Na ilha mais isolada do mundo, Sentinela do Norte, no Oceano Índico, entre a Índia e Mianmar, os visitantes são recebidos a pedradas e flechadas. Náufragos não duram uma hora na praia, são executados. Uma vez, uma expedição diplomática chegou a avistar-se com os nativos, mas eles viraram de costas para os visitantes e mostraram os traseiros, desafiadoramente.
O Brasil, sob Bolsonaro, está se sentinelizando progressivamente, tornando-se isolado e pirracento. Claro que os sentinelenses do norte são uma sociedade isolada original, o nosso processo é de fechamento voluntário. Para não parecer que estou sendo meramente discursivo, limito-me a listar abaixo uma série de ações do chefe de Estado brasileiro que podem ajudar a clarear essa minha argumentação.
Jair Bolsonaro ofendeu o futuro presidente da Argentina, Alberto Fernández, que vai dirigir o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Foi grosseiro com a primeira ministra da Alemanha, Angela Merkel, e seus seguidores zombaram da saúde da chanceler (a Alemanha é o quinto maior parceiro comercial do Brasil). Ofendeu a Noruega, atribuindo responsabilidades ambientais alheias ao País. Ofendeu de forma misógina a mulher do presidente francês Emmanuel Macron, Brigitte Macron, repetidas vezes, algumas delas usando como aríetes seus ministros de Estado, como Paulo Guedes e Abraham Weintraub. Agrediu a Alta Comissária das Nações Unidas, Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile.
Jair Bolsonaro apostou todas suas fichas no apoio de dois supostamente leais aliados: Donald Trump (Estados Unidos) e Benjamin Netanyahu (Israel). Pode ter sido precipitado: pesquisa da CNN mostra que 59% dos americanos acham que Trump não merece a reeleição no dia 3 de novembro de 2020. Já Netanyahu perdeu as eleições parlamentares essa semana, no início de um processo que deve alijá-lo do poder. Na Itália, o ultradireitista Matteo Salvini, com quem Bolsonaro compartilhou teses e diatribes, também sofreu derrota recente.
Em uma de suas primeiras exibições diplomáticas, o chanceler de Bolsonaro, Ernesto Araújo, declarou à imprensa internacional que os outros países do mundo têm “inveja” do Brasil por causa do nível de acesso que o País teria em relação aos Estados Unidos. Imaginem a eficiência de tal discurso no relacionamento turístico, cultural e de abertura de mercados.
A única ação concreta que justificaria a tese da “inveja” de Araújo seria o acordo do etanol do dia 2 de setembro, que permite que mais etanol americano entre sem tarifas no Brasil durante um ano. A medida beneficia os Estados Unidos.
No dia 11, em discurso na Heritage Foundation de Washington (uma think tank conservadora), Ernesto Araújo completou o pacote: disse considerar a pauta da mudança climática, que é uma preocupação global, “conspiração marxista”. Também recentemente, para explicar porque mandou a mulher em viagem para Paris num jato da FAB, teria dito que está boicotando a companhia aérea Air France.
Os resultados, não se pode negar, vêm rapidamente. Há alguns dias, o Parlamento da Áustria vetou o acordo comercial entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, que tinha sido festejado pelo governo em 28 de junho (após 20 anos de negociações) e criaria a maior área de livre comércio do mundo. Um dos motivos foi a gestão ambiental do governo Bolsonaro.
No cenário nacional, a situação é pior, se é que isso é possível. Jair Bolsonaro iniciou o governo livrando-se de um dos seus mais fieis aliados, o ex-secretário da presidência, Gustavo Bebbiano, envolvido em um esquema de “laranjas” eleitorais no partido que elegeu Bolsonaro. Com isso, o presidente perdeu apoio em seu próprio núcleo duro (com o tempo, foi perdendo apoio também nas “comunidades eclesiais de base”, ejetando de seu exército gente como Lobão, Danilo Gentili e outros).
Recentemente, rompeu com o governador de São Paulo, João Doria, com quem fez dobradinha eleitoral, iniciando uma série de agressões públicas contra o ex-parceiro. Ato contínuo, seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, conclamou os filiados ao PSL a abandonarem o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.
Assim, Bolsonaro ganhou como adversários os governadores de São Paulo e Rio. Mas convém lembrar que ele também ofendeu os governadores da Bahia e do Maranhão. Sendo preciso, ofendeu todos os governadores do Nordeste.
O líder do governo Bolsonaro no senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), está sendo afastado da articulação política após um movimento investigativo que Bezerra atribui ao ministro da Justiça do governo, Sergio Moro. Há um evidente afastamento entre Moro, o mais popular colaborador, e Bolsonaro, provocado talvez pelas próprias pretensões políticas de ambos. Para completar, essa semana, um dos mastins do presidente, o senador Major Olympio, pediu a saída de seu filho Flávio Bolsonaro do seu partido, o PSL. Os outros filhos do presidente, Carlos e Eduardo, dedicam parte do seu tempo livre, que é muito, a espicaçar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Ou seja: constroem terrenos minados tanto no Senado quanto na Câmara, mas com notável habilidade.
No campo da disputa de ideias, é preciso dizer que a imprensa do mundo todo (excetuando-se um ou outro site e Silvio Santos e Edir Macedo) é refratária às ideias de Bolsonaro no campo ambiental, diplomático e humanístico. É possível dar aqui links de reportagens demolidoras de Le Monde, Liberation, Der Spiegel, La Repubblica, NYT, Washington Post, Financial Times, Economist, The Guardian, Independent, etc etc etc. , mas iria ficar um artigo insuportável de longo.
Tenho compaixão por quem ainda consegue ser otimista com um cenário de isolamento dessa dimensão (embora compaixão nem sempre ande acompanhada de paciência).
Uma doutrina é um conjunto de ideias que formam um sistema (político, econômico, filosófico). O bolsonarismo, estou convencido disso, é uma antidoutrina. Atua na morte das ideias, quaisquer que sejam. Sua ação representa uma espécie de fantasmagoria administrativa e política. O problema é que arrasta consigo para o sono da razão um País inteiro.