O cinema na cidade de São Paulo circula entre dois países imaginários que coexistem, um chamado Shopping Center e outro chamado Periferia. A empresa denominada Spcine, criada há dois anos sob os moldes da política cultural do prefeito Fernando Haddad (PT) trouxe a olho nu esses dois países que se desencontram num mesmo espaço público-privado. A definição é do gestor à frente da empreitada, Alfredo Manevy, que se despede do cargo de diretor-presidente da no final deste mês, junto com o prefeito Haddad.
O paulista de Campinas Manevy, um filhote tropicalista das políticas formuladas pelos ex-ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, usou a passagem pela Secretaria Municipal de Cultura, pelas mãos de Juca, para expandir o setor exibidor público paulistano em direção ao país Periferia. Dotou os CEUs (Centros Educacionais Unificados) dos bairros mais afastados do centro expandido de cinemas moderníssimos e tão confortáveis quanto os desfrutados pelos habitantes privilegiados (e/ou blindados) do país Shopping Center.
Abertas a partir de março desde ano, as 20 salas em funcionamento do Circuito Spcine acumularam até o9 de novembro 4,194 sessões gratuitas e atraíram 250,525 espectadores. Os números tornam a Spcine o sexto maior exibidor da capital paulista, em disputa direta com grandes exibidoras, como Cinemark, UCI, Espaço Itaú, Cinépolis e Playarte.
Se valerem os clichês que rotulam o PSDB de João Dória Jr. como um partido elitista e demofóbico, esse modelo pode começar a ruir a partir da posse do prefeito que chega. Manevy se afirma otimista quanto à não adoção de política de terra cultural arrasada por parte da equipe que chega. Cita como justificativas para a visão otimista as declarações públicas do novo secretário municipal de Cultura, André Sturm (outro egresso da área do cinema), e o modelo de transição até aqui seguido por Haddad e Dória, para ele diferente em tudo ao caos institucional gerado pelo golpe dado por Michel Temer (PMDB) em Dilma Rousseff (PT).
“O melhor cenário é quando duas gestões bem-intencionadas e honestas, que se respeitam, fazem políticas culturais distintas”, diz. “O que é ruim é quando se começa a ter um terreno arenoso, de fratricídio, de negação total, e seu adversário vira inimigo. Aí começa a luta campal pela destruição das instituições. Aqui em São Paulo se fez parte de uma eleição, que foi disputada, derrotada, ganhada. O que não dá é quando há um total desrespeito institucional, uma ignorância em relação ao que foi feito.”
Abaixo, Manevy traça um conjunto de avaliações positivas, o balanço de dois anos de existência da Spcine (desde a aprovação por unanimidade na Câmara Municipal, em novembro de 2014) e uma análise de conjuntura sobre as realidades municipal e brasileira no cenário desolador de dezembro de 2016. Na edição 931 da revista CartaCapital está a reportagem completa de FAROFAFÁ sobre a persistência do crescimento do cinema nacional em ritmo chinês, mesmo com o caos instalado na dita macroeconomia e na dita macropolítica.
Eduardo Nunomura: Você vai ficar na Spcine?
Alfredo Manevy: Não. André Sturm é uma pessoa próxima, um cara que ajudou muito a gente, conhece a Spcine, tem uma contribuição no início do projeto da empresa. É um parceiro, a gente trabalhou lado a lado para ajudar a retomar o Belas Artes. A relação com ele é nota 10. Mas eu tinha um planejamento de dedicação, foram dois anos, e encerrei meu ciclo. O trabalho está feito. Teve uma vitória nas urnas de outro projeto, eu sou uma pessoa sensível a isso, respeito. É diferente de Brasília, lá é outra coisa. Acho que preservando a instituição, a política, que era minha principal preocupação, eu fico tranquilo.
EN: Ele te procurou?
AM: Não, eu procurei ele. Liguei pra ele, parabenizei, falei: “Não vai ser fácil, parabéns pela coragem de topar ser secretário de uma cidade com essa complexidade cultural, essa ebulição de demandas. Confio que você vai fazer uma transição de bom nível”. Ele falou: “Olha, quero que continue o projeto, não tenho nenhum problema de trabalhar com você, quero que a Spcine tenha continuidade”. É o que eu esperava ouvir, de certa maneira acho que o que falei para ele era o que ele esperava também.
EN: Mas não ficou claro então? O que isso quer dizer exatamente? Nas entrevistas ele sinalizou que você poderia ficar. Vai ficar ou não vai ficar?
AM: Não, eu não vou ficar. Essa é uma decisão minha. Seria uma forçação. Eu tenho uma carga política também. Não sou um técnico, sou uma pessoa da área, estudei cinema. Preservando o projeto e a equipe, fico supertranquilo de não ter que ficar num bunker aqui, numa trincheira, forçando a barra. Sendo muito tranquilo, conseguir o que a gente está conseguindo aqui é aproveitamento de 99%.
Pedro Alexandre Sanches: O que a Spcine transformou e acrescentou na estrutura do cinema brasileiro?
AM: Fizemos algumas microrrevoluções em política audiovisual. Digo micro porque partem de um território específico, mas são abalos sistêmicos que podem reverberar nacionalmente. Pelo pouco que tivemos, dois anos de implementação, conseguimos dar vários pulos do gato. Incorporamos a exibição, os espectadores como parte fundamental do processo audiovisual, uma coisa que ninguém tinha de coragem de fazer. Dissemos que sala de cinema é importante, que periferia é importante e que é um absurdo que o Brasil tenha 90% dos municípios sem salas de cinema e São Paulo tenha 30% das classes C, D e E sem nunca ter ido ao cinema. Consideramos isso e assumimos essa perplexidade como uma premissa política. E incorporamos isso como uma dimensão estratégica do desenvolvimento social, cultural e econômico. Não há mercado sem consumidores, sem cidadãos. Esse foi um grande conceito em que o Brasil evoluiu nestes últimos 15 anos, que é desenvolver mercado interno, incorporar as pessoas no consumo. Falam muito de que a commodity foi o que sustentou o crescimento brasileiro nos últimos 15 anos, mas não foi só a commodity. Foi o mercado interno que incorporou pessoas na melhoria de renda. Agora está perdendo de novo, mas não estamos voltando ao patamar de onde partimos. A incorporação de pessoas no acesso ao cinema é fundamental. A política das salas é uma revolução.
Outra coisa: o Brasil investiu nos últimos 15 anos enormes quantias para retomar a produção audiovisual, de cinema, de televisão. Hoje estão sendo lançados 130 filmes por ano no Brasil. Desses 130, dez vão chegar ao grande público, e 120 não vão passar de 10 mil espectadores em salas de cinema. Faz sentido gastar tanto dinheiro para fazer tantos filmes por ano? Faz. Mas não olhar para a outra ponta significa que estamos produzindo uma conteúdo que vai ficar para uma parcela ínfima da sociedade, que somos nós, os que têm acesso e contato. Deselitizar a produção cultural brasileira é fundamental e, em termos de criatividade, vai fazer muita diferença. No momento em que os cineastas tiverem contato com as preferências, gostos, taras, gostos musicais e estéticas da população brasileira obviamente isso vai impactar a produção, porque vão surgir mil possibilidades, estratégias e estéticas que vão gerar uma complexidade maior à nossa produção cultural e cinematográfica. Eu acho que é um pouco como a MPB, em que me inspiro muito, que combinou alta qualidade estética com públicos de massa. Pelo menos nos seus grandes momentos, ela foi capaz de misturar.
PAS: Hoje ela copia o cinema.
AM: Ela copiou o cinema no radicalismo da tropicália, do cinema novo. Depois homenageou o cinema novo nas músicas do Gilberto Gil e do Caetano Veloso. Mas acho que a gente tem que se inspirar nas músicas da MPB, nessa grande combinação de qualidade estética e também pretendendo chegar às massas. A música vai atravessando, se reinventando, porque é presente socialmente. A MPB pode ter momentos melhores ou piores, mas o brasileiro se sente conectado a ela. Com o cinema já houve grandes momentos, com a chanchada, a Embrafilme, e hoje estamos reconectando. Em alguns momentos, se atravessa um certo muro social e alguns filmes conseguem quebrar essa barreira, mas de modo geral não.
PAS: A Spcine já consegue atuar nesse sentido?
AM: As salas de cinema foram a nossa grande contribuição, porque são 20 salas que estão chegando às classes C, D e E, às populações mais marginalizadas, que têm menos acesso e menos serviços públicos, mas são ricas culturalmente, em bairros que têm produção cultural à toda. Muitos produtores e realizadores fazem questão de estar nas nossas salas para ter este contato e receber esse input da população sobre sua criação. Uma grande distribuidora brasileira, a maior, nos procurou querendo fazer uma parceria com Spcine para usar nossas salas como piloto de testes para seus filmes. Ela queria fazer uma PPP (parceria público-privada) com a gente. Não deu certo a PPP nos moldes que ela propôs, de cogerir as salas conosco. Ela ia investir, tirar o nosso custo, e em troca teria direito de exploração e de botar os filmes dela.
EN: Como avant-prèmière?
AM: Como avant-première, e usando nossas salas como um grande laboratório. Fazer conscientemente aquilo que aconteceu por acaso com (o filme de José Padilha) Tropa de Elite 1 (2007), que vazou, foi pirateado e depois bombou, começando da periferia e depois indo para o mercado.
EN: Por que a PPP não pode acontecer?
