Lucina

Lucina Carvalho, ou simplesmente Lucina, já foi Lucelena, Lucinha, metade de Luli & Lucina. Não foi tantas por crise ou falta de identidade, mas antas, talvez, pela dificuldade de encontrar um lugar para chamar de seu ao sol da música popular brasileira, dessa MPB que foi e é tão profundamente masculina nos gabinetes quanto democraticamente pansexual nos bicos de palco.

Ainda menina, foi lançada como cantora no bojo da era dos festivais (interpretando Dori Caymmi Wagner Tiso) e como intérprete secundária do Grupo Manifesto, do qual sairiam também dois futuros capos (machos) da indústria musical brasileira, Mariozinho Rocha (até hoje poderoso-chefão das trilhas sonoras da Rede Globo) e Guto Graça Mello (diretor musical e arranjador também global, pela Som Livre dos anos 1970, e produtor constante de, entre outros, Roberto Carlos Maria Bethânia).

"Manifesto Musical" (1967) incluía "Margarida", romantismo vencedor de festival composto por Gutemberg Guarabyra
“Manifesto Musical” (1967) incluía “Margarida”, romantismo vencedor de festival composto e interpretado pelo integrante Gutemberg Guarabyra

“A minha música não traz mensagem/ e não faz chantagem ou guerra fria/ e nem fala em ideologia/ou vim apenas pra te falar/ de uma grande perda que nem sei/ se é da direita ou da esquerda/ e que importa se a censura corta?/ pois eu gosto dela se é vermelha/ ou se é verde e amarela”, cantava, confusa, a canção-manifesto “Manifesto” (1967), de Guto e Mariozinho. “Para mim foi um grande golpe/ não sei se de Estado ou armado/ ou talvez de coração/ só sei dizer que a dor foi muito grande”, completava o grupo que hoje talvez se pudesse dizer “isentão”, entre canções batizadas de “Garota Esquerdinha” (“você fala de Freud e nunca lê”),”Cabra Macho” (“achar macho hoje é fácil/ o difícil é achar home”, “mas também tem muito rico/ que não é macho e nem é home”), “Maria Redentora” (“eis que surge um belo dia um senhor de mil promessas/ numa dessas a Maria se casou com um marechal”) e “Garoto Paissandu” (“de fome ele fala, mas não passa/ se o chamam de burguês ele acha graça/ é contra o imperialismo, mas só usa calça Lee/ tem soluções para o Nordeste, mas não quer sair daqui”).

A futura parceira Luhli estreou em 1965 com "Luli", em que aparecia como autora de apenas uma faixa, entre composições masculinas de Geraldo Vandré, Sidney Miller e Luiz Carlos Sá
A futura parceira Luhli estreou em 1965 com “Luli”, em que aparecia como autora de apenas uma faixa, entre composições masculinas de Geraldo Vandré, Sidney Miller e Luiz Carlos Sá

Talvez incompatível com as convenções da indústria fonográfica da virada dos 1960 para os 1970, Lucina se encontrou como compositora e parceira de Luli, futura Luhli (inclusive num “trisal” formado com o fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca). A dupla Luli & Lucina jamais deixou de ser “underground”, mas é responsável por naco expressivo do sucesso de massa da MPB dos anos 1970 e 1980.

Pela Som Livre dirigida por Guto Graça Mello e em grupo hippie com O Bando, Luli e Lucinha lançaram o compacto "Flor Lilás", em 1972
Pela Som Livre dirigida por Guto Graça Mello e em grupo hippie com O Bando, as então Luli e Lucinha lançaram o compacto “Flor Lilás”, em 1972; lado B, o rock hippie-progressivo “Floresta Encantada” já prenunciava os Secos & Molhados e as canções de natureza feminina que viriam

Para os Secos & Molhados, Luli compôs os clássicos pop-andróginos-progressivos “O Vira” (1973) e “Fala”, em dupla com João Ricardo. Convertido em astro solo, Ney Matogrosso celebrizou bombasticamente criações ciganas-indígenas-hippies da dupla como “Bandolero” (1978), “Napoleão”, “Coração Aprisionado” (1980), “Eta Nós” (1984) e “Bugre” (1986). Em comunidade praieira hippie, compunham e criavam os filhos que ambas tiveram com o marido Luiz Fernando, que por sua vez fotografava Ney em tons sobre-humanos para o álbum de estreia Água do Céu – Pássaro, de 1975.

Em "Água do Céu - Pássaro" (1975), de Ney Matogrosso, Luiz Fernando fotografou a capa e Luli & Lucina assinaram o lancinante épico natural "Pedra de Rio"
Em “Água do Céu – Pássaro” (1975), de Ney Matogrosso, Luiz Fernando fotografou a capa e Luli & Lucina assinaram o lancinante épico natural “Pedra de Rio”

Com a morte de Luiz Fernando e a separação de Luhli, Lucina segue brava trajetória solo desde os anos 1990, em composições femininas em dupla com Luhli, Alzira E, a sósia vocal Zélia Duncan e a jornalista Patrícia Ferraz, sua companheira há décadas. Espalha-se entre discos de MPB (como + do Que Parece, de 2009, inteiramente composto com Zélia) e dois álbuns antológicos de pontos de umbanda, Ponto sem Nó (2002) e Gira de Luz (2004). No ano passado apresentou o trabalho mais recente, Canto de Árvore, sobre o qual falou na entrevista a seguir (também em vídeo), registrada em São Paulo, em 18 de novembro de 2017.

Pedro Alexandre Sanches: A canção “O Que Ficou” é assinada “de Luhli para Lucina”. Qual é a história dessa música?

