A Virada Cultural paulistana de 2015 viveu um momento histórico. Foi a primeira vez desde 2005, quando começou o evento, em que artistas sertanejos não foram barrados no baile. Pedro Bento & Zé da Estrada e Cézar & Paulinho tocaram no palco da praça da República. As Irmãs Galvão tocaram no Sesc Consolação. Os tradicionais também foram lembrados. Houve apresentação da Orquestra Paulistana de Viola Caipira (foto abaixo) e show de Zé Mulato & Cassiano, ambos também no centro da capital. A crescente ascensão da música rural na Virada Cultural paulistana se deveu, em parte, a um dos curadores do evento ser Aloisio Milani, roteirista do Viola, Minha Viola, programa da TV Cultura apresentado por mais de 30 anos por Inezita Barroso, morta neste ano.
Foi um momento histórico porque nunca antes os palcos da Virada Cultural haviam visto uma apresentação sertaneja. Trata-se de caso curioso que um evento desse porte (que se pretende popular) tenha tido dificuldade de incorporar o gênero que desde sua nacionalização na virada dos anos 1980/1990 está entre os mais populares do país. Como tudo que se refere à incorporação sertaneja no Brasil, se deu de forma ambígua e paradoxal.
Vejamos os casos de Pedro Bento & Zé da Estrada e Cézar & Paulinho. Ambas as duplas cantaram no palco Arraial da Inezita, da praça da República. Tratava-se de uma homenagem à artista caipira que, paradoxalmente, sempre atacou a música sertaneja.
Inezita combateu por décadas a modernidade sertaneja, por vê-la como deturpação das “autênticas” raízes rurais brasileiras. Proibiu vários artistas de se apresentarem no Viola, Minha Viola, por não concordar com a temática melodramática dos sertanejos. Também os acusava de deturpar a música caipira ao incorporar instrumentação ousada, penteados duvidosos, trajes urbanizados e importados.
Pedro Bento & Zé da Estrada, vestidos de mariachis mexicanos, foram umas das primeiras duplas a flertar com a modernidade. Nos anos 1950, quando começaram a carreira, ser moderno era ser influenciado pelos boleros, corridos e rancheiras mexicanos. Passando adiante o bastão, a dupla influenciou duplas como Milionário & José Rico, que gravaram diversos discos contendo rancheiras e boleros nas décadas posteriores, entre elas seu maior sucesso, “Estrada da Vida” (1977), uma rancheira “made in Brazil”, composição de José Rico, que também morreu neste ano. Mas, diferentemente de Inezita Barroso, o rancheiro José Rico não mereceu nenhuma homenagem.
Não foi a primeira vez que a Virada cometeu um vacilo histórico. Como já apontou o jornalista André Piunti, grave mesmo foi, por exemplo, a ausência de qualquer homenagem aos 20 anos da morte de Tião Carreiro. Ainda mais considerando que, na data redonda da Virada Cultural de 2013, havia um tributo ao roqueiro Chorão, morto naquele ano.
Pedro Bento & Zé da Estrada, no entanto, apesar de se filiarem à modernidade (que hoje não é mais moderna porque foi ultrapassada pela acelerada história sertaneja), acabaram cedendo à louvação caipira. Homenagearam várias vezes a “autenticidade” de Inezita. Em nenhum momento elogiaram os atuais universitários. Nem mesmo José Rico foi citado. Em nome da própria institucionalização, Pedro Bento & Zé da Estrada se veem como “sertanejos raiz”. Este é um processo comum na música sertaneja. Quando uma geração é ultrapassada, passa a ser vista como “tradição”. Negar o moderno é se aproximar do pedestal respeitável da “autenticidade” caipira.
Mas, como dissemos, a incorporação sertaneja na Virada Cultural foi ambígua e paradoxal. Cézar & Paulinho, uma dupla também afeita à modernidade, não renegaram sua história modernizante e seus influenciados, mesmo cantando no palco de Inezita.
