Entrevistei André Midani algumas vezes nos anos 2000 e, dentre vários executivos do disco com que conversei, ele exibia algo evidentemente especial. Diferente dos pares que o sucederam na roda viva da indústria musical, Midani falava e agia como um artista. Não era propriamente um artista, era um executivo, mas nutria uma identificação evidente com os artistas, muito maior que com a parte mecânica da coisa. Era possível tatear no ar a paixão com que se referia a Aracy de Almeida ou Jorge Ben, a Elis Regina ou Rita Lee, a Gilberto Gil ou Tim Maia. O elenco de artistas que trabalharam sob supervisão dele é formidável e abrange um verdadeiro “quem é quem” da música brasileira entre o advento da bossa nova, em 1958, e os anos 1980.
Muitos artistas guardam em silêncio o nome de Midani, e isso pode ser mais um dos segredos bem guardados da história da música nacional: o estrangeiro que ajudou a posicionar a bossa nova, a tropicália e o pop-rock dos anos 1980 no cenário musical brasileiro não devia ser um sujeito fácil. Deixou afetos e silêncios. Mas, fácil ou difícil, ele teve sob sua guarda o maior elenco de artistas geniais de toda a nossa história. Transcrevo abaixo trechos de entrevistas que fizemos, suficientes para dimensionar o tamanho e o peso de André Midani na música do país em que ele escolheu viver.
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Na Folha de São Paulo, em 28 de dezembro de 2001, ele fala da liquidação de artistas que promoveu na Philips pré-tropicália e do eterno complexo de inferioridade brasileiro (em vigor em 2019 de modo dramático e catastrófico):
Pedro Alexandre Sanches: Como chegou ao Brasil?
André Midani: Nasci na Síria, onde fiquei até dois ou três anos, e fui para a França. Em 1955, havia a guerra da Argélia, que eu não quis fazer. Entrei no rol dos desertores. Cheguei ao Brasil meramente por acaso, pois tinha de encontrar países que não precisassem de visto. Peguei um navio sem saber bem onde ia ficar. Quando vi a baía da Guanabara, achei uma coisa de outro mundo. Todo brasileiro devia um dia pegar um navio para poder entrar no Rio pela baía. É uma coisa assim sublime. Disse: “Aqui é que vou ficar”. Tive muita sorte, dez dias depois eu estava trabalhando com disco, na Odeon. Em 1955 havia ali Violeta Cavalcanti, Dorival Caymmi, Raul de Barros, Altamiro Carrilho, Ademilde Fonseca… Como se chama essa senhora fantástica, superlésbica, de óculos, feia? Aracy de Almeida.
PAS:Era a geração que seria substituída pela bossa nova?
AM: Quando cheguei, já achava que não havia música brasileira para a juventude daqui. Isso foi a coisa que mais repeti dali em diante. Caí no meio da bossa nova. Meu papel ali foi um papel muito esquisito. Acho que fui um catalisador. Quem levou João Gilberto para a Odeon foi Caymmi. Caymmi o levou a Aloysio de Oliveira e a mim. Tivemos o entendimento de dizer: “Vamos nós”.
PAS:O que você, estrangeiro, pensava das acusações de que a bossa americanizava a MPB?
AM: Disseram o mesmo do Pixinguinha, do Caetano Veloso, e por aí vai. É um país muito esquisito. O único problema que o Brasil tem é um complexo de inferioridade. É como se uma pessoa tivesse um profundo complexo de inferioridade, como eu já tive quando era menor. Você diz: “Uma pessoa tão bonita, por quê? Abra, viva, seja bom, seja bonito”. O que é ser brasileiro? É um gueto? Não.
PAS:Como foi parar na Philips?
AM:A Philips estava aqui no Brasil havia 12 anos e tinha grandes dificuldades de rentabilidade. Os alemães e os holandeses estavam começando a se impacientar. A palavra é horrorosa, mas fui para liquidar um montão de artistas, entre 150. Os importantes estavam lá no meio, a companhia nunca chegava a eles. Fiquei em casa dias ouvindo, separando. De 150 fui para cem, daí para 80, até chegar a uns 50. Foi penoso. Mas a companhia se abriu mais para a juventude brasileira. Me encontrei com a tropicália, que estava lá, ainda não desenhada, perdida no meio de 150 artistas. As pessoas olhavam o pessoal da tropicália como se fossem cidadãos de segunda categoria. Nunca fui uma pessoa propriamente criativa, mas sou como um cão de caça. Se há um bichinho lá que é “o” bichinho, eu o identifico mais rapidamente. Atrás de qualquer grande artista há uma grande personalidade, mais importante que o talento puramente musical.
PAS:Como era sua relação com o regime militar?
AM: Tínhamos todos os artistas exilados. Definitivamente a relação era tensa, porque éramos os responsáveis jurídicos por eles. Eu, como presidente da companhia, muitas vezes tive que ir a Brasília. Era tenso, mas a coisa mais tensa foi o descobrimento do movimento black. Os militares achavam, com toda a razão, que, se um dia a favela fosse se politizar, se militarizar, era a revolução social neste país. É assim até hoje, a coisa está lá em cima. Se o pessoal resolver lutar, vira a Palestina.Não sei quem inventou isso, mas, se uma vez tive problema, inclusive com possível expulsão do país, foi quando alguém disse que eu recebia dinheiro do movimento black norte-americano para comandar a subversão nas favelas. Aí passei uns dias ruins.
PAS:Você recebia dinheiro?
AM: Não, é porque aí eu já estava na Warner, e eles achavam que porque era a Warner…
PAS: Wilson Simonal morreu dizendo que você “veio para acabar”. O que houve entre vocês?
AM: É penoso dizer isso… Tive muitos problemas políticos dentro da companhia, por causa de Chico Buarque sobretudo. Um dia uma pessoa muito importante do governo militar, que não vou nomear, me pediu para contratar Wilson Simonal. Disse: “Se você quiser continuar como está, não pode ter só artistas que sejam contra o regime. Tem que ter alguém a favor, tem que contratar o Simonal”. Olhei aquilo com perplexidade, mas tive que contratar.
PAS:Por motivos artísticos você não o contrataria?
AM: Não, de jeito nenhum. Não poderia, porque ele era a antítese. Tive que ir artista por artista, entre os mais importantes, explicando que ia ter que contratar o Simonal. Claro, não era um bichinho amado na companhia.
PAS:Hoje as companhias acreditam que inventam artistas, não?
AM: Tudo bem, deixa elas acreditarem. O artista para eles é um produto. Isso nunca deu certo comigo. A indústria de disco é mais próspera e bonita e útil identificando as pessoas que já têm isso lá dentro e que precisam de ajuda para colocar para fora. Foi também o que eu, Pena Schmidt e Liminha fizemos com o rock nos anos 1980. Para que você vai inventar um artista se já tem tantos? Hoje o Brasil mudou muito, e os talentos estão em lugares onde antigamente a gente não procurava ou procurava menos. Expressam coisas que nós, classe média branca, ignoramos, desconhecemos ou reagimos contra.Um exemplo é o tal do rap brasileiro. Um grupo que respeito sumamente é O Rappa. Marcelo Yuka é uma inteligência. Quando você encontra um Yuka, você gruda no Yuka, ele sabe. Quando encontra um Chico Science, você gruda, eles sempre são a ponta dum iceberg. Como há esses, deve haver outros. Eles não estão em companhias grandes? Muito bem, o que você quer que eu diga? Azar.
PAS:Que análise você faria deste momento da indústria local?