Lucina: É uma música que conta a história da gente enquanto tribo. É um retrato bem fiel daquilo tudo que a gente viveu como tribo. Mas tem um detalhe: eu faço aniversário no dia de Natal, 25 de dezembro. E eu sempre reclamava, “puxa vida, só ganho um presente”. Claro, ganho um presente melhor, mas é um presente só, porque é Natal e embola tudo. Aí a Luhli falou: “Pode deixar que vou te dar um presente”. Isso foi na primeira vez, muito tempo atrás. Ela fez o primeiro presente, e em seguida todos os anos que vieram ela fez uma música pra mim de presente.

PAS: Isso foi quando?

L: Foi mais ou menos em 1974, faz muito tempo.

PAS: Mas a primeira não foi essa música, foi?

 

L: Não foi essa. Ela foi fazendo, foi fazendo, foi fazendo. Essa aí está lá pelo meio, é meio anos 1980, onde ela conta qual era o barato (ri). Ela é antiga e inédita, é aquela música que ficou preservada, a gente nunca gravou. Eu fui cantando, em um show ou outro, com ela. Depois realmente ela ficou stand by, esperando o momento dela. Aí quando teve esse Canto de Árvore eu achei que, até por conta do Yorimatã, o filme que foi lançado (com direção de Rafael Saar), eu quis fazer um link com aquele filme, com a nossa história. Aí vou te contar a verdade, tá?

Em "Canto de Árvore", a autora canta "O Que Ficou",  "de Luhli para Lucina": "Foi muita droga, muita ioga, muita vertigem/ foi muito verde, muito mar, muito banho de chuva/ foi muito sol e som/ doía de tão bom"
Em “Canto de Árvore”, a autora canta “O Que Ficou”, “de Luhli para Lucina”: “Foi muita droga, muita ioga, muita vertigem/ foi muito verde, muito mar, muito banho de chuva/ foi muito sol e som/ doía de tão bom (…)/ ficou você e eu/ cada uma na sua/ no pescoço uma guia”

PAS: Por favor. Gostamos.

L: Você sabe que a gente tem uma mente um pouco cariada, né? Às vezes a memória da gente é meio cariada (ri). Eu achei que a música era minha. Quando eu peguei “O Que Ficou”, pra mim era nossa, era de Luhli & Lucina, pronto. Quando fui olhar de verdade pra música, falei: não, essa música é presente musical, foi um presente da Luhli pra mim. Aí achei que era mais interessante até, porque é a única música que não é minha nesse CD. Tudo é autoral, e aí entra essa música da Luhli falando de mim, da tribo, da vida, fazendo esse link. É uma alegria poder estar fazendo essa música agora. E quando gravei teve o seguinte: eu fiz uma base de violão, baixo e piano. Quando escutei, falei: cara, eu não quero o meu violão. Tirei o violão. Maurício Cajueiro, dono do estúdio onde eu estava gravando, falou: “Mas você vai ficar nua, você não tem apoio, é muito corajoso fazer isso”. Nei Marques falou: “Colocando violão você ganha uma coisa mais comercial, uma levada”. E eu tirei o violão. Fiquei pelada no meio de todo mundo. Eu adoro.

PAS: Quando eu ouvi essa canção, tive a impressão que era mais recente, que contasse a história bem depois de ela ter acontecido. Então não é bem isso.

L: Porque a gente teve uma fase, primeiro, em que a gente morou em Figueiras, perto de Mangaratiba, que foi a fase em que a gente ficou totalmente dedicada à tribo, e a fazer aquelas músicas quase que diariamente, porque o lugar é muito inspirador, na baía de Sepetiba, em frente pro nascente, e a gente na plataforma, na frente da gente o mar mesmo, uma vista maravilhosa. A gente tinha muita inspiração, mas naquela vida, com criançada e tudo mais, Luiz Fernando (Borges da Fonseca) e as crianças. Depois dessa primeira fase em Mangaratiba a gente veio pra São Paulo, que foi quando chegamos no Lira Paulistana e começamos a sentir que aquilo que a gente tinha feito dava um caldo bem bacana. São Paulo foi um lugar que realmente mostrou pra gente a força que a gente estava trazendo de raiz.

PAS: Os primeiros versos, só pra contextualizar?…

L: (Canta.) “Foi muita droga, muita ioga, muita vertigem/ foi muito verde, muito mar, muito banho de chuva”.

PAS: Eu tive o privilégio de levar você até a casa da Luhli na serra, e teve um momento emocionante em que ela mostrou uma música inédita. Pensei que pudesse ser essa, mas então era outra. Aquela está inédita ainda?

L: Está inédita numa gravação minha, porque foi gravada por uma cantora do Rio, a Lucelena Vaz, num arranjo deslumbrante. É a música que eu dei de presente pra ela, e ela voltou com essa letra e naquele dia me mostrou, deixou mostrar naquele dia, pra me fazer chorar, né?

PAS: Choramos todos.

L: Choramos todos.

PAS: Com os pirilampos e as fadas.

L: (Risos.)

PAS: Você é mato-grossense, de Cuiabá.

L: Realmente, é curioso. Em Cuiabá a música não é o forte.

PAS: Como foi sua vivência musical na terra natal, e como isso influenciou e influencia a sua música?

L: Eu tive uma vivência pequena em Cuiabá, curta, de férias.

PAS: Você não chegou a morar?

L: Não. Minha mãe morou a vida dela inteira antes de casar. Meu bisavô é o historiador de Cuiabá, é nome de praça, biblioteca, Estêvão de Mendonça. Minha avó foi uma pessoa importantíssima nas artes em Mato Grosso, porque ela tocava piano, acordeon, pintava, tinha saraus em casa. Ela tinha uma relação muito forte com a cultura do lugar.