AM: Porque a gente trabalha em CEUs, que têm uma tradição de não-cobrança de ingressos e não dava para mudar isso. Não fizemos essa PPP, mas estamos fazendo parcerias pontuais com todos os realizadores e produtores. Hoje realizadores já nos procuram para ser a primeira janela, querem estrear antes nas nossas salas, entendendo que a gente não concorre com a janela comercial. A gente na verdade está em outro país. É quase como se fosse estrear primeiro naquele outro país chamado Periferia e depois vir para este país chamado Shopping Center. Isso é muito sábio, porque não tem concorrência em janela de cinema. Se for falar em VOD, streaming, TV, aí tem, esses mundos se conectam. Mas isso mostra o potencial desse circuito e o potencial econômico criativo e social de interligação e incorporação das pessoas na criação e no consumo. Essa é uma contribuição para minimizar esse gap, esse abismo sociocultural e econômico do cinema brasileiro com a população. De outro lado, a gente também tem atuado no sentido de ampliar nossos editais. Normalmente, a primeira porta de entrada dos realizadores é o curta-metragem. Nosso edital de curtas foi o primeiro da história que fez também algumas microrrevoluções. Quem estava mais afastado do centro ganhou pontuação extra. Foram mais de 900 proponentes, e esses pontinhos aparecem nas bordas da cidade de uma maneira nunca antes vista.
EN: Produtores periféricos?
AM: Produtores periféricos, que se sentiram convocados por esse edital. Eles já existiam, mas nunca entravam porque achavam que era um edital de cartas marcadas para quem faz escola de cinema aqui no centro. Não vou dizer que eles não tinham razão. E eles apareceram, apareceram realizadores que nunca tinham entrado em edital algum da Spcine ou da Secretaria Municipal de Cultura. No último edital de curtas, que nós mesmos tínhamos feito na gestão do Juca Ferreira na secretaria (no início do governo de Fernando Haddad), tinham entrado 300 componentes. Neste, foram 900, três vezes mais, então 600 realizadores surgiram. Não é que eles surgiram, eles estavam aí. Talvez alguns tenham surgido, mas muitos já tinham um trabalho, como fazer um videoclipe, vídeo de casamento na periferia, ser técnico ou cinegrafista sem nunca tinha feito seu filme.
PAS: Isso não lembra o caso do cinema indígena, em que o cara que não se compreendia como cineasta, ao se sentir estimulado, passa a se compreender e a concorrer nos editais?
AM: Exatamente isso. A gente fez questão de mandar essa mensagem para que esses protagonistas culturais se percebessem endereçados identitariamente nessa convocatória. Estava escrito no edital que obrigatoriamente se teria de premiar pelo menos um curta de indígena, homens e mulheres meio a meio, pelo menos um curta de cineasta transgênero, três ou quatro de LGBT, pelo menos dez cineastas negros homens e mulheres. Então, no total de 30 premiados, teríamos 15 homens e 15 mulheres, pelo menos dez negros, pelo menos um indígena e um transgênero. Pelo menos. Podia ser mais, mas não podia não ter nenhum, para demarcar simbolicamente uma ideia de expansão. Para nossa feliz surpresa, apareceram muito mais do que isso. Foram seis ou sete indígenas. A inscrição era toda online, por vídeo. O cara podia gravar no celular, contar a história do roteiro, sem precisar fazer num formato ultra-especializado. Por que essa metodologia? Porque permite identificar o talento e a voz, uma voz narrativa interessante, como um Ferréz ou um Mano Brown, um cara que pode não ter uma mega-estrutura por trás, mas é talentoso e tem uma história interessante para contar. Feita a pré-seleção, ficavam uns 90 dos 900. Esses 90 passaram por cursos de produção, trocando conhecimentos mais especializados e, então, se chegou aos 30 premiados.
PAS: Esse processo já está concluído? Vão deixar pronto no fim da gestão?
AM: Já está consolidado. Cito isso como mais um exemplo de tentar incorporar São Paulo, na sua complexidade cultural e social, na produção de novas narrativas e novos públicos, entendendo que públicos e autores se conectam em grande medida. Teve um cara que no seminário de balanço da Spcine usou um termo genial – pedi até autorização para incorporar -, que é o de audiências negligenciadas. É um brasileiro que mora em Los Angeles chamado Maurício Mota. Ele faz uma série sobre latinos nos Estados Unidos chamada East Los High, uma série que ele vendeu para o Hulu, que é concorrente do Netflix, só com latinos, um nicho de 20 milhões de habitantes. Nesse momento de Donald Trump contra os latinos, essa série dele virou uma espécie de cunha política para afirmar a ideia de uma audiência negligenciada. Ele trabalhou com antropólogos, sociólogos e lideranças comunitárias para demonstrar que havia toda uma audiência que não estava representada em nenhuma série americana. Não havia nenhuma série que representasse latinos a não ser em personagens terciários, o cara que serve cafezinho ou o bandido que é assassinado pelo policial. Não havia protagonistas, casais românticos latinos falando em espanhol. Adaptando para o Brasil, quantas audiências negligenciadas São Paulo não têm?
PAS: Quase todas.
AM: A comunidade da China, os haitianos do centro, os nordestinos das periferias, quantas mega-audiências interessantes? Se for somar esse nicho, são milhões ou milhares de pessoas que certamente teriam conteúdo, tanto de criação como de alcance, que a gente não detecta.
EN: Retomando a pergunta inicial, qual é o legado que a sua gestão à frente do Spcine deixa para o cinema nacional?
AM: Eu vejo como legado a incorporação dessa parcela da população que estava até então excluída. Isso é muito importante. Mesmo que não seja toda essa população, é uma cunha importante que a gente deixa de sinalização. Também a ampliação do conceito de política audiovisual, incorporando games, audiências negligenciadas – agora estou usando o termo -, o público no processo de fruição. É um salto conceitual importante, que inverte a questão: não é o que São Paulo pode dar para o cinema, mas o que o audiovisual pode fornecer para um conceito novo de cidade. Tradicionalmente, se colocava o que o cinema precisava de São Paulo para fazer filme. Eram cineastas pedindo dinheiro, subsídios, fundo perdido, para qualquer prefeito que passasse. A gente inverteu. Agora é como o audiovisual pode potencializar um conceito novo de cidade, de desenvolvimento urbano, de desenvolvimento e atualização da imagem de São Paulo.
EN: Deixar os produtores periféricos falarem e projetarem sua imagem.
AM: Diversificar a imagem de São Paulo, dos ícones tradicionais, com uma imagem socialmente contemporânea, múltipla, a partir de novas narrativas, novas vozes, do centro e da periferia. Trazer uma imagem que São Paulo tem, high tech, moderna, industrial e pós-industrial, mas também diversa e desigual, incorporando isso como um grande ativo. Os filmes de Nova York dos anos 1970 e 1980, que documentaram a cidade antes daquele choque de “cidade limpa” de Rudolph Giuliani, documentaram uma Nova York vibrante, que marcou uma geração do cinema mundial. Quem sabe essa produção de cinema que está vindo aí vai mostrar uma São Paulo que o mundo não conhece. Qual a imagem que o Brasil e o mundo têm de São Paulo? É ainda a ideia da locomotiva, aquela imagem que foi fixada 60 anos atrás, quando São Paulo queria ser uma porta aberta da industrialização, trazer migrantes e imigrantes, para ser uma espécie de cidade do trabalho, dura, de geração de riqueza. Esta não é mais a cidade real, há muito tempo. Essas políticas a Spcine promoveu, e agora coloco o terceiro ponto do tripé, a São Paulo Film Commission, para liberar a cidade para filmagens. Essa foi outra microrrevolução importante: desburocratizar e desreprimir São Paulo para que os cineastas possam ocupar as ruas da cidade de maneira fácil, rápida e imediata, para registrar essas imagens de uma São Paulo vibrante e contemporânea.
PAS: Como era isso quando vocês chegaram, e como está hoje?
AM: Era uma cidade proibida. São Paulo era conhecida no Brasil inteiro como a cidade mais difícil de se filmar. Pode perguntar de Fernando Meirelles a curta-metragistas, era conhecida como a cidade do não, a cidade onde sempre se tinha uma desculpa para não permitir. Ou era a marca que está filmada, ou a subprefeitura que tem um cara lá que não deixava, ou uma coisa de propina. O que o prefeito Haddad fez em todas as áreas e no cinema em específico? Transformou o espaço público num lugar amigável, num lugar facultado ao cidadão, no lugar do cidadão. No audiovisual, ele emitiu um decreto de maio deste ano que já é considerado referência no Brasil. Uma amiga do Rio de Janeiro, onde existe a RioFilme, me disse: “Nem no Rio existe isso, vocês estão hoje na frente”. No decreto Haddad diz o seguinte: a Spcine tem autorização para liberar filmagem em qualquer logradouro público de São Paulo. É a Spcine que libera. Então a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), as subprefeituras e esses outros órgãos passam a entrar no nosso cadastro e nos informam se tem alguma coisa acontecendo. Pode ter uma programação outra e aí tudo bem, é correto, não dá para fazer naquele dia. Mas a autorização quem dá é a gente.
PAS: Antes tinha que pedir para cada um desses órgãos?
AM: Antes eram de seis a nove balcões distintos. Um dia sim, outro dizia não.
EN: O que já foi possível com essa nova determinação?
AM: Os números são impressionantes. Já tivemos mais de mil locações pedidas e 400 autorizações dadas, em cinco meses. Temos 3.300 diárias e 12 mil postos de trabalho, isso só neste ano, começando em maio, com o decreto. Fizemos uma transição com a CET, que está supercolaborativa.
PAS: Antes havia seis a nove balcões e agora vocês viraram os curadores dos balcões? Está dando certo?
AM: Está dando certo. O prefeito teve coragem de centralizar e quebrar o feudalismo da cidade. A prefeitura era meio feudalista, cada feudo com seu poder. Para você poder oferecer um serviço de qualidade, rápido, tem de quebrar com isso. Obviamente não é atropelar ninguém. A CET é fundamental, o que ela faz a gente não faz. Agora, quem pode avaliar se uma filmagem tem de acontecer é a Spcine. A Spcine passa a ser a São Paulo Film Commission, e a CET vira parceira nas soluções de trânsito. A gente colhe junto os louros, mas estabelecemos uma cadeia produtiva rápida. No decreto, Haddad estabelece prazos, de três dias úteis para publicidade e de oito dias para todos os outros tipos de filmagem. A prefeitura se obriga a responder em no máximo três dias para propaganda, que é um prazo realista, porque se você não responder em três dias perde a publicidade para Montevidéu.