AM: O drama tem sido que os presidentes das companhias só olham a participação no mercado que têm: “Eu quero ter 20%, 30%”, “estou ferrado porque tenho 15%”. Ficam dentro desse gueto digladiando. Enquanto isso, o mundo vai correndo. O governo brasileiro é fogo, mas a pirataria é uma história antiga, creio que não deram o suficiente em empenho para proteger seu mercado. Mas não quero me preocupar, é problema dos meninos, não é comigo. Tenho 69 anos, os meninos que vão fazer a música de amanhã têm 20. Vão me olhar como se fosse um túmulo.
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Também na Folha, em 21 de maio de 2003, em entrevista em dupla com a repórter Laura Mattos, Midani escancara os meandros do jabaculê na indústria fonográfica e afirma que esse tipo de suborno é universal, e não apenas uma prática da indústria musical (episódios como o do mensalão, dois anos mais tarde, concederiam razão a Midani):
Pergunta: Na indústria fonográfica, é unânime a afirmação de que não existe jabá no Brasil. É verdade?
AM: Não, o jabá existe. Acho que o jabá sempre existiu. Não é uma coisa nova, nem particular da indústria fonográfica.É uma coisa universal, acho que desde que o homem começou a existir. Sempre se ouve falar “vamos acabar com a prostituição”, “vamos acabar com as drogas”, “vamos acabar com o jabá” – que é uma corrupção, não é? O mundo nasceu corrupto e acabará um belo dia na miséria da sua corrupção. Tendo dito isso e indo ao mercado musical, o jabá, porquanto eu saiba, já existe desde o século XIX, quando o grande astro da música era a ópera. Havia um grande terreno de ensaio dos novos tenores e sopranos que estavam para ser descobertos, em Marselha, na França. Lá, os empresários de novos talentos da época compravam 50, 80, cem lugares dos teatros e davam de graça para as pessoas aplaudirem muito. Era uma forma de jabá. Isso é inerente ao negócio, existe desde o início da música como setor lucrativo. Quando cheguei no Brasil, em 1955, o jabá não existia do jeito que possa ser pensado hoje. Mas havia meios de pressão, desde aquela época. Tal como ele é hoje, e em quantidades talvez menores do que agora, o jabá começou, creio, em 1970, 1971 ou 1972. Eu tinha uma parte grande dos artistas importantes daquela época, então não tinha tanta preocupação. Fazia sucesso no rádio porque os artistas genuinamente faziam sucesso.
Mas num belo dia um colaborador meu chegou dizendo que estava havendo um movimento segundo o qual o pessoal do rádio gostaria que se reconhecessem seus méritos. Ele foi conversar com eles e voltou me dizendo que tínhamos que tomar certo cuidado, porque se havia formado uma rede entre vários programadores importantes de Rio e São Paulo. Eu disse: “O que me importa?”. Tive a precaução de telefonar para alguns artistas e explicar o que estava acontecendo, que eu não estava a fim de entrar naquilo e que estava dando a instrução de não participarmos. Os artistas apoiaram, aplaudiram. Para minha surpresa, uns dias depois a gente saiu de programação.
P: Saiu literalmente, por completo?
AM: Não me lembro direito mais, mas a imagem que tenho é de que os nossos discos de sucessos naquele momento – havia um de Chico Buarque, por exemplo – saíram de programação. Aguentei uma semana, duas semanas. Na terceira não deu mais para aguentar, porque os próprios artistas chegaram dizendo: “Pelo amor de Deus, como vai ficar essa história?, a gente está fora do ar”. Era uma preocupação legítima deles. Então foi, creio, a primeira vez que isso aconteceu. Dali por diante houve altos e baixos, e o jabá estava instalado. Tomei uma atitude bastante pragmática, dizendo: se esta é a regra do jogo, lá vou eu com a regra do jogo.
P: Quais eram as regras do jogo?
AM: As regras eram lamentáveis, porque, como em muitas coisas aqui no Brasil, não eram profissionais. Eu tinha vindo em 1955 do México, onde o jabá rolava com grande despudor. Mas lá, um dia, estava eu na sala de um diretor de companhia, competidor meu, e tocou o telefone. Era um jabazeiro, e meu colega disse, com o palavreado mais vulgar: “Dei meu compromisso com você de tocar X vezes por dia e você não está tocando. Ou você toca ou você sai do rádio, porque eu vou lhe colocar para fora”. No México, pelo menos, havia uma regra (ri): toco cinco vezes por dia, lhe pago tanto e agora você tem que tocar. No Brasil se tentou várias vezes negociar isso, de as rádios tocarem o que as gravadoras queriam, o que seria justo dentro desse esquema injusto. Mas aí sempre se deu um jeitinho aqui, outro lá, e o fato é que a indústria perdeu muito rapidamente o controle sobre o que se tocava. Pagava e não sabia se ia tocar.
P: É o que acontece até hoje?
AM: Não, piorou. Hoje não estou muito a par, mas piorou. Não me lembro direito, mas devo ter tido várias interferências dentro da indústria, no sentido de dizer “vamos parar com esse negócio”. Minha próxima interferência formal já foi mais tarde, acho que em 1978 ou 1979, já na Warner. Estava lançando Baby Consuelo e Pepeu Gomes, que como integrantes dos Novos Baianos haviam sido os protegidos e queridos do Chacrinha. De repente recebo a notícia de que o Chacrinha disse que, se não pagássemos, Baby e Pepeu não apareceriam em seu programa. A coisa mais inteligente que achei por bem fazer foi denunciar isso nos jornais. Em termos de companhia, isso me custou caro. Fui aos jornais, dizendo factualmente que Chacrinha queria cobrar dinheiro para passar os artistas no programa – jabaculê. Isso me custou a adesão à causa do Chacrinha de outros meios de comunicação. Rádios e outros programas de TV passaram a cobrar também. (…)
P: Você pode quantificar o peso dos orçamentos das gravadoras destinados ao jabá?
AM: Gostaria de dar uma porcentagem, mas o conceito de publicidade mudou muito no decorrer dos anos. Na época em que isso começou, a verba publicitária era 5% das vendas, em geral. Na época do Chacrinha, com certeza era alguma coisa como 10%. Até o momento em que eu estava militando, ou seja, até dois anos atrás, os orçamentos publicitários variavam entre 12% e 16%. E na última vez que vi ou ouvi falar de números, entre o jabá que você dava e alguma regalia, podia chegar a representar 70% das verbas de publicidade.
P: O jabá então é a principal fatia da publicidade?
AM: É, e asfixia a indústria. Na minha época brasileira não chegava a asfixiar, era mais uma questão moral: o que é isso, o cara já ganha seu dinheiro e ainda quer ganhar para tocar disco meu? Se não houvesse meu disco ele não teria uma estação de rádio, o ponto de partida é esse, o absurdo. Pensava que se as cinco companhias se levantassem juntas, em um ano, sem grandes prejuízos, botavam as rádios que praticavam jabá fora do mercado. (…)
P: O esquema montado pelos programadores no início não tinha a participação dos donos das emissoras?
AM: Não. O que aconteceu é que os funcionários de rádio não ganhavam e não ganham muito dinheiro. São salários modestos. Então no início o disc-jóquei encontrou nessa manobra um meio de ganhar um pouco mais. Isso foi cegamente apadrinhado pelos donos das rádios. Eles ficavam contentes, pois não tinham que aumentar os salários.Começaram a fechar os olhos, porque era conveniente para eles. Mas, na medida em que a soma de dinheiro foi ficando maior, os donos começaram a pensar: “Mas e eu nessa história?”. Então houve decisões, por certos donos de rádio, de dizer: “Tudo bem, mas o dinheiro é meu”. Entraram em contato com as companhias de disco e disseram: “A partir de agora quem manda na programação da rádio não é meu programador ou meu disc-jóquei. Sou eu”. Passaram acordos que, no início pelo menos, foram acordos comerciais. Aí, sim, era uma relação profissional. Tutinha, da Jovem Pan, por exemplo, gostava do disco ou não. Se ele não gostasse do disco não pegava acordo financeiro com a companhia, não havia jeito. Já não se pode chamar isso de jabá, é uma relação comercial como outra. Tutinha, pelo menos, era um grande profissional. Não sei como está hoje, mas era. Se não gostava do disco dizia: “Não toco”. Se gostava, então se sentava lá para uma negociação. E ele fazia isso de uma forma profissional: “Vou tocar tantas vezes por dia, vou fazer um especial”. Armava-se quase que uma operação de marketing genuína.
