudo eu acho graça/ mesmo em meio à desgraça, o artista canta em Reciclo, uma das duas parcerias com Emicida no CD, em referência ligeira à realidade ruim. Outro traço distintivo de Cinzento são as parcerias com artistas de gerações mais novas, o que inclui Zélia Duncan, Bem Gil (filho de Gilberto Gil), Moreno Veloso (filho de Caetano Veloso), Domenico Lancellotti, Kassin e Jorge Vercillo. O irmão Paulo Sérgio Valle, parceiro preferencial em Previsão do Tempo, aparece na melancólica e amorosa Nada Existe. Os tons, mesmo quando mais vibrantes, são cinzentos.