PAS: Então a família materna é mato-grossense, de Cuiabá mesmo?

L: Mato-grossense, de “chapa e cruz”, como eles falam, isso é que nem carioca da gema. É aquele que tem raízes fincadas no lugar. Mas eu saí de lá e fui pra Belém, pequena, e fui criada em Belém.

PAS: A parte paterna é de Belém?

L: É Belém.

PAS: Que mistura é você, floresta com pantanal. Isso explica a música toda.

L: É legal, né? Eu voltava muito pra Cuiabá, ia pra fazenda. Então tive contato com a música de lá, das fazendas, a coisa sempre ternária, praticamente, as guarânias, a coisa da sanfona, da viola, aquela rítmica toda já vinculada com o ambiente. Quando você recebe tudo de uma vez só, aquilo fica em você pra sempre, não desvincula nunca mais. E em Belém também, Belém com uma história, uma seiva musical muito forte, inclusive com a influência das Guianas. Toda aquela parte do Norte recebe a música que vem ali de cima.

PAS: Você disse que acredita que Cuiabá não tem uma tradição musical muito forte?

L: É curioso, você não encontra tantos cantores e compositores que ganhassem relevância. A Helena Meirelles mesmo não era de Cuiabá. Almir Sater é Mato Grosso do Sul.

PAS: Hoje uns são do sul e outros, do norte, mas vocês nasceram todos mato-grossenses, quando não havia dois estados.

L: Todos mato-grossenses. É o Mato Grosso.

PAS: Você, os Espíndola, Almir Sater…

L: Ney Matogrosso.

PAS: Toda uma galera.

L: Uma galera maravilhosa, né?

PAS: Você é uma das poucas que era lá de cima.

L: É, é verdade. Cuiabá é forte na pintura, nas artes plásticas. São exuberantes, muitos artistas se fizeram ali, o João Sebastião (da Costa), muita gente.

PAS: Mas volto a dizer, quando vocês nasceram não eram dois Matos Grossos, era um só. Você sente uma identidade comum com esses outros artistas que citamos?

L: Me identifico perfeitamente, a gente tem uma ligação profunda. É curiosa minha ligação com os Espínola…

PAS: Que rendeu um disco maravilhoso ainda inédito comercialmente, Água dos Matos.

"Água dos Matos", de Tetê Espíndola, Alzira E, Lucina e Jerry Espíndola, resultou de uma expedição musical pelos rios Cuiabá e Paraguai
“Água dos Matos”, de Tetê Espíndola, Alzira E, Lucina e Jerry Espíndola, resultou de uma expedição musical pelos rios Cuiabá e Paraguai

L: É, na verdade conheci Tetê (Espíndola) e Alzira (E) na casa delas, quando eu era garota, tinha 14 anos. Estava viajando com a minha avó, indo pra Cuiabá, e tinha que pernoitar. E a maior amiga que ela tinha era a mãe da Tetê e da Alzira.

PAS: Isso em Cuiabá?

L: Isso em Campo Grande. Eu passei em Campo Grande, pousei na casa das meninas, nem sabia, nem eu era da música, nem delas, nem nada. É um enredo, né?

PAS: Sem contar Água dos Matos, que saiu de uma expedição de vocês todos pelo rio…

L: Rio Cuiabá e rio Paraguai.

PAS: Sem falar disso, o Pantanal é uma referência pra você? Influencia na sua música, ainda que você tenha saído?

L: As águas, né? É muito forte.

PAS: Você só fala de água, e leva Luhli junto com você.

L: (Ri.) Levo.

PAS: Levou.

Ainda como Luli & Lucinha, e depois de assinarem sucessos na voz de Ney Matogrosso como "O Vira", "Fala" e "Bandolero", Luhli e Lucina estrearam em disco de dupla que continha "Coração Aprisionado" e "Yorimatã Okê Aruê"
Ainda como Luli & Lucinha, e depois de assinarem sucessos na voz de Ney Matogrosso como “O Vira”, “Fala” e “Bandolero”, Luhli e Lucina estrearam em disco de dupla que continha “Coração Aprisionado” e “Yorimatã Okê Aruê”

L: Levei. Levo. Não levei, não tem passado, não. A dupla pode ter terminado, mas a parceria continua, a gente tem coisas lindas atuais.

PAS: Falei bobagem, pra variar.

Em 1982 surge "Yorimatã - Amor de Mulher", com Luhli na capa...
Em 1982 surge “Yorimatã – Amor de Mulher”, com Luhli na capa…
...e Lucina na contracapa, e no repertório "Gira das Ervas", "Primeira Estrela", "Ponto de Oxum" e "Índia Puri"
…e Lucina na contracapa, e no repertório “Gira das Ervas”, “Primeira Estrela”, “Ponto de Oxum” e “Índia Puri”

L: É (risos). O Pantanal sempre foi uma influência pra quem esteve perto. Aquilo ali, também, são as referências que te movimentam por dentro. Não é só uma movimentação estética, “ó, que lindo”. Porque é lindo, mas fazem uma alquimia pra sempre em você.

PAS: Como diz Aldir Blanc, o Brasil não conhece o Brasil. O Brasil não conhece os Matos Grossos.

L: Não conhece, não conhece quase nada.

PAS: E inclusive, em alguma medida, a sua música e da Luhli, essa música interior que vocês fazem.

L: Não conhece. E é extraordinária a quantidade de gente boa fazendo música incrível por aí. Tem lugares que são grandes mananciais, como Belém ou o Mato Grosso do Sul.

PAS: Provavelmente água é música e música é água.

L: Com certeza, com certeza. É demais. Macapá é incrível, tem muita, muita coisa bonita lá.

