“Ela cantou com alma, com coração, transformou minhas humildes canções em obras-primas.” Assim o mineiro Silvio Cesar, hoje com 80 anos, reagiu ao disco Se Eu Pudesse Dizer Tudo Que Sinto, que Claudette Soares gravou em sua homenagem.
Os dois artistas têm mais em comum do que esse disco, no qual ele canta com a anfitriã a bossa “Nós Dois”. Silvio Cesar começou no início dos anos 1960 praticando uma modalidade excêntrica de bossa nova, que cedo derivou para o chamado sambalanço, exercitado pelo cantor e compositor nos bailes de Ed Lincoln, do qual se tornou crooner.
Em 1965, Silvio lançou a bossa de dor de cotovelo “Pra Você”, que se tornaria sucesso nacional cinco anos depois, quando gravada em tom de fossa brava por Roberto Carlos. Apresentou-se com uma ainda desconhecida Gal Costa no festival da Record de 1967 (com “Dadá Maria”) e, em 1971, elaborou guinada intuitiva parecida à de Claudette, abraçando o samba-rock em temas picarescos como “Beco sem Saída” e “O Machão”. Abaixo, Silvio Cesar fala sobre o disco de Claudette e relembra episódios de sua história na música.
Pedro Alexandre Sanches: Você já ouviu o disco da Claudette Soares com suas músicas?
Silvio Cesar: Chegou hoje, eu nem abri ainda. Mas estou louco pra ouvir. Escutei um bocado de músicas quando gravei a faixa com ela no estúdio. É lindo. Conheço Claudette há muitos anos, é uma cantora maravilhosa.
PAS: Quando você conheceu ela? De onde vem essa relação?
SC: Ih, rapaz, eu vou ter que voltar lá atrás, eu nem me lembro direito. A Claudette é uma das cantoras primeiras que me gravaram. Ela, Doris Monteiro, Isaura Garcia, Elizeth Cardoso, Pery Ribeiro. Claudette foi das primeiras, aqueles primeiros sambas que fiz. “O Que Eu Gosto de Você”, “Conselho a Quem Quiser Voltar” (1961), alguns desses ela gravou. Convivi com a minha geração e eles gravaram essas músicas – aliás, regravaram, porque todas as músicas que eu fiz foram pra eu mesmo gravar. Eu gravei, eles ouviram e depois regravavam. Uma loucura, uma coisa muito boa.
PAS: Você nasceu em Minas Gerais?
SC: Minas Gerais, isso, em Raul Soares.
PAS: Lá você já sabia que ia ser músico?
SC: Nada, rapaz, a vida me levou. Vim pro Rio de Janeiro adolescente, antes dos 20 anos, pra estudar direito. Mas no meio do caminho, rapaz, a música me pegou. Comecei a cantar de brincadeira nos bailes. Eu ia lá pra arranjar namorada e dançar, não aguentava e subia no palco, cantava uma música. Lá em Minas Gerais, onde morei, em Juiz de Fora, eu cantava, de calças curtas, mas cantava. Até eu usava meu nome verdadeiro, Silvinho Rodrigues. Depois vim pro Rio pra estudar direito, a minha família veio. De repente, comecei a cantar nos bailes. Depois o músico chamou pra uma orquestra maior, quando dei pela coisa eu estava cantando na orquestra do Waldemar Szpillman, que era uma orquestra grande, que fazia muitos bailes de formatura. Teve um mês que eu cheguei a trabalhar num escritório de contabilidade, mas tinha programados 40 bailes no mês. Caramba, como vou trabalhar agora? Pegava no trabalho às oito horas da manhã, saía dos bailes às quatro horas. Aí acabei tendo que optar. Optei, fui, fiquei, vou fazer os bailes então. Eu ganhava mais dinheiro fazendo os bailes que trabalhando no escritório. E nessa orquestra do Waldemar Szpillman, a cantora Lena Barbosa, que há pouco tempo descobri que é tia do Jorge Vercillo, ele ficou meu amigo por causa disso. No Beco das Garrafas tinha o bar Bacará, maravilhoso, cheio de gente boa, Sérgio Porto, Samuel Wainer, jornalistas, Angela Maria, gente boa. Dolores Duran cantava lá, saiu e foi cantar num bar mais à frente, no fim do beco. Lena falou: “Conheço o dono, ele está querendo um cantor, você ia ser bom pra lá”. Fui pra cantar músicas em francês, em inglês. Fiquei cantando lá, fazendo os bailes, não dormia direito, tive que largar o futebol de salão pra continuar cantando. Resultado: a música me levou mesmo, quando eu dei por mim já era profissional, cantava na faculdade de direito. Era uma complicação, faltava às provas, levava zero dos professores, fazia segunda época. Foi um trambolhão, acabei tirando diploma. Só Deus sabe como consegui aquilo.