EN: Já aconteceu de ter um filme que veio para São Paulo por causa dessa agilidade?
AM: Tem n casos. Teve uma propaganda com Lewis Hamilton, da Fórmula 1, que não ia vir para cá. Eles perguntaram se a gente resolvia. A gente resolve. A Tammy Weiss foi a pessoa que montou a Film Commission de Santos, na época em que São Paulo era a cidade proibida ela levou tudo para lá. Santos bombou, foram mais de mil filmes por ano. Até brinquei com ela: “Tammy, estamos contratando você para devolver uma por uma para cá. Pode deixar algumas lá em Santos, porque é uma cidade legal, mas vamos fazer”. Ela trouxe toda essa expertise para cá, botou para quebrar com uma equipe extremamente capaz.
EN: Você falou de uma coisa legal, que é mudança de paradigm: não é mais o que São Paulo pode oferecer para o cinema, mas o que o audiovisual pode contribuir para um novo conceito de cidade. Esse pioneirismo é dessa equipe, ou veio da Ancine (Agência Nacional do Cinema), de uma orientação de governo, já na época do governo Dilma, para que se olhem outras demandas?
AM: Não, eu diria que foi um ato de ousadia nosso. A Ancine tem políticas pelas quais tenho a maior admiração, nos apoia, também numa relação de parceria. Mas essa relação entre cidade e audiovisual no território, não. Eles trabalham com uma coisa mais abstrata, que é nação, as macropolíticas. A gente está no território. fazemos um trabalho de articulação local. Eu diria que foi uma ousadia do Haddad, acima de tudo, do Juca, com seu lado visionário tropicalista, e da equipe da Spcine, pessoas como Tammy, (o diretor de desenvolvimento econômico) Maurício Ramos e (a gerente de políticas operacionais) Ana Louback, que se articularam com o setor audiovisual para montar essas relações. Não é que contrariamos uma tese federal, mas é um laboratório diferente e necessário. A Ancine não consegue fazer essa articulação lá de cima, nem é papel dela e nem ela se propõe a fazer ou não fazer. Agora, fomos, sim, impulsionados pelo ótimo momento do audiovisual nacional, que tem raízes nas políticas de Dilma e Lula, da Ancine, da regulamentação da TV a cabo, do fato de essa economia estar blindada da crise econômica, que de fato é uma coisa extraordinária.
PAS: Persiste ainda?
AM: Ainda, por enquanto ainda está. Esse é um debate muito legal para a gente fazer. Me espanta que os formuladores das políticas econômicas de todos os governos, inclusive os nossos, não tenham olhado para essa política de audiovisual e falado: “Caramba, o que tem deu certo nisso?”. O audiovisual está gerando emprego numa área contemporânea, do século 21, na qual o Brasil é potência no mundo, que é cultura. Se tem uma coisa em que o Brasil é top, que todo mundo reconhece, é a cultura brasileira, que só desperta admiração mundo afora, gera empregos. Brinquei com a Ancine, se lá no Ministério de Economia já perguntaram o que foi feito aqui para gerar emprego, quando todo mundo está perdendo emprego? Não. Não perguntaram.
EN: E o audiovisual brasileiro nos últimos anos cresce em ritmo chinês, de dois dígitos, segundo o relatório da Ancine (leia na CartaCapital 931).
AM: E nunca ligaram para entender o porquê. Estou cada vez mais convencido de que esse debate de macroeconomia, alta de juro, baixa de juro, no fundo é uma camisa-de-força em que todas as famílias políticas erram: não descem nas cadeias produtivas para olhar caso a caso as economias que se quer impulsionar. O resultado é que acaba favorecendo commodity, soja. Muda governo, sai governo, a gente continua impulsionando as velhas economias do Brasil agroexportador, que destrói nossas fronteiras agrícolas, derruba a Amazônia, não gera valor agregado nem gera muito emprego, porque é cada vez mais mecanizado. O audiovisual é um megacase de microeconomia que espero que seja discutido economicamente pelos especialistas que têm tanto acesso aos meios de comunicação e são tidos grandes magos, capazes de resolver os problemas do Brasil, mesmo que aparentemente não resolvam. A gente está vendo agora um mago que dizia que ia resolver tudo.
PAS: De qual dos magos você está falando? O mago ministro, ou o mago maior?
AM: O ministro, esse mago que inclusive a Dilma queria trazer também. Nada contra, mas fico com a impressão de que esses grandes receituários, a PEC dos gastos, esses grandes chavões psicológicos…
EN: E existe demanda, como vemos com Netflix querendo ter produções nacionais. A indústria mundial está olhando Brasil e perguntando: cadê a produção de vocês?
AM: Exatamente, o Brasil está bombando. Você tem o caso da Discovery Brasil. Eles inicialmente tinham um pé atrás com a Lei da TV Paga, com as cotas, e hoje a produção brasileira é referência da Discovery mundial, a que bate recorde de audiência. A lei, que era tida como uma lei de intervenção do estado, de regulação, essas palavras que assustam ao mercado, hoje gera mercado. Então eu me pergunto: será que aquilo que o mercado precisa é aquilo que o mercado quer, necessariamente? A gente vê uma economia onde aquilo que em tese não é o que queriam está dando muito certo e hoje o mercado apoia. Hoje esses canais apoiam. Além da produção estrangeira que vem aqui, temos uma produção brasileira, que nos dá audiência e receita. E eles pedem a animação brasileira, conteúdo nacional. A lei teve uma inteligência de conseguir combinar o capital estrangeiro, que viria para cá nos moldes tradicionais, só para trazer o conteúdo estrangeiro e não desenvolver localmente quase nada, e vincular esse capital ao desenvolvimento local de milhares de horas por ano. Assim ela consegue gerar uma contrapartida de investimento em tecnologia local. Quer participar desse mercado, beleza, mas gera uma inteligência local, nos ajuda a desenvolver nossa indústria. Isso está acontecendo.
PAS: Quando a gente vê que o cinema está crescendo num cenário em que nada é para crescer, é porque a macroeconomia está esquecendo de olhar esse setor? Ele está passando pela tangente?
AM: Na minha opinião, todas as famílias políticas e seus pensamentos de economia estão defasados. O atual mago é um mago que a gente queria também para resolver esses problemas, e o que ele traz, na minha opinião… Não sou economista, mas olho a partir da economia que conheço, que é a economia do audiovisual. O que eu vejo nos últimos 15 anos é que a combinação entre instituições públicas competentes e sérias – como a Ancine, e os empreendedores, os trabalhadores e a cultura – gera desenvolvimento local, faz a economia andar mesmo em tempos de crise. Me espanta que nunca tenham mandado nem sequer um emissário para tentar entender o que aconteceu. Temos um debate de macroeconomia hoje totalmente desvinculado das realidades sociais e culturais do Brasil. É a questão do MinC (Ministério da Cultura) nos anos Lula, que era um pouco aquela exceção, ia ali num paralelismo. Era um grande laboratório de novidades, que também não eram incorporadas totalmente naquele processo sistêmico da visão geral de Brasil.
PAS: É como se fosse um apêndice do corpo principal que às vezes se move sozinho. O rabo do gato.
AM: Sim. Sinceramente espero que permaneça, já que essa economia está dando certo a partir de políticas públicas que mostram que o Estado tem um papel no seu desenvolvimento. Claro, tem muito problema aí, mas são problemas novos, de uma economia que existe. Tem as questões de direito trabalhista, de briga do criativo com o produtivo, mil problemas. Mas eu queria que toda economia tivesse esses problemas. A gente estaria num outro patamar. Estamos começando a retroagir na economia, para um nível de as empresas não terem capital de giro, de voltar a discutir industrialização nos moldes do século XX. Faz falta no debate de macroeconomia uma reflexão profunda sobre o que a cultura gera de ganho social, econômico e cultural. Lembro que Gil dizia isso, citava Adam Smith e a frase dele de que “a cultura é a riqueza das nações”. Se o Adam Smith dizia isso, porra.
PAS: Não acreditam nem no Adam Smith.
EN: Um liberal clássico, né? E em São Paulo Haddad se propôs a ser uma espécie de avant garde, a tentar trazer isso para o território e propor uma articulação transversal na prefeitura, articulando com educação, cultura, desenvolvimento urbano, e tratando a Spcine como política de Estado, de governo, e não como uma política setorial stricto sensu de cultura, que tradicionalmente se pensaria como atendimento da demanda dos cineastas, dos produtores. Todo prefeito tem que resolver essa demanda, “atende eles”, “solta um edital aí por ano”. Não, vamos inverter esse diálogo. Como é que o audiovisual gera qualificação das relações humanas? Como se melhora e atualiza a imagem de São Paulo diante de si mesma, dos próprios paulistanos, que muitas vezes incorporam uma imagem antiga, da cidade de trabalho, locomotiva, e não pegam a cidade da diversão, do lazer, da alegria, da solidariedade, da rua? A gente ainda tem uma imagem um pouco dura, embora esteja mudando. A prefeitura contribuiu muito com isso, mas isso vem da sociedade. Essa mudança de paradigma é tão importante quanto os programas e editais de fomento lançados. A abordagem tem que ser outra, que permita à Spcine ter uma longa vida e não ser um balcão, um lugar que faz edital público e representa os cineastas e produtores stricto sensu, mas onde os criativos façam sua mediação com a cidade, com as demandas sociais e culturais da população, muito maiores que a minha necessidade exclusiva de me expressar e ter o direito de fazer um filme. Essa necessidade é legítima, mas num ecossistema maior.
