Mulher de vozes

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Ligiana Costa dança, a caminho de Mangue Seco. Foto: Zema Ribeiro
Ligiana Costa dança, a caminho de Mangue Seco. Foto: Zema Ribeiro

A cantora Ligiana Costa esteve em São Luís mês passado. Participou da etapa ludovicense do festival Verbo, de performance, ministrando uma oficina e se apresentando com um grupo de artistas locais na performance baseada no poema de cordel “O lunático”, de Sebastião Marinho, no Espaço Chão (Rua do Giz, Praia Grande).

Uma das mais gabaritadas profissionais da área no Brasil, Ligiana Costa é mestre em Filologia musical de textos da Renascença e Idade Média pela Faculdade de Musicologia de Cremona (Itália), doutora em Ópera Barroca pelas Universidades de Tours (França) e Milão (Itália) e concluiu em 2016 pós-doutorado pela USP (Brasil).

Traduziu os livros “Teatro à moda” (Editora Unesp, 2010), de Benedetto Marcello, “Cartas de Claudio Monteverdi” (Editora Unesp, 2011), e “O Corego” (Edusp, 2018), anônimo do século XVII, vencedor do prêmio Flaiano de melhor livro de italianística, em Pescara, na Itália.

Lançou ainda os discos solo “De amor e mar” (2009) e “Floresta” (2013), e com Edson Secco, com quem forma o duo Naked Universe (NU), lançou os discos “NU – Naked Universe” (2016) e “Atlântica” (2019). Atualmente prepara-se para lançar o terceiro trabalho solo, intitulado “EVA – Errante Voz Ativa”, composto por oito faixas autorais, todas batizadas com nomes de mulheres e todo arranjado apenas com vozes – de vários convidados e convidadas. A reportagem ouviu em primeira mão Nice, que leva o nome de sua companheira, uma joia em que ela trocadilha com a palavra inglesa “nice”, entre cujas traduções está “bonito/a”. Atualmente ela é responsável também pelo podcast do Theatro Municipal de São Paulo (para onde traduziu o libreto e escreveu o texto do programa da ópera “Rigoletto”), disponível no Spotify.

Entre visitas a lugares que ela considera encantadores e sagrados, como a praia de Mangue Seco, a Casa Fanti-Ashanti e o jardim da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo – onde se deixou filmar cantando Boi da lua, de Cesar Teixeira, “sabor da infância”, em seu dizer – ela conversou com exclusividade com Farofafá.

Zema Ribeiro – Você é descendente de maranhenses, sua avó Floresta, a quem você dedicou seu segundo disco solo, batizado com o nome dela, e seu pai, o jornalista Celso Araújo. Você nasceu onde e como é sua relação com o Maranhão?
Ligiana Costa – Eu nasci em São Paulo, por acaso. Meus pais se conheceram em Brasília, meu pai é maranhense de Barra do Corda e minha mãe é brasiliense, eu fui concebida lá, fui descoberta na barriga da minha mãe no Xingu e fui parida em São Paulo. Eu sou uma brasileira bem brasileira. Mas fui pra Brasília bem bebezinha, então eu não tenho uma relação com São Paulo como uma paulistana. Com o Maranhão eu tenho muitas lembranças de criança, por que eu fui com meu pai algumas vezes para Barra do Corda, numa viagem muito árida, mas muito bonita, por que era uma viagem de ônibus que durava dois, três dias, e eu adorava fazer essa viagem, por que era a minha reconexão com meu pai, que não morava comigo, mas também uma conexão com o Brasil profundo. A gente passava pelo Tocantins, me lembro que uma vez a gente foi parado pelos índios Guajajara, ficamos por um tempo parados ali como sinal de algum protesto que eles estavam fazendo. E eu adorava ir pra Barra do Corda, tem dois rios maravilhosos, Corda e Mearim, e eu ficava o dia inteiro no rio, comia peixe, passeava com meu pai pela mata, então minha lembrança é muito saudosa. Eu me lembro muito de meu pai comigo, de bicicleta, na cidadezinha dele, Barra do Corda, e eu atrás, e ele falava com as pessoas: “mano, aonde é isso? Mano, aonde é isso? Irmão…” Eu achava muito lindo, ele chamava as pessoas de irmão. Eu achava isso tão bonito. Depois eu percebi que é uma coisa do maranhense mesmo, mas para mim era super poético ver. Pra mim o Maranhão, mesmo adulta, tendo ido não tanto tempo atrás, quando eu estava criando o “Floresta”, e depois vindo agora, mesmo assim Barra do Corda segue sendo para mim um lugar de nostalgia, um lugar de certa forma idílico, nostálgica, até o fato de São Luís não ter virado um polo de turismo, assim como virou, sei lá, Salvador, tem uma coisa meio decadente, nostálgica, que eu gosto muito, me emociona, o jeito de viver das pessoas, tem uma simplicidade, uma doçura que eu gosto muito.