PAS: Seu disco mais novo se chama Canto de Árvore, faz parte desse mesmo ecossistema, uma parte dele.

L: Faz parte, eu me senti como essa árvore, sabe?, como essa madeira. O Canto de Árvore é uma madeira no rio, é a madeira da árvore e é a madeira no rio, sobre o rio, também. Tem uma coisa espacial, viajante, que já é coisa de arrudA, que é paulistano, uma linguagem completamente contemporânea, muito forte.

PAS: Gosto da música em que você diz que é do contra, e explica na própria letra que ser do contra não é o que parece.

L: “Do Contra” é parceria com Iso Fischer, meu parceiro lá de Curitiba. Ele na verdade mora lá, saiu de São Paulo. Ele é muito legal, tem umas imagens muito características, a música dele é toda cheia de imagens que te carregam. Quando cheguei na casa dele, falei: “Olha essa música que eu fiz, bota letra pra mim”. Ele falou: “Ih, esse é um samba. Do contra”. Falei: “Ué, mas não é mais samba então, se está no contra”. “Não, é um samba do contra.” E veio “Do Contra”, fazendo essa brincadeira.

PAS: Se ajusta a você o que essas palavras dizem?

L: Completamente (ri). Mas eu vou contrariar na música, na expectativa que você tem de que aquilo seja um samba quadrado. Nesse ponto é onde eu posso contrariar. Eu acho que tudo que faço é muito simples, mas tem um truque. Esse truquezinho a gente poderia dizer que é uma contradição, mas não é. É um truque. É onde você pode falar “ah, é tão simples”, e de repente você tropeça, porque tem o tal do truque. Estava conversando sobre isso com a Alzira, ela estava curtindo com a minha cara, “pô, a Lucina, sabe como é que é, você ri de si você mesma”. Como assim, Alzira? “Você faz o acorde e ri dele, eu acho engraçado ver você rindo”. Aí ela foi tocar pra mim uma música que eu pedi e ficou rindo do truque que ela fez. “Alzira, você também ri do seu truque.” É uma brincadeira que a gente sabe que está ali dentro e é o que vai tornar aquilo interessante.

PAS: Ser mulher compositora num universo que nem sempre parece, mas é tão masculino, é um modo de ser do contra? É uma teimosia? Como faz pra sobreviver nesse “men’s world”?

L: Não. Não é do contra ser compositora num mundo que historicamente tem muito mais compositores homens. Essa história toda do homem saber fazer a música e a mulher servir para adornar e para cantar aquela música… Pode aparecer como cantora, mas como uma pessoa com ideias, já… Não é bem o mundo que a gente está vivendo.

PAS: Está mudando muito, né?

L: Mudou. Mudou. A Luhli…

PAS: E é na mudança que a gente se dá conta de que era como era.

L: É verdade. A Joyce

PAS: Eu mesmo não percebia muito do que venho percebendo, de como são interessantes as compositoras, embora eu sempre prestasse atenção nas cantoras.

L: Pois é, a Joyce falou, no depoimento no Yorimatã, que ela teve esse problema, de as pessoas falarem “música boa demais para ser de mulher”. A Luhli teve algum tipo de preconceito, sim. Mas eu, sinceramente, não tive, não senti esse preconceito. Eu já cheguei, e mesmo tendo chegado tão logo em seguida, não senti realmente nenhum tipo de barreira.

PAS: Mas, por exemplo, o fato de você nunca ter sido uma artista de massa não se deve a um preconceito? Se deve ao seu temperamento?

L: À minha escolha. Não é temperamento, é escolha. É claro que eu quis fazer sucesso um dia. Eu quero fazer sucesso ainda. Não nesse sentido de pagar qualquer preço para ter sucesso. Isso eu não faço. Tanto não fiz que não fiquei famosa (ri) numa fama de massa. Ganhei prestígio, respeito, que era bem o que eu queria ganhar. Queria ganhar mais dinheiro (ri), que é o que a massa traz. Sucesso de massa te traz retorno financeiro. A gente tem que matar aquele famoso leão por dia, que é real. Ao mesmo tempo, o fato de eu ter esse desafio diário me torna contemporânea. Estou absolutamente de acordo com o meu tempo. Não estou defasada deste tempo, porque estou na luta. O fato de eu ser já uma pessoa sênior, de ter uma carreira de 50 anos…

PAS: É tudo isso?

L: Tudo isso, cara. Eu comecei muito cedo, garota, cantando no Grupo Manifesto. Teve toda uma situação de uma menina bem jovem que veio vindo, veio vindo, veio vindo. Então, quando eu olhei eu tinha 50 anos de carreira. Mas 50 anos de carreira, não sou uma velhusca pensando no passado, com um discurso antigo. Meu discurso é atual, acredito que muito por conta de eu estar antenada e viver pagando um preço para estar aqui com a minha carreira, na batalha. E também, por outro lado, a minha música vem fresca, tem esse frescor de quem está aqui e agora.

PAS: Me identifico muito com você, porque, apesar de homem, estou aqui te entrevistando neste celular, e se tivesse feito outras escolhas talvez estivesse fazendo com uma câmera, num programa de televisão. Só que nesse caso talvez não estivesse entrevistando você, e sim uma pessoa correspondente a esse outro universo que a gente não habita. Mas eu ainda pergunto, é escolha?

L: Sim, sim. Houve uma série de escolhas, lá pra trás. As escolhas começaram bem lá atrás, na hora de gravar disco com gravadora, onde eu não tive nenhuma vontade que a minha obra fosse mexida, “isto aqui é mais legal”, “canta esse tipo de música” ou “faz uma música parecida com aquela”. Realmente não rolou, não dava. E, por conta disso, “ah, essa aí não pode mexer”, “não dá pra ser moldada exatamente do jeito que a gente gostaria”. Você fica numa bandejinha ali.