P: Então você tinha que agradar e também pagar?
AM: Mas a regra desta vida tem sido essa. Evidentemente há um lado obscuro nessa história, do porquê da fragilidade das companhias de disco. O óbvio é o resultado comercial, o resultado promocional. Mas, se pelo lado dos presidentes e diretores havia grandes ressalvas sobre a prática, o jabá representava para muitas pessoas dos departamentos de promoção com rádio uma possibilidade de dizer: “Toma dez, mas eu fico com dez”. Você se reencontra com um câncer estabelecido dentro da companhia. Isso lutava contra qualquer política encontrada por qualquer companhia para eliminar o jabá.
P: Então havia gente dentro das gravadoras fazendo acordos clandestinos com gente das rádios?
AM: Até um momento houve o pagamento em espécie. Não havia recibo, nada. Então certos divulgadores na segunda-feira pegavam uma bolada de dinheiro lá e iam distribuir. E guardavam uma parte para eles. Se estabelecia uma cumplicidade entre representante da gravadora e representante da rádio. Aí veio um outro elemento. Até os anos 1980 – vamos colocar 1985 como uma data hipotética -, a lucratividade de uma companhia de discos era uma coisa desejada, como em qualquer negócio. Mas me refiro agora às relações entre os presidentes das companhias e as matrizes das multinacionais. Nos anos em que trabalhei na Philips, uma vez por ano ia à Holanda e dizia: “O ano foi assim”. Quando muito a cada três meses a gente mandava um relatório. As companhias naquela época eram uma brincadeira gostosa do dono de cada conglomerado.
P: Por que isso se modificou nos anos 80?
AM: A coisa começou a degringolar quando as companhias de discos e seus conglomerados foram comprados por megainvestidores que tinham suas ações no mercado de Wall Street. Paulatinamente a indústria fonográfica, que era talvez uma indústria de relações públicas, de imagem, passou a ser um centro de lucro completo. Na medida em que o mercado de Wall Street começou a encurtar os prazos, os investidores começaram a ficar mais sedentos. Isso impossibilitou aos presidentes dos conglomerados de terem políticas de compaixão com seus negócios. Cada vez Wall Street foi mais nervosa quanto aos resultados semestrais, depois trimestrais, depois mensais. Se deu uma variação, por pequena que fosse, as ações já ficavam nervosas. Dali então foi: “Dá lucro! E já!”. Na medida que isso foi penetrando na indústria fonográfica se instalou uma pressão sobre os dirigentes locais, daqui e do resto do mundo, cada vez mais feroz. O cara que está sentado aqui recebe telefonemas a cada três dias: “Como é que está esta semana?”. Ele pira daqui. É “não quero saber, eu quero os números”. Eu estive do outro lado, sei bem como é esse negócio (ri). (…)
P: O sucesso ficou necessariamente condicionado a esse esquema?
AM: Temo dizer que sim. A gente não sabe se é a galinha ou se são os ovos, mas isso veio a ser agravado pelo que poderia se dizer uma falta de novos talentos genuínos. Não sei se é verdade ou não, mas se poderia dizer que, na visão da indústria, isso foi agravado por uma certa falta de talentos novos, pouco preparados ainda. Então veio um novo tipo de executivo, o cara que faz o artista, escolhe as músicas, bota dentro do estúdio. É música pré-fabricada para o sucesso. Nos anos 1980, os produtores passaram a dizer: “Nós fazemos o artista”. É uma coisa completamente antípoda da minha atitude quanto ao artista. Não vou dizer que tenho razão, mas são estilos absolutamente opostos. Telvez, dentro das minhas loucuras, eu tivesse gostado de dizer: “Vou fazer um artista”. Mas eu não tinha capacidade nenhuma de fazer, então nunca me meti nisso. Se há uma pessoa que nem canta muito bem nem canta muito mal, nem tem muita personalidade nem tem pouca personalidade, o que eu vou fazer com ela? Não sei trabalhar assim, nunca foi meu estilo. A partir do momento em que um artista é fabricado, necessariamente o investimento em publicidade e marketing começa a tomar uma importância desmedida.
P: Profissionais de rádio afirmam que não se toca uma música só por causa de jabá. Dizem que é preciso haver um respaldo de audiência. Com dinheiro, qualquer coisa toca no rádio?
AM: Quando surgiu o rock dos anos 1980, o rádio estava absolutamente fechado a esse tipo de música. O rádio é um sistema eminentemente conservador. Quando lançamos a bossa nova, o rádio achou que era um absurdo, o mesmo aconteceu com a tropicália. O homem do rádio não vê a música pelo que ela é, vê o anunciante, que vai tirar sua publicidade se a rádio baixar de audiência. No rock dos 1980, existiram algumas músicas de Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Titãs e Ultraje a Rigor que furaram o bloqueio natural. Foi uma surpresa. Ficamos com a música “Inútil”, do Ultraje, quatro, cinco ou seis meses sem tocar. Um belo dia, começou a tocar. Acho que o rock não sofreu efeitos de jabá para impedi-lo de penetrar. Os programadores devem ter achado que era um sopro novo nas suas programações.
P: Aí o jabá entrou como elemento para fortalecê-lo?
AM: Com certeza. Se me perguntar quais lembranças eu possa ter do meu jabá, posso dizer: paguei por toda aquela linha de frente que eu tinha.
P: A geração dos anos 1980 contou muito com o programa do Chacrinha para fazer sucesso. Como terminou sua briga com ele?
AM: A gente coloca o Chacrinha, mas ele também foi uma pessoa que fechou os olhos para seu filho, Leleco Barbosa. Leleco era quem fazia a programação do Chacrinha, e foi uma das pessoas mais militantes, se se pode dizer isso, desse caso. Não me lembro direito de como acabou, levou um tempo. Certamente houve a turma do deixa-disso, amigos comuns, artistas dos quais Chacrinha gostava muito e estavam trabalhando na Warner. Um dia, recebi um recado de que ele gostaria de se reconciliar. Creio que a gente almoçou, ele fingiu que não houve nada, eu também fingi que não havia nada. Ficou aquela mútua hipocrisia. Chacrinha me convidou ao programa dele para receber um prêmio, as pazes foram feitas e não tinha mais problema, sempre nos amamos muito.
P: Os grandes nomes de sucesso pagam jabá?
AM: Até hoje. Hoje estou realmente afastado, mas até um ano atrás era assim. Havia números, que eram estupendos. Nos anos do milagre brasileiro do início do governo FHC, se nos Estados Unidos o custo de lançar uma música no rádio com esse tipo de ajuda promocional era de US$ 300 mil por uma canção, no rádio brasileiro era de R$ 80 mil a R$ 100 mil, na época em que um dólar era um real. Ou recebi informações erradas, ou esses números são reais.
P: Para uma rádio não seria vantajoso tocar a nova música de artista de grande sucesso?
AM: Não hesito em dizer que, a não ser honrosas e poucas exceções, como Roberto Carlos, não importa o tamanho dos artistas. Tem que pagar. A honra e o prazer são coisas que não existem mais.
P: O que você acha de uma lei de criminalização do jabá?