Eu estava em Buenos Aires, no Ventana Sur, um puta festival de cinema, talvez o maior mercado da América Latina. A Argentina fez um trabalho incrível, de criar uma praça e colocar o conteúdo latino-americano para o mundo. Tinha um especialista em film commission, e ele falou uma coisa incrível: o modelo de film commission que vai dar cada vez mais certo é quando entra o turismo, o dinheiro do turismo para bancar os chamados cash rebates, o dinheiro que a prefeitura bota para incentivar a atração de filmagens. Para qualquer filme produzido nas Ilhas Canárias ou na Nova Zelândia, o país cobre 20% dos gastos, e tem contrapartidas, tem que usar mão de obra local. Ele falou uma coisa genial que eu nunca tinha entendido: para a conta fechar, você coloca uma cláusula em todas as filmagens que acontecerem naquela cidade ou país, de que tudo que for filmado ali gerará direitos de uso de imagem licenciada, para uso institucional daquela localidade. Então o site do país Nova Zelândia tem O Senhor dos Anéis na capa, “venha para a Nova Zelândia”. Eu pergunto: qual campanha publicitária tradicional dessas que as Secons (Secretarias de Comunicação) da vida têm que fazer cobre isso? A gente trouxe (a série) Sense8 para São Paulo, conseguimos trazer para filmar a Parada Gay.
PAS: Foi uma iniciativa de vocês?
AM: A gente fez essa costura, (o coordenador internacional da Spcine) Eduardo Raccah conheceu um produtor dos caras que estava procurando um país do mundo que tivesse uma mega Parada Gay. Eram Buenos Aires, São Paulo e mais uma ou duas cidades. O produtor falou que queria filmar a avenida Paulista na hora do pau comendo. “Vocês conseguem?” Conseguimos. Mega-operação de guerra para liberar a Paulista e dar as condições de filmagem de que ele precisava. Deu certo, vai entrar na nova temporada do Sense8.
PAS: Isso você chamaria de uma microrrevolução?
AM: Chamo, porque no momento em que a Film Commission consegue viabilizar que essas filmagens venham para cá, passa a promover uma imagem contemporânea de São Paulo num nível internacional. Se uma pessoa ouviu falar que São Paulo é uma cidade de concreto e aço, do trabalho, aquela imagem que São Paulo gastou dinheiro de marketing há 50 anos para promover, ela agora vai ter uma imagem completamente diferente, contemporânea, ou várias imagens vão estar em disputa por aí. Só que a gente ainda não fez isso, não colocou uma cláusula contratual de que São Paulo tem direito de usar a imagem do Sense8 no site da prefeitura. Imagina se no site ou no Twitter da prefeitura tivesse alguns personagens do Sense8, da Anna Muylaert em Que Horas Ela Volta? (2015) e de mais alguns filmes, juntos, fazendo um mosaico das várias São Paulo que convivem, da Parada Gay, mas também da menina da periferia. O valor intangível que isso tem vale o que a gente investe. Dá o direito para a cidade de criar um posicionamento geopolítico internacional definitivo a partir de uma imagem. O que é Nova York sem O Poderoso Chefão, Taxi Driver, Guerra de Gangues? Eu não preciso ter estado lá para ter alguma relação com Nova York, que se dá pela imagética. São Paulo já tinha que estar posicionada assim no mundo.
PAS: E definitivamente não está.
AM: Não está. Se a gente consegue isso, a Film Commission vai gerar um impacto muito legal para a cidade, vai mexer na autoestima do paulistano também.
PAS: Qual é o impacto da Film Commission na periferia? Um filme como Antônia (2006, de Tata Amaral) tem de pedir autorização para filmar na Brasilândia?
AM: Na época do prefeito Gilberto Kassab (PSD) existia o Ecine (Escritório de Cinema de São Paulo), uma film commission que não tinha poder nenhum. Não existia um decreto por detrás dando essa centralidade, não havia um cadastro único. Pediam para o Ecine, que saía pedindo por favor para os outros liberarem. A pessoa que estava lá era um herói, um produtor dentro da prefeitura, sem muito poder. Essa pessoa deve ter liberado para Tata Amaral, não sei. Mas muitos filmaram clandestinamente. Uma que me contou foi Anna Muylaert: “Eu tinha que filmar um carroceiro na rua, fui lá e filmei, cara”. Se aparece polícia, CET, ela tem que sair vazando. Pô, Anna Muylaert ter que fazer isso, clandestinamente, como um ato de anarquia? Não precisa, por que a cidade tem que ser contra? Uma coisa que rolava muito era cidadão jogando ovo em filmagem. Era uma cidade do não, da proibição, que criminalizou e culpabilizou a cultura por todos os males da cidade: o carnaval de rua é culpado por barulho, o pancadão pelo tráfico de drogas, o cinema atrapalha o trânsito. Tinha muito relato da população não entendendo que é legal filmar na rua, que é cultura, no mínimo gera emprego. Quer um argumento mais conservador? Você não pode não gostar tanto de cultura, mas aquilo gera emprego e renda. Você pode agradar desde um conservador até um liberal, há vários argumentos. Mas jogar ovo? Jogavam. Chegava muito relato.
PAS: E já se mexeu nessa lógica? Como?
AM: Mexeu. Fizemos uma campanha (“São Paulo é cenário!“, acima), que ainda está nos primeiros passos. Fizemos um vídeo com todos os cineastas de São Paulo quebrando esse gelo, falando “galera, vamos filmar em São Paulo, São Paulo é legal”. Pedi às emissoras que passassem de graça na TV aberta, para a gente mudar, ganhar a população. Obviamente isso mexe com um tema político de São Paulo, que é o medo versus a fé nesses processos da rua. Talvez seja algo mais forte que esquerda e direita, a ideia de que São Paulo é uma cidade privada ou é uma cidade pública, onde a cultura acontece. Avançamos muito, porque não é que parou, mas está diminuindo bastante. A gente está conseguindo mediar esses conflitos. A Film Commission também é uma mediadora. Se existe uma associação de moradores organizados politicamente para não acontecer nada no bairro a não ser a moradia deles, o carro deles passar, a gente senta junto, estabelece uma tecnologia de mediação para mostrar que aquilo gera emprego, vai ser bom para o bairro, não vai ter excesso. Chamamos os produtores para eles não pisarem na bola – às vezes pisam também, filmam num horário que não dá, criam conflito, alimentam o conflito, vestem o figurino de ser portadores de problemas. Coloco cinema, carnaval de rua e os artistas de rua como um grande pacote de liberação de espaço público para a arte, a cultura, o cinema, a música. Essa mudança é cultural, institucional, de a cidade assumir para si, de mudança de valores da cidade em relação a ela mesma. Está melhorando. O que tivemos de notícia boa nestes cinco meses de decreto não está no gibi. Haddad mandou em outubro a lei que visa perenizar o decreto. Está na Câmara Municipal, acredito que vai tramitar de uma maneira boa, porque o setor vai se mobilizar para garantir que vá para frente. Espero que não tenha mais volta. Por ser cultural a mudança, não sei se vai dar para de novo vender o peixe de que filmar na rua atrapalha o trânsito. OK, atrapalha, mas há uma tecnologia de tráfego que evita o colapso. É essa tecnologia que estamos aplicando. Nova York aplicou essa tecnologia há 50 anos, é onde surgiu a primeira film commission do mundo. Os caras lá tem um policial de film commission, para você ter uma ideia. Meu sonho é ter uma GCM (Guarda Civil Metropolitana) do cinema.
PAS: Só fazendo isso?
AM: Imagina um GCM que passou um ano no cinema vendo filme paulista. Ele ama o cinema paulista, e vai estar lá mediando os conflitos gerados na hora da filmagem, só para liberar. Ou uma CET com poder de polícia, uma unidade móvel audiovisual com poder de prefeitura para parar uma avenida. É um passo que a gente está imaginando e a lei permitiria. Você tem como parar a Faria Lima, e pode acontecer como acontece nos Estados Unidos: o turista vai lá na Times Square, vê uma filmagem, tira uma foto, aquilo gera uma puta economia, todo mundo fica feliz, a padaria, o cara que vende camiseta. Todo mundo ganha, em Nova York não existe essa questão de se filmar na rua é bom ou não. É uma questão do século XIX, que a gente ainda está enfrentando. É uma megamicrorrevolução, uma revolução silenciosa. Na hora que consolidar, a gente vai estar no patamar de uma cidade fácil, que vai atrair gente do Brasil inteiro. Aqui dá para filmar Pernambuco, Japão, Alemanha, filme de Amazônia em Parelheiros, dá para fazer o que quiser.
Outro passo que também está previsto é o cadastro de imóveis privados. Imagina se a gente conseguir começar a destravar por adesão todos os museus privados, acervos e coleções que estão com herdeiros. A gente pode ter um grande Airbnb de locação. O mundo privado em São Paulo criou mundos paralelos, preciosidades privadas que a sociedade não conhece. Como isso tudo não está no cinema? Temos que abrir o público e o privado, o privado vai ser a segunda briga. Uma coisa superdifícil de filmar é a USP. E é público, né? A gente quer que a USP assine o protocolo de adesão à Film Commission, para que não passe mais por departamento, professor. Anna Muylaert foi filmar a FEA (Faculdade de Economia e Administração) clandestinamente, a menina de Que Horas Ela Volta? faz vestibular para a FEA. Anna disse que pediu, não teve resposta, tinha que passar por colegiado, teve professor que implicou. Não rolou. Bicho, é Anna Muylaert, a USP tem obrigação de liberar, que história é essa de discutir? É censura?
A USP tem a Brasiliana, aquela megabibiloteca do José Mindlin, que foi o MinC que bancou, com dinheiro público do BNDES e da Petrobras, e ninguém consegue filmar lá. Imagina fazer um filme futurista lá dentro, um 3%. A Film Commission tem que dar uma enquadrada na USP. Tem que estar um prefeito por trás disso, um prefeito que banque. Nesse ponto acho que João Dória entende, tem um irmão publicitário, é do ramo, sabe o que é Film Commission. Acho que aí não vai ter problema. Está montado, é só impulsionar e continuar dando apoio político.