ZR – Você está no Maranhão, desta vez com o festival Verbo, de performance. Fale um pouco deste trabalho e comenta a agenda e geografia, quando e por onde ele ainda vai passar Brasil afora?
LC – Aqui foi a última apresentação, foram só duas. O Verbo é um festival de São Paulo, conectado a uma galeria, chamada Galeria Vermelho. Esse ano ele fez, pela primeira vez, pelo que eu saiba, uma passagem, uma conexão com o Maranhão, com o Espaço Chão. Eu tive relação especialmente com a francesa com quem eu trabalhei, a Célia Gondol, e era um trabalho de vozes [projeto para um coro com cantores locais].

ZR – Você já tinha dois discos solo quando se juntou ao Edson Secco no duo NU, o Naked Universe. Como se deu esse encontro e como surgiu a ideia?
LC – Esse encontro se deu de forma prática nos ensaios de um espetáculo chamado “Rosa”, sobre a Rosa Luxemburgo. Esse espetáculo tinha música do Edson e eu fazia preparação vocal das atrizes. A gente se encontrou e se deu muito bem, acabou que eu contribuí com a produção musical dele, eu que estava ali só para trabalhar do ponto de vista técnico as vozes das atrizes. Aconteceu uma coisa mágica, na verdade. Eu andava muito exausta da ideia de carregar meu trabalho solo e essa relação que nem sempre é fácil com os músicos que acompanham as cantoras. Um dia eu estava triste, sentada no Sesc Consolação e apareceu o Criolo, e na hora que ele apareceu, eu estava assim sentada numa mesa, e eu pensei: “se ele vier até mim, eu vou falar com ele; se ele não vier até a mesa que eu tou, eu não vou falar com ele”. E eis que entre tantas mesas ele escolheu exatamente a que eu tava, e aí eu puxei o papo com ele, ele tinha ido assistir o show que eu cantei com [Gilberto] Gil, e ele perguntou: “o que você tem feito?”, e eu “ah, tem sido difícil, estou tentando fazer o lançamento de um disco que eu fiz, chamado “Floresta”, mas não tá fácil, eu só consegui fazer poucos shows”. E ele teve respostas muito lindas, muito sábias, como ele parece ser, eu não conheço ele tão bem assim, e ele falou: “às vezes é assim mesmo, as coisas nem sempre ficam se repetindo, às vezes coisas boas acontecem só uma vez”. E aí ele olhou para debaixo da mesa, pra cima, e falou: “você tem duas pernas, tem dois braços, faz um trabalho novo”. E foi muito louco, por que na hora aquilo me soou como um tapa e uma provocação, e curiosamente dias depois o Edson me chamou para conversar e sugeriu que a gente criasse um trabalho nosso. E eu adorei, por que é uma banda, é diferente de um trabalho solo, que eu também inclusive, agora estou me preparando para voltar a ter. Mas o NU surgiu como isso, uma banda criada dentro de um processo de teatro, mas que depois se tornou um grande encontro entre dois artistas muito diferentes. O Edson é um cara ligado a cinema, a sound design, a máquina, e eu sou uma pessoa ligada a palavra, ao orgânico, ao canto, então é isso, o NU se tornou essa mistura, de certa forma abençoada pelo Criolo. Depois eu o encontrei e contei pra ele sobre essa história, por que foi depois daquela conversa que surgiu o NU.