Os piracicabanos, filhos de Craveiro, da dupla Craveiro & Cravinho, desde seu primeiro disco, em 1974, se apresentavam em sintonia com a modernidade da época. Cabelos compridos, roupas urbanas e repertório parecido com o dos então modernos Milionário & José Rico e Leo Canhoto & Robertinho, eles sempre militaram pela modernização da música rural, se contrapondo aos caipiras folcloristas.
No show da Virada Cultural de 2015, Cézar & Paulinho foram gentis e louvaram Inezita. Mas fizeram questão de citar o atual sertanejo universitário, dias antes da morte inesperada de Cristiano Araújo, apontando que gostavam do gênero. Foi provavelmente a primeira vez que o sertanejo universitário foi tratado de forma simpática na Virada Cultural. Não é por acaso que tenha sido uma dupla periférica (cujo auge aconteceu nos anos 1980 e 1990 e nunca chegou no nível de sucesso de Chitãozinho & Xororó, por exemplo) a primeira a romper, ainda que de forma paradoxal, o cerco dos produtores culturais do evento paulistano. Até o show de Cézar & Paulinho, os organizadores da Virada Cultural vinham sistematicamente boicotando qualquer artista que tivesse sequer simpatia pelo atual sertanejo universitário.
Quando se fala de música rural, há de se fazer uma distinção. A crítica cultural brasileira (sobretudo aquela de matriz urbana do Sudeste, seus produtores, curadores, Secretarias de Cultura de governos estaduais e prefeituras de capitais) aceita e adora artistas que louvam a tradição. Prefere assim músicos que demonstram respeito, às vezes até exagerado, pelo passado. É por isso que os artistas caipiras, aqueles que louvam a tradição rural, já haviam tocado na Virada. Mas essa mesma crítica cultural sempre rejeitou aqueles artistas que se filiam à modernidade, que estão dispostos a fazer misturas, que, embora nem sempre bem sucedidas, geram novos critérios de julgamento estético com o passar dos anos.
Apesar de recente, a Virada Cultural paulistana tornou‑se um marco do calendário da cidade. E também um marco do silêncio de São Paulo em relação à música sertaneja. Os únicos artistas aceitos pelos organizadores da Virada até então havia sido os tradicionais caipiras. Na edição de 2013, Sérgio Reis e Renato Teixeira se apresentaram no Palco Júlio Prestes, antes dos rappers Criolo e Racionais MC’s.
Apesar do sucesso nacional, nenhum universitário ocupou um palco da Virada Paulista de 2013, embora Michel Teló tivesse sido convidado. Segundo o próprio, por questões de agenda, não pôde participar. À época, Teló aproveitou para militar pelos amigos da seara universitária e protestou: “Eu fiquei feliz pelo convite, acho o projeto interessante, não pude por questões de data mesmo, principalmente por logística. Eu acho que deveria haver espaço igual pra todo mundo, não deviam deixar o sertanejo de lado. (…) Podia rolar a história do sertanejo no palco, dos mais tradicionais aos mais novos, pra gente poder mostrar que esse sucesso de hoje não nasceu ontem. (…) Um evento cultural tem que ter música sertaneja, que é parte de uma cultura genuinamente brasileira. A música sertaneja precisa ser respeitada”.
Um dos organizadores da festa, o jornalista e produtor Alex Antunes, tinha outra versão e culpava o alto cachê pedido pelo músico, como disse em entrevista a Pedro Alexandre Sanches: “O que me espanta (na verdade me diverte) é que o Michel Teló cause tanta repulsa, sendo um músico com raízes populares legítimas. (…) Ele foi cogitado porque soubemos que poderia vir por um cachê bastante amistoso, o que acabou não se confirmando.” Não obstante o desencontro de agendas ou cachê, não deixa de ser espantoso que nenhum outro sertanejo tenha sido cogitado para substituir Teló. Sem efeito, seu protesto soou no vazio.