AM: Acho que é indispensável, porque se você paga jabá e não tem recibo você não pode deduzir essa despesa do seu Imposto de Renda. Não pode entrar como despesa operacional. Hoje o meio radiofônico e o meio fonográfico estão cheios de subterfúgios para isso. Se você comprovar que esse dinheiro não foi usado para isso, mas para jabá, não acontece nada, porque não existe uma lei que diga que subornar é contra a lei e dá cana. Não se tem nem esse elemento. Quando comecei a trabalhar nos Estados Unidos, a primeira coisa que recebi em minha mesa foi o chamado livro branco. Eram diretrizes de como se deve comportar com ética, e eu tinha que assinar que na minha gerência nenhum país que estava ligado a mim em nenhum momento ia fazer práticas de suborno. Lá é lei.
P: E lá jabá é considerado uma forma de suborno?
AM: Então, o que é? Aqui não é considerado dessa maneira, mas é claro que é. É uma questão vernacular: eu lhe pago para você falar bem de mim no seu jornal ou na sua rádio, mesmo que você não goste da minha cara, eu aumento o preço e você acaba falando bem de mim. Isso é suborno. Se chama jabá, suborno ou campanha promocional (ri), moralmente é um suborno.
P: Quais outros prejuízos a prática de jabá pode trazer ao mercado musical?
AM: Hoje em dia eu diria que não tenho nada contra o jabá. Tudo depende do que se faz com esse jabá. É um pouco como a Rifle Association nos Estados Unidos. Eles dizem que o fuzil não mata, que quem mata é quem puxa o gatilho. É um raciocínio incrível, né?Vamos supor que nos idos de 70 a situação fosse como é hoje. Eu teria botado jabá em cima de Caetano, Gil, Chico, desse pessoal todo. E todo mundo teria aplaudido, porque valia a pena. Começa a ficar pior quando você faz uma outra viagem: pega um artista que não tenha nenhuma qualidade que não seja a de ser bonitinho, empurra uma meia dúzia de canções feitas por quilo, e depois coloca dinheiro por cima. Tudo depende do que você faz com o jabá. Se for colocar o famoso jabá em cima do que poderíamos chamar uma causa nobre, graças a Deus poder convencer essas pessoas de tocar uma coisa que é boa. Se era para botar jabá em cima de Raul Seixas, por exemplo, não me lembro, mas botei com muito prazer, porque estava convicto que esse menino era fantástico. Há cores nessa história, não no lado ético, mas do lado empresarial, objetivo.
P: Se emplacasse, a lei anti-jabá seria boa para quê?
AM: É bom que exista a lei, não só do jabá do disco, mas no geral. Este país está permeado de jabá, não só do fonográfico. É uma sociedade cancerosa com o jabá. O país é jabazeiro.
P: Além de dinheiro vivo, o jabá também incluía “mercadorias”?
AM: O que for. Dinheiro, drogas, prostitutas que eram levadas até o cara no fim de semana. Isso já não creio que exista hoje em dia na indústria.
P: Há quem defenda não a criminalização do jabá, mas sim sua legalização e regulamentação. O que você acha disso?
AM: Mas aí se está violando o que se chama de as forças do mercado. Como se vai fazer isso? Determinar quanto se paga para um artista novo, quanto se paga para um veterano?
P: Seria mais difícil do que coibir?
AM: É claro. Dali a pouco ia precisar de uma Ecad [órgão responsável pela cobrança de direitos autorais] para controlar isso, uma Ecad do jabá. São coisas ingênuas.
P: Também não seria ingênuo acreditar numa lei de criminalização?
AM: Mas é assim que se faz. A lei sempre é um suporte, um sofá sobre o qual você pode se sentar quando necessário. Há 10 ou 15 anos, os políticos roubavam muito, mas nem se sabia disso. Aí veio um ciclo em que começou a se saber, estamos entrando num ciclo em que começa a custar caro. Acho que ainda vai ser um grande negócio ser um político honesto. O que a gente pode desejar é que se minimize essas coisas. Acabar com isso não dá.
P: Gravadoras e rádios em geral são vistas como as vilãs desse esquema todo, enquanto os artistas às vezes aparecem até como vítimas. Mas eles não são coniventes?
AM: Posso dizer que, uma vez que se faça um acordo, muito artista deve saber. No passado, quem pagava o jabá era o empresário do artista. De onde ele recebia a grana? Da gravadora, obviamente. E o artista estava ciente. O artista sempre sabe. O que ele diz é que não quer se meter em briga de gente grande, “não estou aqui para pagar pelas brigas de vocês”. É objetivo assim.
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Em setembro de 2008, Midani lança o livro Música, Ídolos e Podere dá entrevista à CartaCapital– e se emociona e chora ao falar de Elis Regina (a íntegra está aqui):
PAS: Você diz no livro que sua profissão era “o mundo das maravilhas”. Deixou de ser? Por quê?
AM: No livro explico uma das versões do porquê, que é a entrada dos tecnocratas. Acho que isso é um dos aspectos mais interessantes do livro, porque não toca propriamente à música e pode acontecer em qualquer indústria criativa. Para condensar isso numa frase, o drama é que os homens criativos acabaram trabalhando para os tecnocratas, em vez de os tecnocratas trabalharem para os criativos. A culpa é de quem ou de quê? Evidentemente os fenômenos são vários, mas um que me chamou sempre muito a atenção, e menciono no livro, é que os homens criativos sempre tiveram uma tendência a olhar para o lucro com um certo desprezo. E os homens criativos, quando falavam com certo rancor do board lá em cima – em português, no Brasil, tínhamos uma palavra para isso, “os homens”. E foi uma profunda besteira deles, porque, se tivessem entrado num curso, ou numa série de cursos de administração para não-administradores, de financista para não-financistas, aquelas histórias, teriam descoberto que aprender esse mundo, pelo menos o teórico, preto no branco, em números, não é tão complicado assim. Então abdicaram do comando dessas coisas, por preguiça, por omissão, por, sei lá, aristocracia. Mal sabiam eles que iriam se foder muito mais abdicando do que aprendendo e comandando.
PAS: Então você credita o fim das maravilhas principalmente aos tecnocratas?
AM: Não, credito como um aspecto. Um outro é o fato de as companhias de discos terem sido compradas pelos conglomerados de comunicação. E tem fatores agravantes que não são inerentes ao business, na minha opinião. Pertencem à própria criatividade artística. Pegando um exemplo não irônico, mas um exemplo entre tantos: se você pensar que estamos com uma guitarra, um teclado, um baixo, uma bateria e um cantor fazendo rock desde 1955, não tem quem aguente, isso tem mais de 50 anos (risos), e é a mesma coisa. Do lado criativo, e aí não falo mais especificamente do rock, estou falando em geral, o que a gente pode ver é que na melhor das circunstâncias existem fatores evolutivos, musicalmente falando. Mas ninguém rompe com alguma coisa. Você tem artistas formidáveis, eu diria por exemplo Lenine, para citar um, maravilhoso como evolução. Mas não é um rompimento. Quando a gente vê no Brasil que o último rompimento de importância que tivemos… Foram dois, aliás. Um foi o rock’n’roll, 1982. Já faz 25 anos…
PAS: Uma geração.
AM: Uma geração. E o outro, que evidentemente foi um pouco abortado pelas circunstâncias, foi Chico Science. Depois desses dois, que eu conheça e que tenha uma repercussão importante, não vi.
PAS: Hip-hop e funk carioca você não conta aí? Na verdade nem são da indústria…
AM: É, mesmo que fossem da indústria. Eles rompem, é claro, todo mundo rompe com alguma coisa, mas quando você considera que os pontos de partida foram Jorge Ben, Banda Black Rio e Tim Maia, vamos tomar só esse trio, você vê que também se trata de uma evolução.
PAS: Eles rompem, você me disse isso em outra entrevista, com a classe média, com o gosto da classe média.