PAS: Isso ainda na dupla, ou já na carreira solo?

L: Ainda na dupla. Na carreira solo eu já estava completamente definida. Na minha primeira fase eu comecei uma carreira de cantora. Eu era uma grande promessa de cantora. Gravei um monte de disco de festival, fui do Grupo Manifesto, mas sempre cantora. Na hora que comecei a compor eu não parei mais. Mas só que a fase da compositora foi onde me encontrei com uma parceira ideal.

PAS: Aí não era somente uma, mas duas, juntas.

L: Exatamente. Aí a gente fez a dupla, e eu fui seguindo, seguindo, seguindo essa carreira, e sempre alternativa. Aí eu já estava, já gostei, já fiquei, do meu jeitinho. Deixa eu tirar essaa lágrima aqui, que meu olho chora sozinho.

PAS: Ah, pensei que era emoção, poxa.

L: Sabe que o Clodovil achou que era, mil anos atrás, numa entrevista? Este (o esquerdo) é o olho que chora, é só um, que tem um canal lacrimal que chora sozinho.

PAS: Isso é uma bruxaria.

L: Ele achou que eu estava muito emocionada.

PAS: E você não desmentiu ele.

L: Claro que não, fiz aquela cara horrível de péssima atriz.

PAS: Em outras circunstâncias eu seria o Clodovil, e você, talvez, a Joelma (risos).

L: Não, você não é o Clodovil, você não poderia ser (risos).

PAS: E vice-versa. Nada contra eles, vai, eles são legais…

L: Não, imagina. Não mesmo. É que não cabia, não ia ficar nada bem.

PAS: Qual seria a sua música mais famosa, das cantadas por outras pessoas?

L: Ah, o “Bandolero”, com certeza.

PAS: Um trechinho?

L: (Canta.) “Eu, bandolero,/ no meu cavalo alado/ na mão direita o fado/ jogando sementes/ nos campos da mente”. Essa é a mais famosa, de massa. A segunda mais famosa, de massa, é “Eta Nóis”, que foi gravada pelo Rolando Boldrin, com uma dupla sertaneja acompanhando, pelo Ney, pela Mãeana agora. Mãeana tem 20 e poucos anos, é uma figurinha dessa nova geração, é casada com um dos filhos do Gilberto Gil, com o Bem. Foi incrível, porque ela jogou essa música pra um público muito jovem. Agora Rubi e Kléber Albuquerque acabaram de gravar também.

PAS: Um trechinho?

L: (Canta.) “Nós se cruzemo na espiral da vida/ mais de uma vez eu tenho consciência/ de que a vida não tem coincidência, ai”.

PAS: Na origem ela era caipira, não sei se já na primeira gravação.

L: Ela é, eu fiz caipira, imagina, foi intencional.

L: (Canta.) “Nós se gostemo e se tornemo amigo/ mil música cantemo pros nossos ouvido”. Foi proposital, e foi de verdade, foi um amigo da gente que aprontou uma e eu fiz, essa letra é minha.

PAS: Eu ia perguntar, qual é sua frequência em fazer letra?

L: “Bandolero” também é minha. “Eta Nóis” é minha e tem uma parte, muita coisa, da música também. A frequência é muito melhor do que de melodia. Eu sou uma melodista por natureza.

PAS: Caudalosa.

L: Caudalosíssima (risos). E tem uma música que é a música mágica que a gente tem, que é “Primeira Estrela”. Ela é a música mais cantada que a gente tem. Foi gravada pela Nana Caymmi, mas ela tem uma coisa alternativa que foi cantada por mais de 40 corais no Brasil inteiro, dançada por mais de 30 grupos de dança. E todas as vezes que alguém chega pra mim e diz “eu adoro aquela sua música”, eu olho pra cara, só espero, três, dois, um: “Primeira Estrela”.

PAS: Trechinho?

L: Detalhe: “Primeira Estrela” é cantada nas festas populares de todo o estado do Rio e de Minas Gerais.

PAS: Essa música é um igarapé, aqueles braços de água que a gente não percebem muito que existem, mas levam a água?

L: Exatamente. O refrão dela diz (canta) “toda criança que nasce parece a primeira estrela/ amor promessa brilhando no céu do tempo/ mas na porta do mundo tem uma roseira que flora e chora”. É linda.

PAS: É do primeiro disco de vocês? Do segundo?

L: Do segundo, Yorimatã – Amor de Mulher.

PAS: Feita pras crianças.

L: Feita pras crianças.

PAS: Tem esse vínculo também.

L: Tem. Eu fiz mesmo pros meninos, quando fiz a melodia. Pra um deles, os meus gêmeos, especialmente, o Pedro, teu xará. Ele teve uma historinha meio triste, nasceu mal pra caramba, todo apertadinho. Quando ele estava recuperado, eu descobri que quando ele cantava no agudo ele adorava, ficava doido. Passei por ele e brinquei (cantarola a melodia).

PAS: Inventou na hora?

L: Não me toquei, fiz qualquer coisa. E ele ria, ria. E a Sônia Prazeres estava em casa passando uns dias, escutou a música, saiu correndo, completou. Falei: “Gente, essa música é boa”. Ela disse: “Não é boa, não, é ótima”. Peguei, botei no violão, aí saiu o mundo.

PAS: Falando em crianças, me impressiona muito algo que eu soube só na entrevista com Luhli & Lucina, a história com o Sítio do Picapau Amarelo. Já fui uma criança feliz por ter tido o Sítio e teria sido mais ainda se Luhli & Lucina cantassem ali também.

L: É verdade, a gente tem um trabalho grande pra criança.