Em 2014, nenhum sertanejo universitário foi lembrado tampouco. Mas um fato insólito ocorreu. A cantora Roberta Miranda foi convidada para cantar às 18h do dia 18 de maio. Seria a primeira vez que um sertanejo iria cantar na Virada Cultural da capital paulista. Mas eis que os deuses assim não quiseram. Uma chuva torrencial caiu naquele dia e cancelou vários shows, inclusive o de Roberta. Seja como for, uma coisa ficou clara: mesmo quando foi cogitado um sertanejo, não era alguém representativo da geração universitária, como Luan Santana, Victor & Leo ou Jorge & Mateus, mas uma artista, Roberta Miranda, cujo auge fora décadas atrás. E o boicote aos sertanejos universitários prosseguiu.
Ficou evidente que, ao menos entre as instâncias governamentais, São Paulo parece ter problemas com a identidade interiorana. Trata‑se de um dilema fundamental para uma cidade global como São Paulo, que culturalmente se vê refém do interior. Esse dilema paulistano foi bem sintetizado pelo jornalista e crítico Pedro Alexandre Sanches, em entrevista ao site Pense Novo, em 2012: “São Paulo é uma cidade do interior, apesar de ser uma capital. A música interiorana do Brasil passa por São Paulo fortemente, de Inezita Barroso, Cascatinha & Inhana, até as duplas que vêm pra cá, Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camargo & Luciano etc. Só que São Paulo quer ser Nova York e Londres, então ela foge dessa identidade como o diabo foge da cruz, ela não quer parecer caipira, sertaneja, interiorana… Só que eu acho que não escapa!”.
E São Paulo continua ignorando não apenas os universitários. Os organizadores da Virada Cultural ainda não foram capazes de convocar uma banda já entronizada no imaginário cultural nordestino-paulistano como a Banda Calypso. O gênero que hoje anda comendo pelas beiras a música popular brasileira (inclusive atravessando o sertanejo), o arrocha baiano, tampouco foi lembrado. Por que não chamar o Pablo, do arrocha? “Brega bom é brega morto”, como demonstrou Danilo Cymrot em seu ótimo texto aqui no Farofafá. Além desses, não custa lembrar a ausência histórica da música religiosa, de Padre Zezinho a Aline Barros, que também faz parte da memória afetiva de milhões de paulistanos.
Seja como for, a recente inclusão de Pedro Bento & Zé da Estrada e o discurso de Cézar & Paulinho demonstram que o futuro é auspicioso para que a música de fato popular brasileira possa dialogar de fato com artistas de outros gêneros na Virada Cultural de São Paulo. Quem sabe, num mesmo palco, em futuro próximo. Quem viver verá.
(Gustavo Alonso, 34 anos, é historiador e autor do livro Cowboys do Asfalto – Música Sertaneja e Modernização Brasileira, que será lançado em 22 de julho de 2015 pela editora Civilização Brasileira e já se encontra em pré-venda em sites de livrarias online. Também é autor de Simonal – Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, 2011, editora Record.)
Existe, e eu tenho.
Existe , enquanto insistirem em músicas ruins e chatas, existirá…A questão não é tanto a modernização, é a proliferação de músicas monossilábicas.
Eu nunca li tanta asneira assim na minha vida. Não gostar de um gênero musical agora é ter fobia? Que lixo..
~asneira~, ~lixo~: pessoas que não conseguem dialogar sem xingar e cuspir fogo…
Sério que alguém é pago para escrever isso? Meu Deus do céu…esses esquerdistas…se superam cada dia mais!!!!!!