AM: Socialmente é outra história, mas musicalmente… Socialmente, bendito hip-hop, bendito rap, bendito tudo que você quiser imaginar. Porra! Porque os negros aqui estavam confinados à favela e ao samba, e não é possível. A favela estava, em 1980, na mesma situação em que a música brasileira estava antes da bossa nova. A bossa nova rompeu com seu passado, com Carlos Galhardo, e em 1980, o hip-hop e não sei o quê romperam com as velhas tradições do samba. Quando digo Carlos Galhardo, você pode mudar para qualquer um, “o rei da voz” e companhia. (…)
PAS: Uma das coisas que mais me impressionou e foi mais legal de ler foi o início mesmo, o seu relato de ter assistido à Segunda Guerra Mundial de perto. Cheguei a me perguntar se aconteceu tudo aquilo literalmente, o menino de oito anos “brincando” em tanques de guerra?
AM: É uma imagem tão forte que essa lembrança, por exemplo, eu tenho certeza que é real. Há outras que podem ser isto ou podem ser outra coisa (ri), mas essa, não. Essa passagem que você descreve, para as crianças… Acho que nós tivemos, como eu poderia dizer?, a mais imaginativa ou imaginária felicidade de, em vez de ter tanques de brinquedo, ter o tanque. Em vez de ter um fuzil de plástico, tinha o fuzil. São coisas que, quando você tem seis, sete ou oito anos, são um privilégio, por cima de todos os perigos que isso pudesse envolver.
PAS: Você diz “felicidade”, mas isso não poderia ter produzido crianças bélicas?
AM: Não, estropiadas. Bélicas, voltando a essa coisa que você deixa em suspenso, claro que é bélico, claro. E, para um brasileiro, essa coisa bélica é muito abstrata, porque até a história brasileira disfarça a sua atitude bélica, quando necessária. O que foi feito por Brasil, Argentina e sei lá quem mais no Paraguai é uma das coisas mais belicosas, mais sangrentas… É só estar nas circunstâncias adequadas (ri) para se tornar bélico, o ser humano é assim. Mas, para nós, era talvez ao mesmo tempo festejar o fim da guerra. Não havia mais o medo. Nós brincávamos com os elementos da guerra, mas não tínhamos mais esse medo. (…)
PAS: O que isso faz na cabeça de um menino e depois de um homem, para o resto da vida?
AM: Deve influenciar distintamente segundo a personalidade, né? Mas eu, por exemplo, me lembrava de perguntar à minha mãe de que se fala quando não tem guerra (risos). Eu não tinha noção, porque tudo que se falava era sobre guerra, só se falava sobre guerra. Mas o que isso provoca? Sem dúvida, provoca uma certa dureza. Sem dúvida.
PAS: Mas uma dureza do cara que depois vai trabalhar na indústria criativa, descobrir talentos?
AM: Tudo bem, mas eu fui duro também nisso, não é? Tenho uma reputação razoável (ri), não vamos fingir. No entanto, muita gente deve ter te dito que talvez eu fosse autoritário demais, que eu fosse… A própria Maria Bethânia fala isso.
PAS: Ela fala que você era autoritário?
AM: É.
PAS: No livro você não se compromete, mas diz que Bethânia “tinha fama” de presunçosa…, como é mesmo (consulto minhas anotações)? É uma das passagens apimentadinhas, você diz não que ela era, mas que tinha fama, de “soberba, pretensiosa e arrogante” (risos).
AM: É, mas ela apavorava a indústria. Apavorava. Bethânia era uma princesa.
PAS: Apavorava como?
AM: Sua atitude, a soberba. É sempre complicado fazer comparações, porque não cabem, mas, no que Caetano pode haver de aristocracia no comportamento dele, certamente Bethânia o tem multiplicado. (…)
PAS: Bom, vamos adiante. Gostei deste pedaço aqui: “Eu não entendia o Francisco Alves e outros cantores românticos, com vozes impostadas e operísticas que, aos meus olhos, os tornavam ridículos e obsoletos. Ficava confuso com a barulheira que não permitia escutar claramente as gravações de samba: o ritmo se ouvia ao longe e soava como uma massa informe. E, acima de tudo, não entendia as palavras. Confesso que não gostei de coisa alguma, a não ser de Inezita Barroso e, sobretudo, de Caymmi”. Você pensa assim até hoje?
AM: Basicamente. Quer dizer…
PAS: Aqui você detonou todo mundo, o samba, a velha-guarda inteira (risos)…
AM: Não (ri), eu não acho que tenha detonado. Se a imagem que estou passando é de detonar… O samba não detonei, disse que era muito barulho, que a gravação era uma merda. Era um barulho, blublublublu, não detonei o samba. Detonei o Francisco Alves e companhia.(…) Pedro, eu estava chegando no Brasil…
PAS: Era um choque de culturas, também.
AM: Era um choque de culturas, porque essa história na Europa, ou vamos dizer na França, do cantor lírico de segunda categoria (risos), era um fenômeno já ultrapassado. A gente já tinha Juliette Grecco, Jacques Prévert, Boris Vian, um montão de gente, e mesmo Henri Salvador, que em 1950 já tinha começado, e muito. Lá se tinha criado uma atmosfera, não estou falando da música nem nada. Uma atmosfera. E, para uma pessoa que vinha desse tipo de meio, pegar um Francisco Alves era uma pedrada (risos). E tem um que não me lembro mais, que tem um nome meio italiano, daquela mesma época… Vicente Celestino! Eu não entendia! Quer dizer, entendia, mas não tinha nenhum afeto ou associação.
PAS: Os tropicalistas pegaram Vicente Celestino meio para Cristo, tinha influência sua por trás?
AM: Não, não (ri).
PAS: Ele até morreu do coração, claro que você se lembra dessa história.Que ele morreu durante a gravação de um programa da tropicália.
AM: Ah, é? Eu não me lembro.
PAS: Ele foi a São Paulo participar da gravação do programa deles, e morreu do coração no hotel.
AM: A gente entende isso, né (ri)? Pedro, quando eu falo dessas pessoas é evidente que não falo delas pessoalmente. Tenho o maior respeito por toda pessoa que vá fazer uma arte e que esteja lutando para isso etc. etc. Estou falando da especificidade da música.
PAS: Perguntei se você ainda pensa assim porque, ainda que você não gostasse, dá para reconhecer que Francisco Alves teve uma importância, não dá?
AM: Ah, não, mas é claro. Hoje em dia, dá…
PAS: Aracy de Almeida… Na primeira vez que o entrevistei você pareceu um pouco traumatizado com Aracy de Almeida (risos).
AM: Aracy me olhava de um jeito… Ela sempre andava com Lúcio Rangel.
PAS: Que era um crítico de música…
AM: Puta, que crítico (risos)! Não, ele era certamente um belo crítico, para os parâmetros daquela época, e sobretudo extremamente conservador. E os dois andavam sempre juntos. E eu devia ter pinta de quê, 24 anos, pinta de menino, todo francesinho. Eles olhavam para mim com uma desconfiança… E era mútuo, porque eu olhava para essa Aracy de Almeida, que bofe, que horror que era. Agora, hoje, por exemplo, eu posso ouvir a Aracy e reconhecer as qualidades que ela tem. Naquela época, não, não era capaz. (…)
Das raras incursões que foram dadas ao samba tradicional durante minhas gestões, uma foi abortada pela morte do Ataulfo Alves. Mas eu tinha o maior carinho, o maior respeito por ele. Eu o conhecia bem, e achava que eu podia dar o respeito a Ataulfo que não lhe era dado até aquele momento, da mesma maneira como eu talvez tenha contribuído a dar a alguns artistas – eu pensaria no Jorge Ben e no Erasmo Carlos, não na mesma direção, é claro. Nós tivemos uma relação relativamente curta, mas muito amorosa e respeitosa, e também com Dona Ivone Lara e com… Como se chamava esse compositor fantástico que estava em cadeira de roda? Super-importante, morreu (não consegue lembrar).