PAS: Voltando ainda uma vez à pergunta inicial, sobre os impactos da Spcine, você cuidadosamente respondeu apenas em termos municipais, da cidade de São Paulo. Há um impacto maior que isso, além disso, para o cinema do Brasil como um todo?
AM: Sim. Há desde governadores interessados em replicar o modelo até cineastas olhando para a Spcine como referência de uma política inovadora. Muitos nos procuram. Soltamos um edital para exibir filmes pequenos, autorais, microfilmes brasileiros, e não só para São Paulo. Com a política da Ancine de descentralizar, estão pipocando filmes no Brasil inteiro, que não têm tela. Teve filme do Amazonas, de Pernambuco, que ganhou o edital e vai estrear em São Paulo. Queremos que São Paulo seja uma plataforma de viabilidade do cinema brasileiro mundo afora. São Paulo tem essa vocação, como a música é ou já foi, de ser uma porta de saída do audiovisual brasileiro e uma porta de entrada do audiovisual mundial para o Brasil. Estamos atuando no sentido de criar circuitos com o Brasil, estimular coprodução intrarregional. A política anterior era de disputa, de colocar São Paulo contra o Rio, São Paulo contra o Brasil.
PAS: Quando a Spcine foi anunciada havia essa aura, de que seria um futuro rival da RioFilme.
AM: Muita gente dizia isso, “vocês vão para cima da RioFilme”, “São Paulo vai mostrar sua força”, “vamos pegar tudo que é nosso”. E pelo contrário, a gente tentou responsabilizar São Paulo com o Brasil, mostrar que São Paulo se isola ao modelo velho, que a gente herdou, de uma miséria administrada para os paulistas. Mas se ela se internacionaliza e se nacionaliza, se fortalece como líder, ou colíder, ou parceira, criando relações de circuito, de coprodução. Queremos intercalar salas de São Paulo com salas do Brasil num circuito de salas públicas. Tem várias salas que querem se associar ao circuito. O próximo presidente da Spcine e o secretário André Sturm certamente vão ter a oportunidade de lidar com essa possibilidade, que é bem interessante. Assinei na Argentina um convênio com uma sala linda de lá, a Sala Pública de Rosário, que se associou ao Circuito Spcine. Ou seja, podemos criar circuitos e coproduções, de produtores de São Paulo trabalhando com produtores de Pernambuco ou Minas Gerais, somando forças e mercados. Podemos criar eventos que repercutem a produção cinematográfica brasileira mundo afora, como eu citaria a Aldeia SP em relação à cultura indígena, o Expocine, a Mostra Internacional de Cinema, eventos novos ou mais tradicionais que cumprem um papel de colocar São Paulo como cidade-plataforma para o Brasil. Temos sido chamados por Paraná, Minas, Ceará, Mato Grosso, Brasília, para transferir tecnologia de construção de política audiovisual.
Tem duas outras contribuições importantíssimas, que não envolvem recursos, mas posicionamento político. Propusemos criar o primeiro grupo de trabalho de games, uma proposta da Spcine que foi acolhida pela Ancine e pelo setor de games de São Paulo e virou o Brasil. O BNDES entrou, e dois anos depois temos o primeiro edital paulistano de games da história. Botamos R$ 1,5 milhão em produção de games autorais paulistanos, e a Ancine anunciou agora R$ 10 milhões, pela primeira vez na história se abriu para jogos eletrônicos. Foi uma ação política, de propor um debate nacional que gerasse uma política para games. Outra coisa que não foi a gente que fez, mas demos um cutucão, foi a primeira reunião de mulheres do audiovisual. Quando saiu o estudo da Geena Davis sobre desigualdade de gênero no cinema, conversando com (a coordenadora de inovação, criatividade e acesso da Spcine) Malu Andrade, decidimos chamar algumas cineastas e produtoras para ver como a desigualdade de gênero acontece em São Paulo. Convidamos umas 30 mulheres, de todas as áreas de trabalho. Eu era o único homem da reunião. Foi a reunião mais interessante de que participei aqui, disparado, porque foi a mais intensa, com uma dose de verdade…
PAS: Uma dose de verdade com que não estamos acostumados no mundo masculino?
AM: Porque elas começaram a falar de tudo que viveram pessoalmente, em set de filmagem, bastidores, de salário até mau trato, os clichês, os roteiros, de como a desigualdade de gênero se manifesta em todas as etapas do processo, do criativo ao produtivo. Como era pessoal, elas falando do que viveram, eu fiquei respeitosamente ouvindo. A única atitude louvável da minha parte era ouvir muito e tentar aprender com aqueles relatos, porque realmente nunca ninguém veio me dizer nada daquilo. No dia seguinte elas montaram um grupo virtual que hoje tem 9.000 mulheres do audiovisual, no Brasil inteiro. É um movimento delas, não tem nada a ver com a Spcine mais. Elas estão indo para cima em todos os temas. Fui testemunha privilegiada de uma coisa muito maior que aquela reunião, que já estava vindo. Num ano com tantas notícias ruins, uma notícia claramente boa foi essa discussão vir à tona de uma maneira absolutamente contemporânea, retomando velhas questões e trazendo novas, de uma nova geração.
PAS: Foi o impeachment de Dilma que motivou isso?
AM: Sim, e até antes. Desde junho já tinha um novo feminismo emergindo, que já vinha se fortalecendo no ano passado, nas manifestações todas, pró e contra, elas se colocando como movimentação em separado, dos feminismos de periferia, punk, com mulheres hoje no Brasil reivindicando uma série de coisas em áreas em que tradicionalmente isso não se colocava. O audiovisual é uma área muito importante, porque reverbera, tem um poder imenso, e assim como a publicidade tem uma tradição muito forte de relação de poder. Vai fazer muito bem para o cinema brasileiro e para o audiovisual esse reequilíbrio de forças. Vai destravar muita coisa. As energias femininas vão trazer coisas muito legais, uma nova noção de colaboração, de organização. Está só no começo. As ondas de reverberações vão vir ainda em camadas que a gente não está nem percebendo, e que são mais profundas que a própria política. Foi muito forte, a reunião foi power, a gente mexeu com um negócio muito maior que a Spcine, que é o audiovisual. E não deu outra, 9.000 mulheres. Foi uma contribuição pequena, singela, mas na linha da contribuição para o cinema brasileiro coloco entre as principais. Como é que um cinema se pretende contemporâneo, relevante para a sociedade, se ainda não incorporou essa discussão de uma maneira plena, se não tem coragem de enfrentar suas próprias feridas e desigualdades, se tem tabus ainda muito velhos e arcaicos? Que tipo de arte ele vai produzir? Certamente uma arte menor. Assim como a MPB cruzou de maneira desavergonhada todos esses tabus, teve coragem de botar o dedo na ferida do Brasil, espero que o cinema faça o mesmo. Se ficar isolado achando que é melhor, vai quebrar a cara e ficar em mais uma bolha entre muitas que a produção cultural cria, essas bolhas de soberba, de instituições que ganham seus financiamentos, mas não dialogam, não fazem um ambiente com a vibração da sociedade.
PAS: Partindo agora para um pouco de análise de conjuntura, esta cidade tem vivido uma bipolaridade entre PT e PSDB na administração, a ponto muitas vezes irracional de que se um lado for A o outro vai ser Z apenas porque é o outro lado. A Spcine nasceu numa conjuntura petista e vai entrar agora numa conjuntura tucana. Que perigos de fato você acha que a empresa pode correr por conta dessa virada de chave?
AM: Esse vai ser o primeiro grande teste para a Spcine, que é viver uma transição de governo, uma mudança de orientação política. Mas estou otimista com essa transição, porque o secretário que foi indicado pelo João Dória, André Sturm, é uma pessoa do setor cultural, que coincidentemente é do cinema, que ajudou muito a Spcine a nascer, foi um parceiro verdadeiro desse processo desde o início. E nós, prefeitura, fomos parceiros dele na retomada do Belas Artes, que foi uma prioridade do secretário Juca Ferreira. A gente trabalhou lado a lado, não é uma relação que começa agora. No momento em que João Dória indicou André Sturm para assumir a área da cultura se estabeleceu a possibilidade de uma continuidade. Naturalmente vão ter que trazer coisas novas, que cabe a eles mostrar e dizer. Mas há a possibilidade de uma política cultural que mantenha uma qualidade, independentemente da mudança forte que teve de visão de cidade. Estou animado, otimista. Para quem está de saída, como eu, acho que cumpri meu papel, estou cansado depois de quatro anos de dedicação exclusiva a esse projeto. Só posso receber bem se posso deixar um legado consolidado, um trabalho feito, e ver que quem vai chegar se dispõe – e já disse isso em entrevistas públicas – a tratar com carinho esse legado, reconhecer o trabalho do Haddad e meu trabalho, dar a ele um tratamento republicano, de uma instituição pública, não partidarizar. Me coloco à disposição para colaborar, para que a Spcine venha para ficar para São Paulo. Assim como a RioFilme atravessou não sei quantos governos, de esquerda, de direita, a Spcine também tem que atravessar. É um desafio? É, é um desafio, porque não basta a vontade do secretário, de um secretário. Tem outras forças que se movem nesse processo. É um desafio, mas trabalhamos aqui o tempo todo, por orientação do Haddad, no sentido de sermos altamente republicanos, debater com a cidade o porquê de a Spcine existir e hoje significar algo para as pessoas mais pobres da cidade, e não só para os que fazem cinema. Não seria pouco se fosse só para os que fazem, já seria altamente defensável, mas a gente também representa algo hoje para 250 mil pessoas que foram de graça ao cinema na periferia e vão chegar a ser 300 mil no final deste ano, a 1 milhão ano que vem. Nós somos algo, representamos algo para São Paulo. Quero crer qu,e no momento em que a gente significa algo para 1 milhão de pessoas das camadas e bairros menos privilegiados, estamos numa perimetral de direito social, de conquista. Quero crer que a sociedade não vai querer perder isso. É a grande questão que o Brasil vive agora.