O Gustavo é historiador formado, mestrado e doutorado e escreveu pro Farofafá sem pedir remuneração, Rayam. Existe gente assim no mundo, e o Farofafá ama. :-))
Não entendo essa peninha que alguns intelectuais sentem do sertanejo, funk,pagodes e afins. Ou seja, justo do setor musical mais visto,transmitido, e rico do país. Esses caras ocupam quase que toda a grade da grancde maioria dos festivais musicais, da televisão, internet etc. Estão em todos os lugares. Preconceito quem sofre são artistas do hip hop,rock, MPB que são previamente taxados de não-populares pela indústria, e são empurrados para pequenas rodinhas, formadas por pessoas que querem ouvir mais do que o mesmo que o sistema impõe. Me parece que numa Virada cultural, feita pelo poder público, é meio óbvio que se prefira dar espaço a artistas que não são conhecidos do grande público, para que este possa conhecer coisas diferentes, linguagens diferentes etc. Ou alguém acha mesmo que o Michel Teló quer trocar de lugar com a Tulipa Ruiz? Basta ver que o grande Fernando Brant morreu e ninmguém se importou, já com o sertanejo universitário foi a maior repercussão. Duvido que São Paulo ou qualquer lugar do Brasil, conheça mais a obra de Brant do que qualquer sertanejo,. Incluído aí as elites intelectuais.
~Peninha~? O autor de “Sozinho”?
O autor do texto confunde deliberadamente cultura popular com cultura de massa.
Como pretenso pesquisador o autor desse chororô deve saber que o objetivo da cultura de massa é criar ídolos com o único objetivo de ganhar dinheiro, o que costuma passar longe da arte popular e de possuir qualquer valor artísco minimamente relevante.
Levar o tal sertanejo ao povo é como continuar dando dar osso puro pra cachorro.
Lamentável texto.
Por que é preciso questionar a legitimidade do autor do texto pra contestar seus argumentos, Fabricio?
Texto excelente. Há um país dentro do Brasil indiferente e arredio a toda manifestação emanada do povo, popular, naturalmente bem-sucedida sem a mediação da crítica – em geral, fruto dos espaços sobre os quais ela é nula. Na verdade, existe um jogo permanente para saber quem tem o poder de definir valor cultural, da música às artes plásticas. No Recife, Reginaldo Rossi penou a vida inteira na tentativa de justificar o próprio sucesso porque a crítica, implacável, jamais aceitou o brega como uma expressão de sucesso – simplesmente pelo fato de que não a legitimava. O sertanejo universitário existe, tem força, público, altos e baixos e merece atenção como qualquer outro gênero. Negar-lhe valor é tornar invisível uma parcela da população tão expressiva quanto necessária à nossa pluralidade cultural.
Parabéns pelo texto!!!!!!!!!! Viva o arrocha, o brega (que nada tem de pejorativo), sertanejo, calypsos, etc!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Ainda vou ver, se Deus quiser, o sertanejo (puro, misturado, antigo, atual…) entrar em todos os cantos!!! TODOS!!! E vou rir muuuuuuuuuuuuuito desse povo que, ainda, se diz melhor, se acha! Sei o que é esse preconceito, como é horrível essa separação que foi feita e levada adiante por tantos que se dizem “cultos”, “intelectuais”, “inteligentes”! E vi outros sofrendo tb, sem entender tamanha bobagem. Ainda hoje meios de comunicação falam de cultura e não citam Sertanejo!!! É trágico. Tô no meio de uma dor sem tamanho pelo querido Cristiano. Será eterna. O artista de muitas músicas, incrível, eu conhecia todo o trabalho e acompanhava desde o início. Obrigada cada vez que alguém tenta e/ou consegue introduzir o estilo no meio de algo em definitivo! Não gostar é uma coisa, fazer pouco caso é outra bem diferente, atitude que foi prolongada ao longo tempo. Que as novas gerações sejam mais humanas, sábias, inteligentes, humildes! abraço Pedro, Gustavo e quem mais estiver disposto a abrir, incorporar, incluir e ser brasileiro antes de qualquer coisa, com orgulho. A própria Carta Capital nesse sentido ignora, não vai acordar????!!!!!
O link para a entrevista de Alex Antunes a Pedro Alexandre Sanches sobre Michel Teló não está correto.
No trecho “Apesar do sucesso nacional, nenhum universitário ocupou um palco da Virada Paulista de 2013, embora Michel Teló tivesse sido convidado”, o autor está falando da edição municipal ou estadual do evento?
Gostei do texto,mas diploma universitário não confere sabedoria a ninguém.