PAS: Foram convidadas a fazer as músicas do Sítio pelo Dori Caymmi?

L: Não, foi o Roberto Menescal.

PAS: Depois é que a direção musical acabou com Dori?

L: É, foi o Menescal. Nós gravamos uma…

PAS: Foi um momento em que o sucesso bafejou?

L: Bafejou geral, geral.

PAS: E Luhli não quis? Ou foi você? Ou foram ambas?

L: Foi a Luhli.

PAS: Ou você botou a culpa nela?

L: Botei a culpa nela nada (risos). Não, a Luhli tinha uma razão. Ela realmente ficou revoltada, porque ela tinha feito “O Vira”. “O Vira” e “Fala”, grandes sucessos dos Secos & Molhados.

PAS: Ela tem um toque de Midas na hora de compor, né?

L: Menino, essas duas músicas, total, é ouro puro. Duas músicas lindas, do João Ricardo, com essas letras ótimas, ótimas, ótimas. Defeituosas, lógico, tinham que ser minhas, era pra ser Luhli & Lucina (ri). E aí, claro, todo mundo queria um novo Vira, e isso irritou demais. Ela disse: “Não vou fazer o novo Vira, não quero, pronto”. E aí realmente ficou meio mal parada a história.

PAS: “O Vira” batia com criança, né? Não tem esse mistério?

L: Batia e bate, né?

PAS: Mas, também, fala de sacis, fadas…

L: É, inclusive eu mesma tenho várias coisas paralelas, oficinas de criatividade, música, voz, tambor, e também trilha de teatro pra criança. Fiz muita trilha pra teatro infantil e faço parte da Companhia Triângulo de Bonecos e Atores. Fiz um espetáculo que é O Passarinho Me Contou, onde “O Vira” estava inserido, porque eram poemas pra crianças, e coisas musicadas, minhas e de outros autores, pra criançada. E “O Vira” era um ponto fortíssimo, não tem jeito, você toca e a criança conhece, dança, sabe. É incrível o poder de certas músicas de atravessarem gerações e ficarem eternas. É uma beleza, acho lindo demais quando isso acontece.

"Ponto sem Nó" soma pontos de umbanda e canção marítima de Paulinho da Viola ("Timoneiro"), tema paraense de Nilson Chaves ("Dança de Tudo") e versão solo de "Suba na Baleia"
“Ponto sem Nó” soma pontos de umbanda e canção marítima de Paulinho da Viola (“Timoneiro”), tema paraense de Nilson Chaves (“Dança de Tudo”) e versão solo de “Suba na Baleia”, lançada por Luli & Lucina em “Timbres e Temperos” (1984)

PAS: Tem algumas canções que têm um vínculo explícito com o candomblé. As pessoas conhecem pouco seus discos solo, não são muitos, mas também não são poucos, e gosto muito daquele centrado nos pontos de candomblé.

L: O Ponto sem Nó (2002).

PAS: E tem ali “Suba na Baleia”, dá pra chamar essa de ponto?

L: Não, sabe por quê? Mal comparando, o ponto é o jingle perfeito.

PAS: Como assim?

L: É porque normalmente, quando você apresenta um ponto, você está no terreiro tocando. Eu toquei em terreiro 30 e tantos anos da minha vida.

PAS: Não toca mais?

L: Eu pedi licença há uns anos, porque eu estava muito cansada. No palco você toca uma hora, e mesmo assim não é uma hora toda de tambor. Mas num terreiro você toca quatro, cinco horas sem parar.

PAS: É um trio elétrico.

L: É um trio elétrico. Falei, gente, não tô dando conta. Tem uma hora que você fica meio cansada – meio é ótimo, você fica bem cansada. Apesar de que eu pego um tambor e mando muito bem.

PAS: Eu queria falar de “Suba na Baleia” (1984) e de “Gira das Ervas” (1982), que são duas músicas da dupla e estão naquele CD solo dos pontos. Juntei tudo numa pergunta.

L: “Suba na Baleia” é uma homenagem aos orixás. É uma homenagem mesmo, declarada, a gente fala de cada um, o que acontece. “Gira das Ervas” é, imagina, uma louvação à Jurema, então está fortissimamente ligada a Oxum. São músicas ligadas aos orixás. O ponto serve pra saudar, pra explicar, pra reunir e pra dispersar. Ele tem muitas funções. Mas ele tem que ser muito rápido, você canta num terreiro na primeira vez, na segunda todo mundo aprendeu, e na terceira, se todo mundo não cantar, o ponto não é bom. O ponto é assim. Por exemplo, vou cantar um ponto da gente (canta): “Vento, que vento, que vento, que ventania e que furacão/ chuva, que chuva, que chuva, que chuvarada com raio e trovão/ (pega um tambor para acompanhar) vem dançar com o pé de Iansã/ vem cantar com a voz de Iansã/ Iansã lave o seu coração”. Eparrei, Oyá. Esse é um ponto. Você falou de Iansã, disse o que ela faz, sabe que ela está ali na natureza, na chuva, na ventania. Isso é um ponto mesmo, tocado em terreiro. E eu fiz um CD de ponto, que é o Gira de Luz.

PAS: Esse não conheço.

L: Ele não foi comercializado.

PAS: É tão secreta que tem até discos secretos, Água dos Matos, esse…

L: Gira de Luz é secreto mesmo. A única vez que lancei foi lá na Noruega, no Sacred Drumming Festival, o festival de música sagrada. Eu levei os pontos de umbanda, montei um set de tambor, um grave, um médio grave e um agudo, e levei os pontos mesmo. Fiz lá a apresentação dos pontos, e aí levei esse CD. Foi um CD que eu fiz pra mim, eu e Mário Avelar, que é meu parceirinho, fizemos para os orixás.