PAS: No geral, você foi um estrangeiro que chegou pelo mar, adorou a Baía de Guanabara, mas não tanto o samba…
AM: Não tanto. Também (pausa)… É, não tanto, se pode dizer. Por exemplo, hoje em dia adoro Martinho da Vila. Acho inclusive que ele é muito inspirado pela atmosfera da bossa nova, com sua vozinha lá.
PAS:Então o Brasil transformou você um pouquinho quanto a isso?
AM:Bichinho, o Brasil me transformou… Me transformou com a bossa nova, me transformou com a tropicália, me transformou na minha maneira de pensar, na maneira de analisar, na maneira de amar, tudo isso, até hoje, até hoje. Eu só tenho a agradecer ao Brasil por ter feito de mim a pessoa que sou hoje. Você talvez se lembre, no livro tem um comentário muito pequenininho sobre meu contato com Caetano, no qual digo que ele falava coisas que eu não entendia, que eram muito acima da minha capacidade daquela época. Imagina você o quanto sou grato.
PAS:Nas entrelinhas você está dizendo que Caetano teve meio de enfrentar você?
AM:Não.
PAS:Não é um conflito, o presidente da gravadora que não entende o que o artista diz?
AM:Mas isso não era só Caetano, era geral. É por isso que fiz o grupo de trabalho (um grupo montado nos anos 70, com psicólogos, jornalistas, gente de gravadora etc., para entrevistar e tentar entender os artistas). Você pode imaginar que tipo de cabeça e maturidade humana uma pessoa com seus 33 anos de idade tem que ter para aguentar?… Não, aguentar e compreender. Aguentar você ainda aguenta, mas o problema é compreender toda a cambalha de gênios que estavam acima da minha companhia.
PAS: Você fala “cambalha’, penso em Raul Seixas, Tim Maia, Rita Lee, os mais “malucos”, digamos assim…
AM: Mas você sabe que é bem difícil também entender um Caetano, um Gilberto Gil, enfim… Quando eu digo cambalha, não é no sentido pejorativo.
PAS: Claro, ao contrário, você falou cambalha de gênios.
AM: É, se fosse outro jornalista eu falaria com outras palavras (ri), sendo você eu posso falar. Conto no livro, isso é um pouco fantasiado, mas o espírito é esse: numa mesma tarde me chegam três artistas, três gênios, me dão um puta esporro porque eu não estou entendendo nada. Três, completamente diferentes, rapaz. Eu não tinha cabeça para isso. Aí comprei cabeças para me ajudar.
PAS: Quem eram esses três?
AM: Não me lembro, francamente não sei. Ali no livro eu mando os três.
PAS: Acho que são Elis Regina, Chico Buarque e Caetano, se não me engano.
AM: Pode ser. Pode ser até inventado. Mas não estou falando especificamente quem são, estou falando da problemática, sobretudo porque eu tinha dito aos artistas: “Minha porta está aberta, na hora que quiserem vocês entram”. Então entravam.E brigavam, claro. Mas não brigavam comigo por passividade, nem burrice, nem omissão. Brigavam porque eles queriam mais, o que é diferente. (…)
PAS: O artista, de um modo genérico, é um cara maluco?
AM: Não. Mesmo quando é maluco, ele é maluco e não é maluco. Ou seja, patologicamente maluco ele não é. Algo que se chama de maluco dentro da sua pergunta eu entenderia talvez que fosse um artista com criatividade exacerbada.
PAS: Acho que eu estava pensando em alguém muito difícil de lidar, incontrolável…
AM: Não, também. Quer dizer, tem ou teria que ter, não vou te dizer que fiz isso bem ou mal… O artista tem que ter em determinado momento como se fosse uma rédea com um cavalo puro-sangue… Você tem que segurar um pouquinho de vez em quando e soltar em outros momentos. Essa percepção é sumamente importante, porque se você fizer ao contrário, segurar quando tem que soltar e vice-versa, aí você tem um inimigo feroz.
PAS: Genericamente, qual seria o momento de segurar?
AM: Ah, a circunstância do momento.
PAS: Talvez Rita Lee, que foi segurada numa hora em que talvez tenha ficado bem brava, e aí foi embora da gravadora?
AM: Com a Rita foi mais complexo que isso. Ficou um pouco mais complexo, porque a Rita, naquela época, tinha o desejo de ser uma estrela internacional.Mas não tinha o preparo profissional, físico, emocional, racional – não estou dizendo que é burra, não, de jeito nenhum, bem pelo contrário. Mas ela não tinha a força adequada para fazer isso. Evidentemente teria necessitado que ela mudasse completamente sua carreira, que migrasse para os Estados Unidos, que gravasse em inglês. Talvez hoje fosse possível, mas naquela época não era, ela queria ser uma estrela internacional ficando no Brasil. Estou fazendo uma caricatura super-respeitosa. (…)É como se você tivesse um artista no Amapá que quer ser sucesso nacional ficando no Amapá. Não dá, tem que vir para São Paulo, para o Rio. No mínimo tem que descer para Salvador ou Recife, e ainda está fazendo a metade do caminho. Também era uma época, para Rita e para todos nós, em que estava todo mundo imaturo ainda. (…)
PAS: Outro tema do livro: você diz que Tom Jobim, quando jovem, andava sempre na sombra da cantora Violeta Cavalcanti…
AM: Não, não.
PAS: Está escrito no livro (risos)!
AM: Não, mas aí é fora do contexto, pô, Pedro.
PAS: Então vamos ver, o pedaço que copiei. Isso, e depois “eu ficava muito perplexo ao ver um rapaz tão bonito e tão fino parecendo um gigolô!” (risos).
AM: Exatamente. Eu via, é isso que estou falando. Eu recém-chegado, vamos dizer que cheguei aqui em dezembro de 1955 e me tornei operacional em 1956. No escritório entrava gente, saía gente, entrava gente, saía gente, e tinha esse rapaz que eu não sabia de onde vinha, o que era, não sabia nada. De vez em quando ele aparecia lá, ele muito bonito – porque Tom era bonito o que o diabo não quer, né? – atrás de uma moça exuberante.
PAS: Ela também era exuberante?
AM: Suponho que sim, aos meus olhos naquela época Violeta Cavalcanti era uma moça exuberante.
PAS: Eu estava imaginando ela como uma Aracy de Almeida (risos)…
AM: Não, não, era mais Rádio Nacional, tipo Marlene. Uma moça exuberante, na minha lembrança não era tão bonita, mas era um mulherzaço. E ele atrás. E me perguntei isso, eu não sabia quem era o menino. Aí meses depois, claro… Inclusive eu ria muito com Tom sobre isso.
PAS: Meses depois aconteceu o quê? Revelou-se um rapaz talentoso?
AM: Exato, meses depois soube quem era Tom Jobim. Teve Orfeu da Conceição, a Sinfonia do Rio de Janeiro. Eu cheguei por ali, e Aloysio de Oliveira também tinha voltado ao Brasil. Dali me introduzi dentro de um meio ambiente. (…)
PAS: Achei muito interessante também a historinha sobre o Fernando Lobo, porque é uma referência que já ouvimos mil vezes, mas você conta sob outro ponto de vista. Fernando Lobo estava dentro da gravadora, e tinha um filho que era compositor (Edu Lobo), achou que os tropicalistas estavam ameaçando o sucesso de seu filho, e começou a falar mal dos tropicalistas para você…
AM: Bom, falar mal, não falaria mal, porque não dava. (…) Você não deve associar isso isoladamente ao problema da bebida. Quando essas duas coisas se encontravam, tornavam o comportamento do Fernando meio incontrolável.