ZR – Já li a crítica classificando o trabalho do NU como “barroco eletrônico” e também como “pop eletrônico experimental”. Você concorda? A mim sobressai também, eu percebo muito fortemente, a influência da música indígena. Que outros aspectos você destacaria na sonoridade do NU?
LC – Que honra que você observa uma influência de música indígena no NU. Acho que isso faz parte de minha batalha [risos], ali dentro, para que as coisas soem muito orgânicas também, muito máquina e muito orgânico, é um pouco um contrassenso, mas eu gosto muito dessa relação entre o orgânico e a máquina. Eu gosto muito de evocar ritmos tradicionais, não estou imitando, mas evoco ritmos tradicionais, ritmos africanos, às vezes coisas do candomblé, que me tocam, mas eu evoco de forma muito livre, não são citações, são lembranças minhas, eu estive em várias realidades e situações da minha vida, musical e vida de passagens e caminhadas, então eu gosto muito de trazer tanto essa coisa do barroco, que de certa forma é a minha formação mesmo, o tipo de melodia, o tipo de poética, o tipo de estética, essas grandes explosões, a calmaria que é seguida de uma grande explosão, uma grande explosão que é seguida de calmaria, o frio e o quente, a guerra e o amor, esses contrastes, o barroco é feito de contrastes e eu gosto muito de uma música que se faz assim. Então o NU é muito o reflexo barroco nesse sentido, mas também é isso, também é muito Brasil, muito andarilho e solto. Eu gosto muito disso do NU, dessa liberdade. Outros aspectos que eu destacaria? Engraçado, hoje eu estava falando com uma pessoa e ele falou: “engraçado, você fala pouco das letras do NU”, e realmente eu me pego um pouco me boicotando como letrista, como compositora, por que não falo muito, mas as letras do NU, muitas vezes elas são singelas, mas elas têm uma potência. Hoje mesmo eu estava ouvindo Guian, que a gente está finalizando um clipe, e vendo como é bonito, tem várias preces, tem várias convocações, tem várias coisas que eu gosto do jeito que eu tenho escrito as letras do NU.

ZR – “Atlântica”, o segundo disco do NU, saiu apenas em plataformas de streaming. É um caminho sem volta? Vale tanto para o duo quanto para tua carreira solo?
LC – Não sei o que dizer sobre esse assunto, não foi muito pensada nesse caso específico do NU. Eu acho que a gente se deu conta de que o nosso trabalho circula muito pelas plataformas de streaming mesmo, talvez o tipo de público. A gente pensa em fazer vinil, eu adoraria fazer vinil, mas cd a gente não sentiu a necessidade. Por mais estranho que pareça, ninguém pergunta no show por cd, as pessoas perguntam por camiseta ou moleton, mas por cd não perguntam, não pedem, pra esse disco a gente não fez por enquanto, mas pode ser que, quem sabe? Eu adoraria fazer vinil, por que é um trabalho que tem um refinamento sonoro bem mais alto que o primeiro disco. Pro meu trabalho solo devo fazer exemplares em cd, até por que eu gosto de ter o objeto para entregar para as pessoas, mas eu mesmo enquanto ouvinte de música eu praticamente não ouço mais cd. Eu ganho o cd, mas boto pra ouvir no Spotify, hoje em dia, sabendo que a qualidade é menor, mas pela praticidade eu ouço quase tudo no streaming.

ZR – “Atlântica” tem sete faixas, compostas em sete dias na Mata Atlântica. Fale um pouco sobre esse processo.
LC – A vida em São Paulo é uma loucura, é muito diferente da vida em São Luís, no sentido de correria, de loucura, essa é uma coisa que eu não gosto de São Paulo, é que as pessoas estão sempre corridas. Isso aconteceu com o NU, muito, uma dificuldade de a gente se encontrar, de a gente se concentrar, a gente marcava de trabalhar no próximo disco, que acabou vindo a ser o “Atlântica”, e não tinha tempo, eu chegava no estúdio, o Edson estava cansado, já tinha passado por um dia inteiro de trabalho e chegou numa hora que a gente se deu conta, os dois, de que a única forma pra gente ter um trabalho novo seria a gente se fechar num lugar, ir para o meio do mato e trabalhar. Aí a gente conseguiu essa casa, na Mata Atlântica, um sítio assim lindo, e a gente ficou uma semana lá. Realmente por uma semana eu só vi Edson, não vi nenhum outro ser humano durante sete dias, a gente levou comida, levamos os meus dois gatos, e foi incrível, a gente criou quase um ritual, todo dia de manhã a gente acordava, a gente ia compor, muitas vezes a partir do zero, eu especialmente tinha levado muita coisa pré-gravada, ideias de melodias, até de mini-arranjos, de letras. O Edson tinha algumas ideias também, a gente partia delas ou do zero, era isso. A ideia era que a cada dia a gente compusesse uma música nova, e compor pro NU é isso, compor a melodia, a letra e o arranjo, não é só fazer a melodia e a harmonia, normalmente a gente já trabalha o arranjo junto com o processo, então era bem profundo, muitas vezes a gente ia até a madrugada trabalhando. Especialmente eu lembro de a gente trabalhar até muito tarde numa música chamada Awaken, que pra mim talvez seja a mais forte desse disco, e eu lembro da gente trabalhando incansavelmente até ela ficar praticamente como ela está no disco. Depois desses sete dias a gente gravou as vozes num outro estúdio e finalizou no estúdio do Edson algumas coisas, e depois foi pra mixagem e masterização. Mas mesmo assim ainda demorou um tempão, bem mais do que eu gostaria que tivesse demorado pra sair. Mas o nó do trabalho, a semente, o fruto principal realmente se deu nesses sete dias de reclusão na mata, e foi muito incrível, por que a gente pegou, pareciam várias estações do ano em sete dias, a gente pegou calor de eu ir nadar no lago e frio de ter que acender a lareira em casa, foi muito interessante também essa diversidade de temperaturas.