PAS: Mas, a propósito disso, este ano provou que aqui no Brasil as leis, por mais sólidas que sejam, podem ser desfeitas por alguém que decide que elas vão deixar de valer. É só ver o pré-sal, por exemplo.
AM: Acho que não é a lei da Spcine que mantém a Spcine viva. São as políticas que a Spcine implementou que são o grande fiador e salvaguarda para a Spcine se consolidar como instituição pública. Há instituições no Brasil que não dependem mais de PT e PSDB, como Fapesp, que é do governo do estado, mas está aí, ninguém lembra que é do governo do estado. Já virou uma coisa pública, no sentido que é de todo mundo. A Embrapa, a Funai, embora esteja depauperada…
PAS: O Iphan também?
AM: O Iphan, grande Iphan!, o Iphan, que deu a demonstração de que mesmo num governo sem compromisso nenhum com o interesse público, como se demonstrou no caso do Geddel Vieira Lima, a tecnicalidade da instituição teve a coragem de se posicionar. É uma instituição de 70 anos, uma instituição conservadora, gestão criada no governo Getulio Vargas, que zela pelo patrimônio, pela conservação. Tem instituições que se consolidaram pela sua necessidade.
PAS: Segundo os clichês PT versus PSDB, o PSDB seria o partido de elite, que não se preocupa com o todo da população. De um modo sutil e elegante você respondeu que uma preocupação sua quanto à próxima gestão é com o público paulistano mais pobre? Citaria algum outro ponto sensível que te preocupa?
AM: Fiquei animado porque numa das entrevistas do André ele falou explicitamente do Circuito Spcine. Falou não só em manter, mas em ampliar. Isso é ele falando. Ele está colocando claramente que temas como Circuito Spcine e Film Commission, que realmente são as âncoras da Spcine hoje, estão no rol de prioridades do que ele entende que seja a Spcine.
PAS: Se bancar isso ele está dizendo que não se trata de uma propriedade petista nem peessedebista nem de ninguém.
AM: Exatamente, está dizendo que é uma coisa que foi conquistada pela cidade e eles querem manter e ampliar. Estão dizendo da necessidade de transformar em uma política de estado, quando um governo continua, assimila o que o outro fez, acrescenta obviamente suas novidades, enfrenta desafios que ainda existem. Não é só manter, tem coisas que a Spcine tem que fazer ainda e espero que eles façam, posso até falar os desafios para o futuro.
PAS: Quais são?
AM: Por exemplo, trazer o governo do estado de São Paulo para a parceria.
PAS: Essa promessa inicial não se concretizou.
AM: Não rolou. A gente não conseguiu. Era para ter sido, seria muito bom para a Spcine e para São Paulo. Consolidaria um outro patamar, e André é habilidoso, transita do PSDB ao PT, pode tentar costurar. Agora são dois governos do PSDB, que podem chegar à conclusão de que não vale a pena criar uma outra Spcine estadual. Seria um ganho muito grande, que não consegui fazer. Tentei, fui lá, fiz mil gestões, mas tem coisas que são de continuidade. Minha questão não é esse governo que agora começa, são todos os governos que virão. É ter uma política de estado que atravesse. Se a gente atravessar uma mudança PT-PSDB, vai ficar um exemplo de que, tudo bem, a democracia é disputa, é divergência, mas vamos tentar criar um consenso em algumas coisas mínimas?
PAS: Quanto à história do edital de curtas-metragens, por exemplo, é de se esperar a continuidade da preocupação de contemplar indígenas, negros, transgêneros, dentro de um contexto em que estão se extinguindo e judicializando secretarias de direitos humanos?
AM: Acho que, a depender da visão que conheço do André e das coisas que ele está falando abertamente, haverá uma continuidade dessas políticas. Espera-se que a cultura seja um espaço de maior autonomia e sensibilidade a essa pulsão de diálogo da cidade. O diálogo com as diferentes forças e direitos da cidade que emergiram e emergem a todo momento é um desafio para todo secretário de Cultura. Não é fácil para ninguém, não foi fácil para a gente. A gente apanhou muito, porque é muita demanda, são muitos protagonistas e sujeitos. Esses protagonistas vão sentar à mesa para conversar e discutir com a direção da Spcine. Digo com sinceridade, o cenário atual é bom para a Spcine. Se surgirem questões de descontinuidade, de mudança, obviamente elas vão ser debatidas quando surgirem. A gente vai ter que abrir o jogo da democracia. Confesso que depois do resultado eleitoral achei que o cenário ia ser outro, que ia ter mais dificuldade, e não é isso que a gente está tendo. De certa maneira foi o que a gente fez também com o Carlos Augusto Calil (secretário municipal de Cultura na gestão Kassab), uma pessoa que nós respeitamos muito, apesar de ele estar num governo de que a gente discordava em muita coisa.
PAS: Ele tinha a peculiaridade de transitar por todas as famílias políticas.
AM: Também. É um cara que fez um trabalho republicano aqui em São Paulo. Fez opções diferentes das nossas? Fez, mas fez coisas muito boas na Secretaria de Cultura, que a gente procurou continuar. Procuramos manter coisas que Calil fez e trazer coisas que ele não fez, como ampliar o espaço público, que não era a praia dele. Mas Calil construiu a Praça das Artes, deu uma arrumada na infraestrutura dos equipamentos culturais da secretaria, deu um upgrade nas infraestrutura. Ele fez a joalheria, a zeladoria bem-feita.
PAS: E vocês colocaram seres humanos dentro dos aparelhos?
AM: A gente levou o serviço, colocou seres humanos.
PAS: Não só dentro, mas também ao ar livre.
AM: O melhor cenário é quando duas gestões bem-intencionadas e honestas, que se respeitam, fazem políticas culturais distintas. Esse é um cenário azul para o Brasil. O que é ruim é quando se começa a ter um terreno arenoso, de fratricídio, de negação total, e seu adversário vira inimigo. Aí começa a luta campal pela destruição das instituições.
PAS: Estamos vivendo isso no plano federal.
AM: É o que eu vejo hoje em Brasília e me preocupa. Aqui, não, aqui se fez parte de uma eleição, que foi disputada, derrotada, ganhada. Haddad já deu o tom ao dizer que queria fazer uma transição republicana com Dória. É o tom que estou seguindo aqui. Se a gente puder dar o exemplo aqui, eles vão ter quatro anos para mostrar o serviço deles. Já estão tendo que enfrentar críticas, resistências. Já começou, é do jogo. Esse é um cenário com o qual a gente lida, o que não dá é quando há um total desrespeito institucional, uma ignorância em relação ao que foi feito. Foi genial quando Lula assumiu e incorporou a estabilidade fiscal de Fernando Henrique Cardoso, mas disse “não basta, eu quero mudar a área social também”. O que Lula fez? Reconheceu que o Plano Real cumpriu um papel de estabilização do país, incorporou positivamente aquilo e incluiu uma agenda social mais complexa. Naquele momento o Brasil foi para frente, porque ele não negou, ele ampliou e complexificou, incorporando as pessoas ao mercado e à cidadania. O que a gente esperava era que depois de Lula e dessa era viesse alguma coisa que incorporasse tudo que foi feito de positivo e trouxesse novos elementos. A gente está agora num impasse, numa situação de querer jogar tudo sob suspeição para construir uma refundação em bases que ninguém conhece.
PAS: Nesse sentido o cenário nacional atual é o contrário da transição FHC-Lula, não? Aquele tom republicano está sendo dinamitado.
AM: Em Brasília não teve transição, teve um apagar das luzes.
PAS: Um golpe.
AM: Teve um golpe. As pessoas foram evacuadas dos ministérios. As pessoas que conheço simplesmente saíram dos seus escritórios e no dia seguinte tinha outras pessoas trabalhando. Isso não é sério. Isso não é sério. Houve uma violação do processo institucional no momento em que tantos mil dirigentes saíram e entraram tantos mil outros dirigentes que, sem conhecer o que foi feito, começam a refundar tudo. Isso é muito prejudicial, É o oposto do que estamos fazendo agora aqui em São Paulo, que é uma mudança legítima, que ganhou no primeiro turno.
PAS: E está dando para fazer pacificamente, dentro de um cenário que é de ruptura no nível nacional?
AM: Sim. O que está acontecendo aqui é totalmente diferente. Como esquerda, como campo de luta, a gente tem que entender que é diferente. Se adotar o mesmo tom, a gente vai cair numa cilada. São brigas completamente diferentes.
PAS: Você está dizendo que Dória tem a legitimidade que Michel Temer nunca teve para estar no lugar onde está?
AM: Exatamente. E não por acaso montou um secretariado muito melhor. Não é só André Sturm. Tem quatro ou cinco pessoas ali, que conheço, que são pessoas respeitadas pela esquerda, referência nos seus setores. Tem alguma coisa no processo da própria democracia que dá a eles legitimidade de fazer escolhas melhores, mais interessantes para a cidade. E quem sai não precisa achar que o trabalho que foi feito vai ser jogado no lixo.
PAS: Não sai escorraçado.
AM: Não sai escorraçado, tendo de lidar com uma coisa persecutória. Isso é muito bom, tem que ser celebrado. A gente precisa restabelecer os padrões da política no Brasil. Haddad deu exemplo, neste momento de polarização total ele propor uma transição civilizada foi um gesto de enorme grandeza dele. E Dória aceitar também foi um gesto bacana. Essas pontes não podem ser totalmente dinamitadas. Haddad perdeu e já ligou para Dória se colocando à disposição para fazer uma transição de alto nível. Deixou R$ 6 bilhões em caixa, montou um planejamento para Dória não chegar num apagar das luzes. Ele deu uma orientação para todos nós, membros da sua equipe, de seguir esse procedimento, sem prejuízo do sistema já polêmico de mudança, de fim de secretarias, de áreas onde vai haver diferença programática clara. Aí a gente tem que fazer esse debate político, ele não tem que ser apagado. Temos que concluir esse processo, ver também o que eles vão mostrar como projeto para a cidade. Já estão mostrando um pouco. Vai ter a lua de mel inicial e depois ela vai acabar, é normal, do jogo. É como Lula e FHC, depois começa a afirmar uma diferença maior, que vai aumentando. Mas foi legal, dois políticos jovens, um do PSDB e um do PT, se propondo um outro arranjo neste momento em que o país está de um jeito que a gente não sabe onde vai dar, em que não está havendo mais esse diálogo. A ponte está queimada, já há um bom tempo.