PAS: Mas deixe eu explicar por que me chamou a atenção. No imaginário, é corrente que haveria na época uma rivalidade, os tropicalistas de um lado, Chico e Edu do outro. Eles negam, dão a entender que a imprensa foi que inventou. Mas você dá um dado de bastidor que poderia ajudar a justificar uma rivalidade. Existia uma coisa, no fundo, motivando…
AM: Não, Pedro, rivalidade deles dois, Chico e Caetano, enquanto seres musicais, compositores, homens de proa, não houve. Houve rivalidade pelos seguidores. A imprensa não inventou nada, a imprensa tinha razão, porque os seguidores estavam, e você sabe melhor do que eu que não foi possível naquele momento – estou falando aí inclusive do Edu – tomar as iniciativas para que isso não acontecesse. É igual a doença, tem que esperar o ciclo da coisa acabar. Agora, uma pessoa como Fernando, por exemplo, se minha memória é bem exata, nos seus momentos mais exaltados não gostava que os tropicalistas estivessem lá. Não posso me expressar de uma maneira mais “puf!”. Não gostava. Agora, evidentemente, não vamos também fazer do Fernando uma caricatura. Ele não pensava só no filho dele.
PAS: Tinha convicções também.
AM: Tinha convicções de bossa nova, de samba-canção mais ainda que de bossa nova.Toda aquela coisa de Dolores Duran, Antonio Maria e companhia. Ele pertencia àquele mundo. Então imagina, bossa nova tudo bem, foi engolida. Aí chegam esses porras desses tropicalistas?Foi um trauma atrás do outro. Agora, Fernando era uma pessoa das mais brilhantes que eu conhecia dentro do jornalismo brasileiro, isso sem dúvida. (…)
PAS: Aí logo depois, em 1969, Caetano gravou “Chuvas de Verão”, de Fernando Lobo. Por quê?Era para amansar a fera?
AM: Não sei, não sei, não sei…(…)
PAS: No livro você passa muito de raspão pela história com Wilson Simonal, não? O que você fala no livro e acho que eu não sabia é que foi Marcos Lázaro (empresário, nos anos 1960 e 1970, de artistas como Roberto Carlos, Elis Regina e Simonal) a pessoa que intermediou a contratação dele pela Philips, a “pedido” da ditadura.E aí foi do jeito que você relata, você levou o assunto Simonal para discussão no grupo de trabalho?
AM: Foi. Foi uma barra. Foi a primeira reunião. Hoje acho que faria de outra maneira. Na primeira reunião disse “olha, tenho um puta pepino aqui, achei que tinha que contratar o Simonal”. Zuenir Ventura me olhou de um jeito que me lembro até hoje.
PAS: Ninguém queria ele na gravadora mesmo? Você tinha me falado isso uma vez, eu tinha entendido que era o elenco da Philips que resistia. Eram então os membros do grupo de trabalho?
AM: Não, eu temia que pessoas como Chico, que são, ou eram, no sentido convencionalmente político, não no sentido pejorativo, mas no sentido da posição, me dissessem “olha, se um filho da puta vai entrar eu não fico”. Eu temia isso. Então cheguei ao grupo de trabalho e dizia: “Estou temendo isso, como é que eu faço?, o que faço?”. Foi assim.
PAS: Mas não aconteceu? Ninguém disse “ou ele ou eu”?
AM: Que eu me lembre não. Eu lembro que o Chico não ficou lá muito contente (ri).
PAS: Mas você explicou para a companhia, que era uma imposição da ditadura?
AM: É, eu tinha que ser um pouco discreto também, fazia entender que era adequado tomar essa decisão.
PAS: Simonal era filho de uma empregada doméstica. E Elis Regina era filha de uma lavadeira. Daria para fazer algum paralelo entre os dois?
AM: Não, não, não, ela, não.
PAS: Qual era a diferença? Ela era branca e ele era preto…
AM: É, para começar. Os anseios sociais de cada um dos dois eram completamente diferentes.
PAS: Ela foi patrulhada, também teve acidentes em relação à política.
AM: Teve. A Elis foi imprudente. Mas ela… Vou te dizer, eu conheço o doutor Lula da Silva, não pessoalmente, mas conheço sua existência quando ele ainda era um dos líderes metalúrgicos. Estou falando de 1979, quando muito. Quem dava dinheiro para ele, seu dinheiro, e quem me pedia para dar dinheiro a ele? Elis Regina.
PAS: É mesmo? E você dava?
AM: Claro.
PAS: E você gosta do doutor Lula da Silva?
AM: (Pensa por alguns segundos.) Gosto. Acho que tem coisas que são ótimas.
PAS: Nunca ouvi um presidente de gravadora falar isso (risos).
AM: Ora, se você olhar tem coisas muito positivas. Claro que pode ser uma overdose, mas basicamente era necessário, é necessário, até o momento em que essa oligarquia sindical se tornar – e já pode ser – tão horrorosa quanto era a oligarquia medieval brasileira.
PAS: Mas só recapitulando, Elis pedia dinheiro a você para dar para o Lula? Ou para o partido, para a criação do PT?
AM: Não sei para quê. Mas a figura a quem o dinheiro chegava era o Lula. Figura essa que ela achava de grande mérito, de grande importância e de grande futuro.
PAS: E ela não ficou para ver…
AM: Ela não ficou para ver.
PAS: Por que ela morreu cedo, André?
AM: Não sei. Não sei.
PAS: Ela teve uma história radical, passou por muita coisa, deu e levou muito chute, não?
AM: Não, isso não acho que seja. É porque ela era combativa, então você apanha e você dá. Eu não sei dizer, ou se intuo alguma coisa, mas não quero entrar nessa situação.
PAS: Estou lhe perguntando porque ela nunca se afastou de você, desde a Philips até a morte. Brigava, mas seguiu junto.
AM: É isso que te digo, era brigona mesmo. Mas tinha muito caráter.
PAS: Mas muita gente se zangava com ela, não gostava dela, não é?
AM: Voltamos nessa questão fundamental: críticos, executivos e público devem olhar para o artista pelo que faz artisticamente ou pelo que é como pessoa?
PAS: O que você acha?
AM: Tem mil razões, mil escolas para justificar qualquer uma das posições. No entanto, o fato de não gostar da impertinência, da obsessão dela, da cabeça-dura que era, dos esporros… Tem o direito de ficar ofendido, isso não há dúvida. Mas isso não tira o fato de que foi uma das grandes cantoras brasileiras de todos os tempos (ele silencia e chora).
PAS: Pelo que percebo de você, uma das grandes pessoas também…
AM: Eu tenho a maior… (pausa, respira fundo, chora) …a maior emoção , até hoje (chora, silencia).
PAS: (Tentando disfarçar minha própria vontade de chorar.) Quantos anos faz?, 30…
AM: Não é? (Silêncio.) Bom… (Chora, fala com a voz embargada) Tem que ter isso também, se não tiver emoção você está fodido.
PAS: Chorava, ou chorou na frente de seus artistas, muitas vezes, poucas vezes, nenhuma?
AM: Se eu chorei na sua frente, por que não choraria (risos)? Obviamente que sim.
PAS: Lembra algum caso de quando chorou na frente de um deles?
AM: De Maria Bethânia. De Maria Bethânia.
PAS: Por quê? Vai chorar de novo (risos)?
AM: Não (ri). É difícil responder essa pergunta, porque nem me lembro em que… Não, vou te dar. Não era mais patrão dela, mas estava em Nova York. Um dia recebi esse disco que foi muito criticado por muita gente, no qual ela interpreta Roberto Carlos. Eu chorava, rapaz.
PAS: Mas então não foi na presença dela?
AM: Não. Não me lembro do disco o qual chorei na frente dela, mas teve um disco, sim, vamos dizer em 1973, o terceiro ou quarto disco dela na companhia.