PAS: Quer dizer que o cantor veio primeiro que o compositor?
SC: É. Do Bacará eu fui pra boate Drink, uma boate muito famosa aqui no Rio, do Djalma Ferreira. Aí conheci o Ed Lincoln, que era o pianista lá, e ele fez um disco e me pediu pra fazer umas letras pra ele. Comecei a compor com o Lincoln. Já era 1960 e poucos. Depois ele saiu pra fazer os bailes com o grupo dele e eu integrei o grupo e continuei a compor. Aí aprendi algumas coisas, a tocar violão, e comecei a compor sozinho, fazer as músicas também. Fiz muitas letras pro Ed Lincoln no começo.
PAS: Seu estilo de música é tão particular, tão difícil de classificar. Como poderíamos explicar ele?
SC: (Ri.) Isso é um elogio. Realmente é. Eu tinha muito medo de levar algum rótulo, sabe? A gente fica rotulado, fica compartimentado. Pessoal fala: ele é da bossa nova, ele é da jovem guarda, ele é do samba, ele é do brega. Eu nunca me preocupei com isso, não. Quando comecei a compor, as músicas do Lincoln eram mais sofisticadas, e eu procurava botar as letras de acordo com as melodias. A letra, na minha opinião, tinha que traduzir a melodia, pra você cantar e falar. A linguagem cantada é uma coisa, a falada é outra e a escrita é uma terceira. Nunca pensei nisso, sou de Minas Gerais e nunca pertenci a grupos de música mineira. Muitos amigos meus sim, respeito a música baiana, maravilhosa, a música de Minas Gerais é incrível, bonita, o clube da esquina, o Milton Nascimento. A música de São Paulo, Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, um gênio. De São Paulo cantei muito a música do Eduardo Gudin. Ele é maravilhoso. Então eu não pensava nisso, eu compunha de acordo com o assunto, com o tema da vida. Sempre procurei retratar os problemas humanos, o que aflige a gente. Nada de água com açúcar, nunca gostei muito de coisas piegas, ai, ai, ai, meu amor me abandonou… Gosto de falar dos problemas das pessoas, do ser humano, dos problemas essenciais. É o que mais me atraía, nada de modismo, de imediatismo, nunca gostei disso. Talvez por isso a minha música tenha ficado tão pulverizada, digamos assim, tão esparsa. Meus intérpretes vão de Roberto Carlos a Jair Rodrigues, Os Originais do Samba, Wanderley Cardoso, Negritude Junior. Tem coisa de tudo que é jeito. A música, pra mim, é a música, é uma companheira que a gente tem. Pode ser um momento de tristeza, alegria, isso ou aquilo. A música é uma arte maior, eu acho.
PAS: Ouvindo o disco da Claudette, me pareceu que ela se aproximou mais da bossa nova nas tuas canções. Qual é a sua relação com a bossa?
SC: Você tem razão, a bossa nova influenciou praticamente toda a minha geração, de lá pra cá, incluindo Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil… Porque Tom Jobim é o cara que criou as novas harmonias, os acordes mais dissonantes, mais modernos. A bossa nova, praticamente, foram as letras muito diferentes do Ronaldo Bôscoli, a própria Dolores Duran influenciou. As harmonias influenciaram muito, o mundo todo ficou impressionado pelas harmonias. Os músicos de jazz, as cantoras de jazz, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, ficaram impressionadas com a qualidade harmônica da bossa nova. Eu diria que influenciou a todos nós, eu ficava preocupado com a roupagem das músicas. As que a Claudette gravou tem aquelas letras que eu gosto de escrever, eu gosto de letras que façam as pessoas pensarem, não é aquele negócio de entrar num ouvido e sair no outro. Aí não adianta escrever poesia, né? Que a melodia seja uma melodia a que o músico dê importância, que pesquise, sinta uma certa originalidade, uma dificuldade de assimilar. Eu penso muito nos músicos e nos poetas quando componho.
PAS: Fui entrevistar a Claudette e comentamos a letra da música “Eu Quero Que Você Morra”, é muito forte.