PAS: Sua trajetória individual nos últimos anos passou por MinC e Ancine, Secretaria Municipal de Cultura e Spcine. Dá para definir um bloco, um conceito que é comum a todos esses momentos?
AM: Eu me sinto um herdeiro de um pensamento tropicalista, só que na gestão, do que Gil e Juca trouxeram. O que dá coerência, olhando tudo de que participei como indivíduo e como coletivo, é uma visão de cultura, de Brasil, que bebe na matriz tropicalista, mas traz para o mundo contemporâneo uma visão de gestão. Gosto de me imaginar como parte desse processo de atualização da visão de Estado sobre a cultura, do papel do Estado em relação à cultura, da relação cidade-cultura. A Spcine é parte desse processo.
PAS: É um filhote?
AM: É um filhote, do Gil e do Juca, dessa experiência riquíssima, que foi uma referência latino-americana. Vejo outros países interessados, outras cidades no mundo. Até hoje me convidam para ir a seminários falar do trabalho do MinC. Chamam Juca, outras pessoas com quem trabalhei. Virou uma referência. Vai desde conceitos até maneiras de fazer, de fazer edital público, fazer programas, relacionar Estado e sociedade de uma maneira mais complexa, não pensar de uma maneira vertical, horizontalizar essas relações, de Pontos de Cultura, empoderar a sociedade civil. O MinC foi um grande laboratório. Quando eu soube, no final da gestão no MinC, que a gente era o ministério que mais tinha convênios com a sociedade civil, sendo o menor da esplanada, vi que a gente fez algo diferente. Foram mais de 100 mil convênios com grupos culturais de todo o país. Nenhum outro ministério, só o Bolsa Família, mas nesse caso é pessoa física. No nosso caso era com coletivos. A gente tinha uma capilaridade que traz uma outra visão de participação, não é um modelo só de conselho e conferência. É participação e implementação. Esses grupos todos eram implementadores das suas políticas culturais. A gente descentralizou. Gil propôs essa visão atualizada, que tem muito a ver com o tropicalismo, de sociedade e Estado, de uma relação contemporânea, que tem os empreendedores, o terceiro setor. É alguma coisa muito nova. A gente está bebendo dessa fonte. A Spcine é muito isso, com os curtametragistas, os indígenas vindo aqui e ensinando a gente a fazer cinema, os caras de videogame interagindo com os indígenas, a realidade virtual feita a partir de xamanismo, a periferia produzindo cultura e não aceitando uma hierarquização. É esse embaralhamento, essa não-hierarquia entre alta cultura e baixa cultura, e o Estado não se colocando como agente protagonista, como alguém que chega e fuma um charutão e estabelece um balcão de negócios, mas como plataforma, como enzima catalisadora dos realizadores.
PAS: Estou me perguntando aqui se períodos tropicalistas acabam magnetizando golpes. Você se sente no fim de um ciclo? Acabou uma época, ou estamos num acidente de percurso?
AM: Acho que acabou um ciclo mundial. Na minha visão não é um ciclo do Brasil, é um ciclo do mundo, que começa lá com a queda do Muro de Berlim. De lá para cá foi um ciclo da globalização, de neoliberalismos, de uma crença em que a globalização ia ser capaz de trazer bem-estar para todo mundo. Esse ciclo permitiu várias experiências de neoliberalismo de esquerda e de centro-esquerda no mundo e bateu num teto mundial que culmina com os golpes aqui na América Latina, com o golpe brasileiro. Não foi só golpe, teve a eleição na Argentina, que não foi golpe, foi uma derrota. Provavelmente, se esperassem Dilma terminar o mandato, eles ganhariam a eleição. Mas foram apressados, fizeram tudo rápido. Estava tudo para eles ganharem a eleição. Mas esse ciclo que se encerra na América Latina, com Brexit na Inglaterra, Trump, está na cara que é um momento de transição para outra coisa. O quê, eu não me arriscaria a dizer. Tem muita potência também neste momento, muita preocupação com os extremismos, os fascismos, os nacionalismos de ultradireita, o ódio, uma estigmatização da esquerda em nível mundial, como se a esquerda não tivesse ido além de alguns tropeços que cometeu. Essa estigmatização está aí colocada.
PAS: Da avaliação municipal, você pulou agora diretamente para o mundial. No Brasil, em termos nacionais, estamos tendo uma ruptura violenta. Ela não é natural, é? O ciclo continuaria se não fosse ceifado.
AM: Acho que fizeram esse golpe parlamentar pelo medo de que houvesse possibilidade de recuperação, e da liderança do Brasil no mundo. O Brasil não é mais um país. Se porventura Dilma corrigisse seus erros e retomasse o processo de crescimento, isso teria um efeito regenerador no sentido de uma esquerda latino-americana. Esse risco eles não quiseram correr, e aí apressaram esse golpe parlamentar, um golpe bananeiro, paraguaio, que se combinou com o isolamento do próprio governo. Isso tem que ser dito, não foi só um golpe de fora para dentro, acho que o governo se golpeou muito, várias coisas de autossabotagem do governo, de isolamento político, social e cultural, que começa inclusive com a nossa saída do MinC em 2010 se quiser falar. Ali foi um microgolpe, ali começou para mim uma deterioração grande.
PAS: Você classificaria (a troca de Juca Ferreira por Ana de Hollanda na passagem do governo Lula para o governo Dilma) como golpe?
AM: Não, golpe não, mas como deterioração de um horizonte emancipatório da própria esquerda. A gente significava alguma coisa ali. Aquele germe tropicalista e aquele laboratório em algumas áreas do governo apontavam para o que poderia ser o 2.0 da esquerda, de um governo. Ali já havia alguns sinais de estreitamento do governo Dilma, uma visão mais estreita mesmo de Brasil, não tão tropicalista, uma visão mais clássica de desenvolvimento, produtivismo, de subestimar a dimensão imaterial, dos indígenas, de toda essa complexidade que é o grande ativo que a gente tem no mundo, nossa força, nossa grande mensagem planetária. No fundo é aquela grande visão, que é maior que esquerda e direita, daqueles que acham que o Brasil pode dar certo com o povo que tem e daqueles que acham que o Brasil nunca dará certo com o povo que tem. No fundo essa divisão é muito clássica e forte no Brasil, e ela quebra esquerda e direita, corta de uma outra maneira. A gente achava que, com o povo que a gente tem, tem muito para dar certo, que essa é uma grande qualidade, não um problema que temos que disciplinar ou organizar de uma outra forma. Essa deterioração, combinada com o golpe parlamentar que se aproveitou dessa fragilidade para puxar o tapete, nos leva agora a esta situação. Participamos desse fim de ciclo de uma maneira melancólica, sem poder participar da potência deste momento. Mas vamos ver, né?, porque as cartas não estão todas marcadas e o jogo está sendo jogado. É cedo para dizer. Tem muita potência neste momento. O Brasil, como sempre, é um catalisador. A gente está passando por muita coisa, muito sofrimento, mas também muita verdade. É um ritual. A gente vai ter que sair desse processo fazendo um trabalho fundamental de ressignificação de muita coisa.
PAS: Lula enfrentou uma grande crise no meio do mandato dele, e foi dada a ele a oportunidade de ter o momento de regeneração que Dilma não teve. E ele terminou o segundo mandato com 70%, 80% de aprovação. Nesse sentido, me ocorre a sua reunião com as mulheres do cinema. Talvez não se quisesse dar mesmo a ela essa chance de regeneração.
AM: A ela não foi dada essa segunda oportunidade. Ela teve o segundo mandato, aí junho de 2013 deu um recado. Julian Assange tinha falado já que ela estava há algum tempo sendo monitorada. Não sei se o governo entendeu o que estava acontecendo no Brasil, que interpretação fizeram. Não me parece que houve uma percepção de como o governo poderia se posicionar de uma forma mais proativa com todas as novas demandas que emergiam. Estou entre aqueles que acham que junho de 2013 foi mal interpretado pelo governo.
PAS: Só pelo governo?
AM: Por todo mundo, mas especialmente pelo governo, que poderia ter dado uma resposta diferente.
PAS: Isso vale para Haddad também? Ele chegou e já tomou junho de 2013 de frente.
AM: É, junho é uma esfinge que não foi decifrada totalmente até hoje. Tem que esperar o fim dessa história para que essa esfinge seja totalmente decifrada.
PAS: É duro estar dentro da barriga do dragão, onde estamos todos.
AM: É duro, é duro. Mas a gente ainda tem novos capítulos surpreendentes para ver nessa história. Mas acho que o Brasil não cabe nesse novo figurino que estão construindo. O Brasil é muito mais interessante, maior e mais complexo. Na hora que cair a ficha e passar o sentimento mais emocional do momento, de raiva com os erros cometidos, dos estigmas, e a gente puder olhar… O figurino que eles estão querendo criar não cabe. O Brasil é maior. As pessoas querem mais, não vão querer se encaixar nesse modelito velho, encurtador, de Brasil dos anos 1980. Passado este momento difícil, quando as instituições voltarem a funcionar de uma maneira normal e passar essa raiva normal do povo, de culpabilização de quem está no poder, uma certa racionalidade pode tomar conta de novo. Espero. É uma torcida, uma vontade, mais do que uma previsão.