PAS: E não querem que a gente conheça?

L: Eu preciso na verdade masterizar ele legal. Foi feito durante meses, dia após dias. Ia pra casa do Mário, ele tem um home estúdio – tinha, ele faleceu recentemente. Fomos fazendo. Tem pontos meus, meus com Luhli, meus com Mário, do Mário. É uma coisa muito de homenagem pessoal pros orixás. Hoje em dia, praticamente, está proibido, vamos combinar? A intolerância religiosa é um negócio gravíssimo.

PAS: Eu queria mencionar isso, a gente falou de preconceito antes, e isso andava quieto, mas nunca deixou de existir. Esse lado tanto seu quanto da Luhli é polêmico, digamos.

L: Nunca foi polêmico, e agora infelizmente agora a gente está num momento fundamentalista, de intolerância religiosa. E isso é muito grave, muito grave, porque é uma invasão na escolha de cada um.

PAS: Na religião do outro, porque o que você tocou é religião também.

L: Isso é religioso, sim, é da umbanda, e eu tenho o direito de ser umbandista, você tem o direito de professar qualquer religião que quiser. É um absurdo. Estamos falando de preconceito religioso, de preconceito de uma maneira geral.

PAS: E estão todos ouriçados agora, não é só esse.

L: É, eles estão alimentados, infelizmente, por uma fúria burra.

PAS: E assustadora.

L: E assustadora, porque é burra, então se permitem a tomar ações em função de uma situação de ignorância e truculência sem necessidade alguma.

PAS: Você era muito jovem na outra ditadura, quando começou. Dá pra comparar as duas situações, a de agora e aquela?

L: Sob o meu ponto de vista?

PAS: Sim.

L: Olha, no começo da ditadura eu não tinha muita consciência do que era aquilo. Mas eu tomei rapidamente, já no final dos anos 1960, lá pelos 1968, eu já estava bem inclusive envolvida, junto com meus amigos. Já era artista, já tinha virado, de repente virei artista.

PAS: Grupo Manifesto era meio da outra vertente, não era? Era meio…

L: O quê?

PAS: Reaça?

L: (Ri.)

PAS: Algumas letras ali, sei lá… É um testemunho histórico incrível, mas…

L: É, eles eram meio alienados. Na verdade era um monte de garotada mais alienada, mais ligada na poética e em outras coisas. Mais tarde… Mas o próprio disco que Mariozinho Rocha fez com o Manifesto…

PAS: Vamos explicar para o querido telespectador, ele é hoje em dia o manda-chuva das trilhas sonoras das novelas da Globo.

L: Exatamente, há muitos anos ele é.

PAS: Vamos dizer que há toda uma ditadura, faz uns 50 anos.

L: Exatamente, o Mariozinho fez um manifesto gravado pela Elis, onde ele tinha uma posição. Mas essa posição foi um passaporte pra ele, e com a inteligência dele, uma pessoa muito esperta, muito rápida, ele foi, virou júri do Flávio Cavalcanti, junto com o Guto Graça Mello.

PAS: Que também era do Grupo Manifesto.

L: Que era parceiro dele, era do Grupo Manifesto também.

PAS: Quem mais era mesmo?

L: Gracinha Leporace, que depois se casou com Sergio Mendes. Fernando Leporace, irmão da Gracinha, que era um dos bons compositores, é um excelente compositor. Amaury Tristão, que se mandou pros Estados Unidos e nunca mais voltou. E Augusto Pinheiro e José Renato Filho, que só cantavam, eram parte do coro. Nós éramos as solistas. Era uma turma boa. E Junaldo Duarte, que é um baiano, era um pouco mais velho que todo mundo, um cara mais vivido, que virou Juju Duarte, foi gravado recentemente acho que na França, está lá na Bahia há muitos anos. Mas Guto e Mariozinho eram os compositores da galera, junto com Fernando, e entraram como jurados do Flávio Cavalcanti e de lá eles foram pra Globo.

PAS: Só pra contextualizar, um é o cara que decide que músicas vão tocar nas novelas e o outro é o produtor do Roberto Carlos, só.

L: E arranjador, excelente arranjador. Mariozinho também, mas Mariozinho realmente virou um coxa gigante.

PAS: Já tentei entrevistar, mas ele foge.

L: Não, você não vai conseguir. Eu nunca tentei falar com ele.

PAS: Ah, você não tem mais contato?

L: Não tenho mais contato? Não tenho mais contato desde a minha outra encarnação, quando eu era do grupo.

PAS: Ou da outra encarnação dele (risos). Pô, Mariozinho, se você estiver assistindo manda um alô (risos). Olha, Lucina, sua amiga de juventude.

L: Poxa, Mariozinho.

PAS: Linda, incrível.

Patrícia Ferraz: A mãe de Lucina diz “já almoçou muito aqui, tomou muito meu uísque”.

L: É verdade, você tomou muito uísque da minha mãe.

PAS: É, quando você falou antes de escolha, as oportunidades estavam todas ao redor, né? Não sabíamos, na época.

L: Não. Depois do Manifesto aconteceu uma coisa muito interessante, que foi o fato de que quando parti pra carreira solo minha primeira parceira foi a Joyce.

PAS: É? Olha só, que coisa linda.

L: E a Joyce, sim, ela já tinha um lance muito politizado e estava circulando naquela galerinha de que eu era amiga, mas não tinha ainda uma intimidade. Eu passei a ter essa intimidade, e aí o discurso ficou sendo mais definido e a gente passou a participar ativamente de uma resistência àquilo tudo, os festivais, em seguida eu fiz o Festival da Record, entrei como compositora.