SC: Eu não gosto de coisa banal. “Eu Quero Que Você Morra” (ri) foi o meu momento brega. A gente fala “eu quero que você morra”… O amor é uma coisa tão boa, tão sadia, tão saudável, e de repente… Mas você vê que no final da letra eu me consertei, “eu quero que você morra aqui dentro de mim”. Não que você morra na vida, não vou desejar o mal de ninguém, nunca. Eu queria gravar essa música com Roberto Carlos, rapaz. Quando eu fiz ele não estava ainda na fase de não falar coisas pesadas. Comentei essa música com ele no avião, “porra, filha da puta, essa daí eu gravo!”, “agora já passei pra frente”…
PAS: E a fase maravilhosa em que você se aproximou do samba-rock, o disco de 1971, com “Beco sem Saída”, “O Machão”?…
SC: Ah, rapaz, aquele que tem a capa que estou no asfalto com meu nome escrito, né? Deu um trabalho. Hoje em dia fazer aquela capa é coisa à toa. O cara que fotografou teve que escrever no negativo no chão pra fazer. Era uma safra de músicas que eu tinha, era uma época em que eu estava muito pensando na vida… Com a música “Beco sem Saída” eu recebi tanta correspondência aí de São Paulo. Fui descobrir que essa música era um samba-rock, olha só. Samba-rock. Me chamaram pra cantar em shows de samba-rock, falei “ah, não vou, não, não sou do samba-rock, imagina”. Fiz o “Beco sem Saída” porque na época era uma letra muito atual. Se a gente é delicado, as pessoas pensam uma coisa… Essa música tem um ritmo tão interessante que o Netinho de Paula do Negritude Junior gravou com o mesmo arranjo que eu gravei. A minha vontade era falar aquilo que Ruy Barbosa falou, “de tanto ver o forte sobrepujar o fraco”, no final ele fala “de tanto viver entre feras seria inevitável a necessidade de o homem ser fera”, mas naquela época a Censura não deixava, não, sabe? Aí fiz a letra, se eu sou educado as pessoas falam que não sou homem, se ganho dinheiro eu roubei… No final das contas a gente tem que ser uma fera mesmo, é um beco sem saída em que a gente fica. Mas você citou esse disco, eu gosto muito dele.
PAS: Roberto Carlos gravou duas músicas suas?
SC: Ele gravou duas. Além do “Pra Você”, gravou uma que eu fiz pra ele, chamada “O Moço Velho”. Essa fiz pensando no Roberto, falei com ele, fui lá, ensinei a ele. Gravou lindamente, só lamento que ele gravou muito melhor do que a música é. Fez um arranjo do Chiquinho Moraes, sofisticado, uma faixa de quatro minutos e meio com solo de orquestra. A gravação do Roberto é primorosa, admito que a dele é melhor que a minha. Eu achava que ele ia cantar um hit popular, mas a música foi pra frente de qualquer maneira. A música virou um hino, já vi músicos de sinfônica chorar com essa letra. A música é um depoimento de um homem, de um ser humano. Foi bom, deu tudo certo.
PAS: Intérpretes variados gravaram “Pra Você”, Gal Costa, um monte de gente.
SC: Ela gravou pra novela, eu acho. Ficou lindo na voz dela. Não é uma cantora, é um Stradivarius.
PAS: E você ficou levando as carreiras de músico e de advogado ao mesmo tempo?
SC: Acabei me formando. Até o terceiro ano eu estudava sério, mas daí pra frente já não vivia mais sem a música. Tinha que fazer shows, televisão, perdi um ano, fui pra segunda época, quando me formei, que peguei o diploma na mão, dei um pulo, nossa senhora, só Deus sabe o que fiz pra conseguir esse diploma. Acabei perdendo meu diploma, não sei onde ele está. Não está na parede, no baú, em lugar nenhum. Eu nunca exerci a profissão. Fui apenas um reles bacharel de direito. E um músico. Mas sempre trabalhando, tudo que consegui na vida foi com trabalho. Nunca tive foto em capa de revista, nem história de ganhar disco de ouro, nunca batalhei nada por isso. Briguei com muita gravadora por causa da qualidade das músicas. Eles queriam fazer aqueles arranjos populares, pra agradar, pra entrar nas paradas de sucesso, eu digo não, não quero. Não entro em jogada de ligar pra conseguir, as meninas ficam pedindo música pra entrar nas paradas. Nunca gostei disso. A música é sagrada. Sempre fiz a melhor música que pude, com a letra mais bonita, mais filosófica e mais simples de entender. Se eu pudesse eu teria escrito minha obra inteira com 50 palavras. Mas não consegui. Tem gente que usa muitas palavras raras, eu sempre gostei de rimas pobres, viu, Pedro?, amor com flor, paixão com coração, pras pessoas entenderem. O que interessa é a mensagem, eu acho.
PAS: Como intérprete eu diria que você é discreto, não é desses que buscam o holofote o tempo todo.