ZR – Como é se equilibrar entre a carreira solo e o NU? Você está preparando disco novo, o que pode adiantar?
LC – Eu andei muito afastada de minha carreira solo. Até agora eu fiquei focada demais no NU e nas minhas outras atividades, enquanto acadêmica, as coisas que eu faço como musicóloga. No final do ano passado eu decidi voltar a trabalhar para mim mesma. Então agora é que eu vou saber dizer como é se equilibrar entre a carreira solo e o NU, por que até então eu estava só NU, nos últimos quatro anos. Agora eu estou preparando um disco solo, produzindo junto com o Daniel Maia, que é um cara de teatro. Curiosamente o Edson vem do cinema, parece que estou gostando de estar entre os dramáticos [risos], e o Daniel, a gente tinha feito um trilha sonora para uma peça muito linda, a peça chama “Língua em pedaços”, é uma trilha de composição dele, eu cantei a trilha inteira, é a minha voz em várias camadas. Por conta dessa experiência eu chamei o Daniel pra gente fazer um disco só de vozes. O que tá vindo aí em breve, com a graça das deusas, é um disco chamado “EVA”. EVA quer dizer Errante Voz Ativa, é um disco de oito músicas, cada uma com nome de uma mulher e todas arranjadas somente com vozes, eu convidei vários cantores e cantoras. Acho que vai ser bem potente, estou bem feliz de realizar um trabalho novo.

ZR – O governo de Jair Bolsonaro completou 200 dias. Qual a sua avaliação?
LC – Não sei o que te dizer, é a pior possível. Eu acho que o mais importante é pensar qual o prognóstico de nossa avaliação, qual a avaliação da gente, que a gente faz? Desse cara eu esperava isso mesmo, eu esperava um pouco menos terrível, você acredita? É assustador tudo, é um vômito por dia, é um desrespeito a cada minuto, é um horror! Eu não saberia classificar o que a gente está vivendo, estamos muito assustados ainda, não estamos organizados o suficiente, acho que aquela nossa fala “ninguém larga a mão de ninguém” não valeu, por que a gente já largou várias mãos no meio do caminho, dos índios, do MST, dos movimentos de moradia… Eu falo a gente assim, de tudo, não especificamente de mim, nem de alguém em especial, mas não estamos nos posicionando da forma como a gente deveria. A gente tem muito o que aprender com alguns povos, como os franceses e os argentinos, que vão correndo pras ruas assim que acontecem as coisas. Eu também confesso que é tanta dor que a gente vai vivendo, dentro de um processo, um governo como esse, ainda mais com a prisão do Lula, com a justiça, o golpe contra Dilma, é tanta porrada, tanta chibatada que a gente vai levando no lugar do imaginário, das ideias, por que a gente não levou até agora chibatada física, que a gente vai se sentindo enfraquecida, que a gente prefere ficar cuidando de casa, cozinhar, pensar em outras coisas. Minha avaliação sobre o governo Bolsonaro é a pior possível, mas infelizmente eu não acho que a nossa avaliação seja a melhor possível. Eu acho que a gente tem muito trabalho pela frente, um trabalho de base que realmente precisa ser feito, um trabalho de solidariedade que está longe de ser o ideal no Brasil, em geral. As pessoas, não só a direita, que é muito egoísta, mas nós somos um povo bastante egoísta. Não é possível que a gente veja o que está sendo feito aos povos indígenas no Brasil e a gente não esteja nas ruas brigando e quebrando as coisas para que as coisas mudem, para que exista algum respeito. A gente precisa de fato colocar em prática o “ninguém larga a mão de ninguém”.

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