PAS: Drama?
AM: Não me lembro, mas vou te dizer. É uma capa em que ela tem cara de palhaço. Não tem cara de palhaço, mas é uma coisa meio palhaço.
PAS: Ah, sei, é o Drama ao vivo.
AM: Será ao vivo esse? Eu me lembro, ficava transtornado, emocionado, ouvindo isso com ela. E a Bethânia também tem – ou tinha, porque a gente já não trabalha junto – uma capacidade de me emocionar muito, muito grande, pela generosidade dela, pelo caráter amoroso dela, mas genuinamente amoroso.
PAS: Ou seja, aquela imagem de soberba também é só de fachada?
AM: (Ri.) É. Quer dizer, não sei como ela está hoje, né? Mas mesmo naquela época acho que não era para inglês ver. Era assim, uma pessoa que guardava suas distâncias, socialmente falando. E quando você penetrava na outra porta, que era a porta pessoal que se abria para você, você tinha um personagem maravilhoso. (…)
PAS: Quando você menciona o episódio de “Eu Também Quero Mocotó” (no Festival Internacional da Canção de 1970), dá uma versão que eu nunca tinha ouvido, de que as loiras ao redor de Erlon Chaves se ajoelhavam simulando fazer sexo oral nele. Foi isso que irritou as esposas dos generais? Sempre se diz apenas que foi porque elas estavam seminuas…
AM: Muito vestidas não estavam. Mas que se ajoelhavam na frente do Erlon e simulavam sexo oral, disso tenho absoluta certeza. Agora, se isso chocou as esposas dos generais? É até uma falta de elegância, porque chocou o Brasil inteiro. Não foram só as mulheres de generais, não. Quando as mulheres começaram a se ajoelhar e o público percebeu o que era o mocotó, ninguém mais queria.
PAS: O público mesmo se voltou contra ele?
AM: É. Foi um escândalo.
PAS: Você achou o que na época? Também se chocou?
AM: Não, eu fiquei puto com Erlon, francamente. Entendo que Erlon e companhia possam querer agredir a sociedade porque a sociedade agrediu a eles. Agora, não fez bem para ninguém, não ganhou a causa de nada. Fiquei puto com Erlon, porque, porra, a música não era dele, nada era dele, eu é que fui lá, eu que pedi para ele. E pedi consciente de que ele tinha toda a capacidade de fazer isso muito bem. Aí o cara toma essa iniciativa sem falar? Poderia dar um telefonema, falar “olha, André, eu estou com vontade de fazer isso, o que você acha?”, ou “estou te informando que vou fazer isso”. Não, nada.
PAS: O episódio causou problemas para você e a gravadora junto à ditadura?
AM: Não. Não me lembro, não. Foi?
PAS: Não sei. Sei que ele foi preso.
AM: É, mas aí eu não estava com disposição para ir lá falando grosso para salvar a pele dele (ri).
PAS: Havia uma questão racial em o Brasil se chocar de ver um homem negro rodeado de mulheres brancas? Não devia ser só pela coisa sexual.
AM: Ah, claro. Você bota tudo, né? Sexualidade, racismo, agressividade, recalque.
PAS: Falar nisso, não tem nada a ver, mas é engraçada a passagem em que você conta que o pessoal da bossa nova andava ou na sua frente ou atrás de você, e que era por causa dos tamancos e das roupas que você usava.
AM: Era 1957. Na época ninguém falava nada. Depois de muito tempo, Roberto Menescal se lembrou e me contou a história.Eu achava estranho, né? Uns estavam três passos na frente, outros três passos atrás, e eu estava no meio. Mas eu dava pouca conta do português, pensava que estavam querendo falar entre eles ou não sei o quê. Mas eu não tinha me tocado que havia uma coisa, primeiro, tão intencional e, segundo, tão micha.
PAS: Seria uma vergonha deles em relação a você?
AM: É, a bossa nova era muito careta, né? (…)Eles eram, e são, todos eles, de uma classe média muito bem pensante, muito bem estruturada sobre o que faz, o que não faz. Todo mundo foi educado nos colégios de melhor qualidade, se não me equivoco.
PAS: Um tipo de aristocracia também?
AM:É… A Galeria Menescal está ali, eu acho que o pai do Carlos Lyra era um militar muito graduado. Tom vem de uma família se não rica pelo menos de muito boa classe média. Vinicius de Moraes já entrou depois dessa época, mas era a mesma coisa, um diplomata. João é que talvez seja a pessoa mais chão, mais pé na terra.
PAS: Veio do interior da Bahia…
AM: É, interior da Bahia, e naquela época, né? Mas você vê, o João estava sempre de gravatinha e terninho. Nara Leão era de uma família inclusive rigorosa.
PAS: É curioso que o cara mais destoante de todos viesse a se tornar a síntese de todos.
AM: É mesmo, é isso mesmo.
PAS: Estávamos falando das confusões políticas, e esta história também é surpreendente: fizeram um abaixo-assinado para que você fosse expulso do Brasil, e alguns artistas assinaram? Como foi isso?
AM: Isso de mim você não vai tirar um nome (risos).
PAS: Mas você tem mágoa deles?
AM: Não, não tenho nem mágoa. Mas acho que é um assunto que é tão vergonhoso para eles que talvez já tenham mudado de opinião, e quase 30 anos depois vão ter que responder por uma coisa que disseram em certo momento. Posso dizer que eram quatro ou cinco. Mas não eram quatro ou cinco mixos, eram pessoas de uma certa importância.Eu não acreditei. Eu não acreditei. Porque achei que, dentro do meio dos artistas, eles tinham o direito de ter opinião divergente de mim, tinham direito em determinados momentos de ter raiva e até ódio de mim. Mas isso é em família, não era para passar para político ou para militar.
PAS: O que motivou essa reação?
AM: A origem dessa história foi que havia um jornalista negro aqui no Rio que se chamava Tales Batista, um repórter da Manchete. E por essas coisas malucas do Adolpho Bloch, ele adorava o Tales Batista. Eu conhecia bem o Tales, ele veio me ver um dia e disse: “Você sabe que existe um movimento negro na zona norte, espetacular?”. Eu fui lá, nem sei se o lugar que menciono no livro é o lugar certo, um estádio de basquete, São Cristóvão ou não sei muito bem onde, mas não tem importância. Cheguei lá, tinha 15 mil pessoas, e aquele “gan, gan, gan”, todo mundo bonito, os únicos brancos éramos eu e minha mulher. Aí comecei a falar com a imprensa, tanto do Rio quanto de São Paulo. Começou notinha aqui, notinha lá, até que Veja fez cinco ou seis páginas. E aí baixa lenha!
PAS: Baixa lenha? A Veja falava mal?
AM: Puta! Que isso é perda da cultura negra, não sei o quê, pode imaginar tudo que poderia ser. As pessoas que nessa situação tinham mais ressentimento comigo por ter trabalhado tropicália e outras coisas, e não ter trabalhado o samba convencional, largaram a lenha. Dali aconteceu, um dia Aloysio e João Araújo me telefonam, dizendo “ó, estão queerendo te expulsar do País”.Tinha um coronel que naquelas épocas de Calabarjá tinha nos tirado de problemas. Telefonei ou pedi ao João Carlos Müller, que era meu advogado, que telefonasse para esse militar, e ele disse que, de fato, estava passando um processo lá. “E tem mais, tem artista pedindo a expulsão.” Mas por que motivo? Porque o Midani estaria trazendo dinheiro dos negros norte-americanos para fazer revolução nas favelas brasileiras. Tudo isso por intermédio de Quincy Jones e da Time Warner. Eu aqui, ele lá estaria me mandando dinheiro que passaria pela Time Warner para fazer levantamento nas favelas aqui!
PAS: E não era verdade?
AM: Imagina! (…)