SC: Sempre achei que quando mais você se esconde mais você aparece. A gente não tem direito à arrogância, à vaidade. Eu não gosto dessas coisas. Tudo na vida é trabalho, e o trabalho que Deus me deu foi a música. Eu ia ser advogado, mas a vida não quis. Mas uso meu diploma, meus conhecimentos, agora, na defesa do direito autoral. O direito autoral é uma coisa linda. Eu mergulhei, fiquei apaixonado, levei a sério, já fui a Brasília centenas de vezes pra defender o direito autoral. É uma coisa complicada. Ninguém quer pagar direito autoral. No mundo todo, parece que as pessoas acham que os compositores fazem música porque Deus manda e não gastam nada. Uma época, quando Gil era ministro, eles queriam que a gente compartilhasse de graça a música na internet. Meu Deus, fui lá no Ministério da Cultura e falei: gente, não pode, como você pode pedir pro padeiro pra dar o pão de graça? Como ele vai comprar a farinha? Ele tem que comprar farinha pra fazer o pão. O compositor tem de ter violão, as cordas do violão, ou seja o que for. Não dá pra dar de graça. A nossa profissão é a música. Temos que ser remunerados. Você vai ver no meu livro, tem um artigo chamado “cantar, profissão ou amadorismo?”. Ainda peguei o tempo que as televisões pagavam cachês. Fiz o Fantástico muitas vezes, e ganhava (ri). Eu estou trabalhando, pô, não vão me pagar? Agora, isso aí foi mudando, mudando, mudando, hoje em dia inverteu tudo. Está tudo pelo avesso, parece que nosso país tão lindo e amado virou pelo avesso. Aqui em vez de ganhar pra cantar, você paga pra cantar. Pra mim não dá. Ainda bem que já estou com 80. Estou na colheita, se eu for plantar agora é pra colher o quê?
PAS: A questão dos direitos autorais nunca foi tão difícil como é agora…
SC: Nunca foi, nunca foi. Se eu tivesse um filho que quisesse ser artista agora eu diria: amiga, só se você mostrar a bunda… Está difícil.
PAS: Você tem um cargo nas sociedades de direito autoral, não tem?
SC: Atualmente eu sou presidente da minha. A minha sociedade é a Socinpro. Modéstia à parte, é uma sociedade-modelo. Tudo lá é aberto, transparente. O Roberto Carlos é meu afiliado. Nós éramos só de cantores, éramos 90% de cantores. Agora temos mais autores do que intérpretes. A gente luta muito, mas o que tem de gente querendo cobrar direito autoral pra ganhar um dinheiro, burlar a lei… É uma complicação, ninguém quer pagar direito autoral. As pessoas acham que a música está no ar, que é de graça, mas não é. É um esforço danado. Agora, enquanto estamos falando, tem alguém lá no morro com um cavaquinho na mão tentando fazer tem samba pra mostrar pro Zeca Pagodinho. Quem é que não quer? Mas é uma profissão difícil, dura de levar, complicada. A profissão de jogador de futebol também é complicada. A música é imaterial, como você vai vender? É complicado. Mas é ter esperança que a gente ainda consiga tomar o nosso lugar, porque a música é imprescindível. A cultura em geral, você vê, o poder dos Estados Unidos foi baseado na cultura. Por que eles dominaram o mundo? Com a música, o teatro, o cinema de Hollywood. O jeans é uma coisa americana, está aí, dominou o mundo. O idioma inglês você sabe em qualquer lugar do mundo. E depois ainda vem o poderio bélico deles. Vai ser difícil tirar Donald Trump de lá, mas tomara que consigam.
PAS: Voltando à Claudette, ela comentou que é a primeira vez que alguém grava um disco só com músicas suas.
SC: É verdade, uma honra muito grande que tenha sido uma cantora do nível dela. Eu aceitaria, ficaria muito honrado, com qualquer homenagem de qualquer cantor, mas por um acaso foi a Claudette, uma cantora de alto nível, de primeiro time. Ela cantou com alma, com coração, transformou minhas humildes canções em obras-primas. Cada faixa daquele disco é uma obra-prima. Eu acho.
PAS: E você, não vai lançar alguma coisa em breve?
SC: Eu vou ver. Eu lancei um disco chamado Viagens Paralelas no final de 2017, eram as últimas músicas inéditas que eu tinha. Fiz um samba pro Zeca Pagodinho, que conheci, no livro tem uma história maravilhosa com ele. Fiz o disco em homenagem a ele, pra retribuir tudo que fez, ele é maravilhoso, fiquei apaixonado por Zeca Pagodinho. E tem coisas com Leny Andrade, Alcione… O foco é só música inédita. Eu faço músicas de vez em quando, nesse disco fiz uma especial atribuída à minha família, chamada “Sim, Eu Vi”. Já fiz muita música, quase 300, vou fazer música nova agora pra quê? Evidentemente, eu faço uma música na hora, a gente não esquece como se faz. Agora, fazer por fazer não faço mais, não.
Leia aqui entrevista com Claudette Soares.
Maravilhoso Silvio César e Claudete amooo parabéns Deus abencoe sempre
Excelente entrevista e ótimas músicas.