PAS: Voltando ao assunto do cinema nacional como uma indústria que se desenvolve e cresce dentro de circunstâncias tão adversas. Uma indústria que funciona ganha autonomia, dinamismo e pode criar produtos que por sua vez também ganham vida própria, como é o caso de Aquarius (do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho) ou de Que Horas Ela Volta? Tudo que o cinema tem vivenciado e que como você diz a macroeconomia não percebeu acaba criando um produto desses, que é polêmico e forte, dá a impressão que condensa cinco anos da história recente do Brasil. O cinema é uma área da cultura, das artes, que está produzindo exemplos, faíscas que movimentam a discussão da sociedade.
AM: Que são quase como cristais, né? Que Horas Ela Volta?, Aquarius, Mãe Só Há Uma (2016, de Anna Muylaert), Boi Neon (2015, de Gabriel Mascaro), Mais Forte Que o Mundo (2016, de Afonso Poyart) – que é um filme de lutador -, o filme do Hector Babenco (Meu Amigo Hindu, 2016). Todos esses filmes, mas acho que Aquarius e Que Horas Ela Volta? são cristais interessantíssimos, reverberações, obras de artes que vão ser fundamentais para ampliar o horizonte. Quando a política se encurta, fica pequena, medíocre, perde horizonte, a produção cultural parece que ocupa esse espaço e assume um protagonismo incrível. Foi assim nos anos 1970 e 1960, quando a política não tinha mais espaço nenhum para onde correr, era “seja marginal, seja herói” ou luta armada, não tinha caminhos. A arte brasileira deu ali um de seus grandes momentos, inclusive hegemonizou parte significativa da opinião pública. A gente vive um momento semelhante agora, talvez com o envelhecimento dos modelos culturais que foram hegemônicos nos últimos 30 anos e bateram num certo teto e estão em crise, sem conseguir entender o momento tecnológico e de economia que o Brasil vive, com as mudanças dos padrões de consumo de uma juventude que já vê menos TV e cuja primeira tela é o celular, com o cinema ressignificando seu papel, deixando de ser a sétima arte, aquela janela nobre, para ser um lugar de sociabilidade. Exatamente porque o celular virou a primeira tela, as pessoas precisam ir para a rua, precisam ter uma razão para estar juntas, e o cinema de repente vai se reencontrar, não vai deixar de existir, vai ser o lugar de poder ver Aquarius e se sentir coletivamente num momento histórico. Que legal, eu senti isso quando vi Aquarius. Caramba, que filme certo na hora certa, e que bom estar aqui como brasileiro.
PAS: E a gente mal sabia que Geddel Vieira Lima e Marcelo Calero iam protagonizar a mesma trama na vida real.
AM: Exatamente, o Aquarius é um flash-back dos últimos quatro anos e foi premonitório em relação ao que ia acontecer.
PAS: É assustador o tanto de coisa que esse filme alcançou.
AM: É assustador, um cristal do tempo.
PAS: Esse filme, sozinho, fez o que Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil fizeram juntos na MPB dos anos 1960 e 1970.
AM: É isso. Esses filmes todos. Que Horas Ela Volta? também traz, de uma maneira absolutamente inteligente, o que foi esse Brasil, o que foi incorporar as pessoas numa relação de protagonismo social, o desejo e a possibilidade de ir para a universidade para quem estava no andar de baixo da sociedade. Ali está claro, tem ali um Brasil dos últimos 15 anos com todas as suas contradições. Talvez seja um dos melhores balanços, e não é um balanço só exaltativo do período Lula. Está tudo ali, o que foi de bom e o que foi o teto naquele momento.
PAS: Em Aquarius, a Clara de Sonia Braga não é uma mocinha.
AM: Exatamente. Querer integrar uma grande classe média como um valor absoluto talvez seja uma coisa a ser debatida, se não se tem uma discussão cultural. O que é essa grande classe média que está se formando, que se formou? Se tem a ascensão ao sonho da universidade, mas se tem também a ideia de um arrivismo que começa a contaminar todo mundo, a todo mundo querer o seu. Em que medida esse seu é solidário com o dos outros? Que outros filmes? Mais Forte Que o Mundo, do Afonso Poyart, a história do José Aldo, o garoto pobre de Manaus, com pai alcoólatra, que descobriu o UFC e entra para o show business de uma maneira totalmente periférica, é interessantíssimo. Esse cinema popular brasileiro tem que ser cada dia mais sofisticado na dramaturgia, roteiro, e ao mesmo tempo precisa tentar quebrar a barreira, esse muro que separa o andar de cima do andar de baixo da sociedade. Esse cinema está cumprindo um papel neste momento, está nos dando caminhos, apontando rumos, enriquecendo o debate, elevando o nível da discussão, nos ajudando a construir de maneira imaginária o novo passo do Brasil. Às vezes só a palavra e o fraseado da política não vão dar conta. Bateu num teto, não vai, não passa. É o momento de jogar novas imagens, novas projeções, caverna de Platão, construir novas utopias, pensar utopicamente o Brasil. Utopia é sonho, imagem, cinema, projeção, música. Esse papel da arte neste momento é decisivo para a gente expandir horizontes, reoxigenar a política e qualificar o nosso ambiente para os próximos anos.
PAS: Como esses filmes que você está citando passaram pelo Circuito Spcine?
AM: Passaram muito bem. Aquarius entrou aqui em primeira semana, em todas as salas da Spcine. Foi muito bem para um filme autoral independente brasileiro. Ficou algumas semanas, a periferia se interessou, a discussão quebrou o muro. Que Horas Ela Volta? foi muito bem também. Mais Forte Que o Mundo foi muito bem. Poderia citar Carrossel 2 (2016, de Maurício Eça), no infantil, O Caseiro (2016, de Julio Santi), que é terror brasileiro. O cinema brasileiro está buscando estratégias de conexão e as coisas estão acontecendo.
PAS: A periferia aceita bem a proporção de títulos nacionais (de 45%, contra 33,3% no circuito comercial) e vê os filmes brasileiros?
AM: Aceita. E nossa taxa média de ocupação das salas (de 18%), sem marketing nem grana, está um pouquinho abaixo da do mercado (de 20%), com toda a força promocional e de marketing, Cinemark, shopping, público.
PAS: Vocês têm alguma coisa que eles não têm?
AM: Proximidade. Estamos lá no bairro. E ainda assim está muito no começo, acho que vai ter muito mais gente daqui a pouco. Daqui a um ano, com o boca a boca, especialmente aos domingos, tende a haver um aumento muito grande. A conversa está chegando nas pessoas, elas estão entendendo que têm uma sala de cinema. Às vezes é um filme que elas gostam, às vezes não tanto, mas quando a gente não troca filme eles reclamam. Se não botarmos toda semana um filme novo, é pau na gente. Eles vêm para cima, começa a chegar e-mail. Não dá para requentar, a galera é exigente. E tem que ser filme bom, não filme chato, seja blockbuster ou não, tanto faz. Dizem “de vez em quando tem filme ruim”, mas de modo geral gostam. Adoram terror, é impressionante. Botamos terror norte-americano, depois terror brasileiro, uruguaio, e o público se mantém.
PAS: Está se exercitando um experimentalismo na programação?
AM: Super. Rafael Carvalho é o cara que está por trás dessa experimentação, uma cabeça genial, está brincando muito. E tem a elite da periferia, de que falamos da outra vez, ai da Spcine se não mandar um biscoito fino de vez em quando. Chiam. Tem que agradar muitos públicos diferentes. Está numa dosagem legal, estava passando Estranhos no Paraíso, do Jim Jarmusch, um filme cult dos anos 1980, preto e branco, filmes de Andrei Tarkovsky no CEU Butantã.
PAS: Vocês colocam filmes assim no meio dos outros?
AM: Jogamos umas pérolas na faixa intermediária. A primeira faixa, das 14h e 15h, é uma faixa infantil. A do meio, das 16h30, é de filmes mais independentões, maluquices, uma mostra internacional, filme palestino, irlandês. E à noite é filme para toda a família. Pode ser melodrama, comédia romântica, filme argentino, blockbuster, thriller, terrorzão.
PAS: Deve ser gostoso poder brincar com isso.
AM: Poder passar O Exorcista do lado da igreja evangélica é incrível (risos), depois de Os Dez Mandamentos. A galera se apropriou. Acho que esse projeto fica.
PAS: O que você queria ter feito e não fez?
AM: São tantas coisas. Vamos deixar algumas coisas em andamento, o VOD, um Netflix nosso. Os curtas que ganharam o edital vão ser produzidos, cada um vai ganhar R$ 50 mil e daqui a um ano ou menos vão estar prontos e vão para o circuito. O Circuito Spcine vai crescer, porque estamos fazendo convênios com o México, a Colômbia, a Argentina e com outros estados da federação. Daqui a pouco esses curtas estão circulando num número muito maior de salas.
PAS: Não há o risco de ficarem pelo caminho, como aconteceu com muitas coisas no MinC na passagem de Juca Ferreira para Ana de Hollanda?
AM: Não. Esse é um paradoxo curioso, mas não. Uma coisa que não consegui fazer, mas acho natural continuar é o circuito se internacionalizar mais, virar um circuito internacional de salas públicas, para que o cinema de São Paulo possa ir para o mundo e o cinema do mundo que não passa aqui comercialmente chegue aqui. Eu gostaria de ver um circuito internacional de salas públicas.
PAS: Quando você fala que passou um filme palestino no circuito, já é esse modelo?
AM: Já é, mas ainda é residual. Tem que ser sistêmico, constante. É algo que dá para fazer, tem muita gente nos procurando. Gostaria já de ter feito, mas em dois anos não deu.
PAS: Colocar Bollywood na periferia paulistana?
AM: Já pensou, fechar com Índia, China, Rússia, França, Canadá? Agora é tudo digital, por satélite, dá para fazer até debate com diretor ao vivo. É um sonho que não deu tempo para fazer, mas fica para a próxima gestão da Spcine.