PAS: Tinha um outro nome…

L: Lucelena, porque, louca, não sabia o que fazer. Meu nome é Lúcia Helena, né?, o nome verdadeiro.

PAS: Voce contraiu e transformou numa palavra só.

L: A Philips contraiu.

PAS: Ah, não foi você?

L: Eu não sabia, não sabia, eu não sabia nada.

PAS: E Lucina?

L: Quando comecei a carreira com a Luhli… Porque eu parei tudo, né? Depois de Lucelena gravar, entrar no festival da Record e tudo mais, eu dei um tempo. Mas a Lucelena frequentou a casa de Guilherme Araújo aqui em São Paulo junto com toda a tropicália.

PAS: Ah, é?

L: É.

PAS: E você fala dela na terceira pessoa.

L: Não, sou eu mesmo (risos). Fiquei muito amiga do Torquato Neto, era louca por ele. E participei de algumas reuniões, porque ali a galera concebia todo o conceito da tropicália, que foi toda pensada. Ela tinha grandes pensadores, né? Tudo que aconteceu ali não era exatamente espontâneo. As reações, sim, mas o conceito, “vou fazer essa ação”, era pensado. Em algumas reuniões eu estive ali, acompanhando. Foi uma vivência muito forte pra mim.

PAS: Você não se sentiu parte do grupo, ou eles não sentiram? Eu não chamaria você de tropicalista.

L: Não, eu estava um pouco de ouvinte mesmo. Eu fui influenciada por aquilo, com certeza.

PAS: Mas não a ponto de fazer um som que ficasse parecido com o deles.

L: Não, não, não. Mas você fez uma comparação com a ditadura de hoje. A ditadura de hoje está aí.

PAS: Podemos chamar de ditadura?

L: Podemos chamar de ditadura.

PAS: Também acho, mas não está se falando ainda.

L: Ainda não. Está começando como plano. Está indo muito bem o plano deles, de exterminar com os artistas. Ou seja, qualquer reação inteligente, interessante, está sendo limada.

PAS: Você acha que está se fazendo isso conscientemente?

L: As casas de espetáculo fechando, a falta de incentivo público. As opções são bem pequenas. Os artistas são resistência. A cultura significa, não sei, micróbios dentro de um laboratório. Ela está sendo realmente dizimada, eu acho. É uma coisa muito séria. Infelizmente a gente é desunido, porque tem aquela famosa história de que as pessoas querem sobreviver, então cada um vai lutar pelo seu na hora H, socorro. Sinto muita desunião, é muito triste.

PAS: O diabo é que isso que você está falando vale pros artistas, pros gays, negros, índios, mulheres, pessoas do candomblé, vários grupos que tem gente querendo dizimar e não estão se unindo suficientemente.

L: Pelo menos o grupo dos gays, de toda essa diversidade, está mais organizado. Acredito que é o grupo social mais organizado atualmente. Os outros não têm organização, não. E aí, como não tem união, malando, o que a gente faz nessa hora? Era pra todo mundo estar abrindo seus contatos, fazendo essa arte circular, todo mundo trabalhando, talvez ganhando um pouco menos, mas todo mundo ganhando. Está todo mundo fazendo o jogo que é o jogo que já existe há tanto tempo. Um grande patrocinador prefere pagar R$ 1 milhão pra um cantor de massa fazer um show num dia do que ter um projeto que aconteça durante um ano inteiro, dando trabalho a um monte de gente. Isso aí é o próprio capitalismo. E a gente está sentindo duro, o jogo está muito duro. E ele é insidioso, ele quase não parece que é, e cada dia você tem um pouquinho menos. E fora a corrupção, que está acontecendo em todos os setores do nosso país, to-dos. É incrível, até nos programadores de show, em qualquer lugar. É uma coisa estarrecedora.

PAS: Nesse contexto festivais como Rock in Rio são os pega-trouxa para parecer que ainda existe cultura, que tem gente gostando e investindo por uns poucos dias de atrações estrondosas.

L: Sim, é mais um, exatamente.

PAS: A “Gira das Ervas” cura alguma dessas coisas?

L: Cura o coração da gente. E chama um canto guerreiro. Porque você sabe que os toques, cada toque, dentro da umbanda… Dentro do candomblé também, mas eu não entendo nada de candomblé, tá? A umbanda é religião brasileira, uma grande síntese. Imagina uma panela em que se colocou uma série de influências e misturou.

PAS: O africano, o indígena e o europeu?

L: É. Mas nos toques da umbanda, que são muito mais simplificados, são só sete toques, você tem o toque que é o toque que dá um tchan (pega o tambor). A “Gira das Ervas” justamente tem isso, esse toque está dentro dela, ela está puxando isso (toca). Esse ijexá bota você pra andar, né? (Canta.) “E aroeira/ aroeira/ aroeira/ artemísia, arruda, alecrim, erva cidreira”, e no final diz… Você quer que eu toque ela inteira? (Toca.) “Mamãe Terra/ mamãe Terra/ mamãe me diz que as ervas são feitas pra curar.” Isso te chama, te dá força. É um toque que faz, você anda, te move. O inconsciente coletivo é uma coisa incrível, quando você tem um toque, um ritmo constante, você vai ser influenciado por esse ritmo, até onde você consegue escutar. Pode estar muito longe ouvindo aquele ritmo, tudo que você fizer vai estar condicionado a essa pulsação. Essas pulsações modificam a gente. O Que a “Gira das Ervas” é capaz de fazer? Ela te bota pra andar, e te lembra de que as ervas são feitas pra curar. Olha pra mamãe Terra, se liga na Amazônia e na Terra de maneira geral, que é o que a gente tem né?

PAS: Pantanal, Aquífero Guarany.

L: Isso.

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