A grande biografia que ninguém vai ler

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O biógrafo Vitor Nuzzi seguiu os passos de Geraldo Vandré por mais de uma década, e o resultado é o livro ‘Uma Canção Interrompida’, edição do próprio autor. Somente 100 exemplares foram impressos

Vandré em sua última aparição, em 2014 - Fotos: Jotabê Medeiros
Vandré em sua última aparição, em 2014 – Foto: Jotabê Medeiros
Durante oito anos, o jornalista e escritor Vitor Nuzzi enviou oito cartas para Geraldo Vandré. Ele não respondeu a nenhuma. Um dia, já em processo de escrever uma biografia do artista, conseguiu seu número de telefone e ligou para o cantor. Vandré atendeu e perguntou: “Vitor de quê?” Ao ouvir a resposta, disparou: “Eu não tenho interesse nas coisas que você anda fazendo”.

“Ele sabia que eu estava escrevendo!”, conclui o jornalista, com um tom entre o lisonjeado e o preocupado. Desde então, o autor tenta ligar para Vandré, geralmente para parabenizá-lo em seus aniversários. O músico, para não fugir à lenda, jamais atende. Mas não foi sempre assim. Em 1985, quando Nuzzi estava no segundo ano de jornalismo na Universidade Metodista, descobriu o telefone da Sunab, onde Geraldo Vandré às vezes dava expediente como funcionário público. Passou a ligar para aquele número. “Eu queria falar com o dr. Geraldo Pedrosa”, consultava, insistentemente. Um dia conseguiu – o próprio músico atendeu o telefone. “Sou estudante, tenho interesse em falar com o senhor para um trabalho de faculdade”. Vandré foi solícito e lhe disse: “Venha à minha casa”.

O jornalista foi. Entrou finalmente na residência da rua Martins Fontes, em São Paulo, que ainda hoje pertence a Vandré (atualmente, ele passa mais tempo em Teresópolis, onde vivia a mãe, morta recentemente aos 95 anos). Conversaram, o cantor foi amável, um contato breve. Nuzzi continuou interessado na história (e nas lacunas da história) daquele artista de trajetória tão peculiar.

“Quando ele completou 70 anos, eu me dei conta que a data ia passar despercebida, achei que ninguém lembrava mais dele. Os que o conhecem só sabem de duas músicas, ‘Pra Não Dizer que Não Falei das Flores’ e ‘Disparada’. Não sabem que foi um profundo pesquisador da música caipira, que fez trilha para Augusto Matraga, que musicou Rosa. Foi gravado por Sérgio Endrigo e Ornella Vanoni. Foi cantado por Joan Baez. Escrevi um artigo sobre os 70 anos dele, e foi impressionante a repercussão”, lembra Nuzzi. O jornalista recebeu centenas de contatos, gente que se lembrava das músicas, das peças, dos textos. Ele se deu conta de que não estava sozinho em sua “perseguição” àquele legado da música.

As coisas que Nuzzi andava fazendo NÃO chegaram essa semana às boas livrarias do País e NÃO estão à disposição nas lojas de comércio online de livros. Essas coisas que levaram Nuzzi a ser chamado até de “espião” pelo artista compõem a biografia “Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida”, um catatau de quase 400 páginas em que obra, vida, percalços e ideias do cantor paraibano quase octogenário (fará 80 anos em setembro próximo; nasceu em 12 de setembro de 1935 em João Pessoa).

Ocorre que esse é um livro que poucos lerão. Até agora, apenas 60 pessoas no Brasil receberam um exemplar, todos amigos ou colegas de Nuzzi. Ele vai distribuir, ao final, 100 exemplares da edição do autor que providenciou com seus próprios recursos. Mas isso é uma insânia!”, digo a Nuzzi. “Concordo”, ele diz, rindo.

O autor não tem interesse comercial. Diz que não é por medo do advogado Vandré e de uma hipotética ação de retirada do livro de circulação. Pretende, nos próximos dias, entregar um exemplar ao artista. “Se mandarem recolher, o máximo que posso fazer é dar uma lista das pessoas para as quais eu presenteei o livro”, diz.

Sua meta é outra, e alguns diriam que é meio quixotesca. “Eu gostaria de diminuir a mitologia e sugerir que se descobrisse mais a obra e se desse menos ênfase nas lendas em torno do Vandré. Eu acho que a mitologia prejudicou o conhecimento da obra dele”, afirma.

E qual é o mito? Bom, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, o Geraldo Vandré, é sem dúvida o personagem mais controverso da MPB. Sua trajetória se situa basicamente entre 1963 e 1970, ano em que fez seu derradeiro disco, no exílio, em Paris. Um belo dia, em 13 de dezembro de 1968, após um show em Anápolis (GO) com o Quarteto Livre, ele se mandou dirigindo seu Galaxie. “Eu parei ali. Acabou a carreira. Não tive mais carreira”, ele diria, em 2013, em breve conversa por telefone com o Correio Braziliense.

Vitor Nuzzi diz que há três equívocos comuns sobre Geraldo Vandré na seguinte frase: “Cantor de protesto que foi torturado e ficou louco”. Ele entrevistou mais de 100 pessoas, amigos próximos, colegas, intérpretes (como Jair Rodrigues), coronéis, ex-agentes, porteiros de prédios e hotéis, conterrâneos, fãs e pesquisadores. Poucos se recusaram a falar, entre eles Heraldo do Monte, Airto Moreira e Renato Teixeira. Também tentou falar com Chorão, finado cantor do Charlie Brown Jr, que fizera versão de “Pra Não Dizer que Não falei das Flores” – mas não passou da assessoria de imprensa do artista.

Vandré não foi cantor de protesto, embora tenha ficado famoso justamente por essa canção que incorporou a sanha por liberdade de uma geração, “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”. A canção, essa sim, encarnou um espírito de resistência que emoldurou greves, protestos, manifestações, acirrou o espírito anticomunista de certa parte da direita brasileira, cutucou onças com vara curta. Seus versos, ambíguos e aparentemente inócuos, despertaram a ira de censores.

O livro mostra que Vandré tem senso de humor, que toma Coca-Cola, que brinca com a própria música. Narra o episódio da entrevista “montada” de Geraldo Vandré ao Jornal Nacional, dado ao cinegrafista Evilásio Carneiro, em 1973. Vandré chegou ao país escoltado por agentes da repressão, e deu uma entrevista sob coação, depoimento que o diretor da Globo, Armando Nogueira, afirmou que não tinha condições de levar ao ar. O cinegrafista, que declarou que Vandré parecia ter sido torturado dentro do avião no qual voltou ao país, passou dois meses sendo seguido pela repressão. No final, foi ao ar uma versão editada em que a narração em off não era nem mesmo de profissionais da Globo, era do próprio regime militar. Era uma declaração de “arrependimento” do antigo inimigo do regime, que desapareceria como artista a partir dali.

O biógrafo de Vandré, Vitor Nuzzi
O biógrafo de Vandré, Vitor Nuzzi
Mas a convicção do biógrafo é que Vandré não foi torturado e não é absolutamente louco – talvez um pouco excêntrico. Diz que seu livro não vai esclarecer os pontos obscuros da trajetória do músico, o que aconteceu no período de sua fuga e subsequente exílio. “Vai continuar misterioso”, avalia.

“Quase todos os artistas de destaque na MPB dos anos 1960 tiveram problemas com a ditadura, muitos deles foram exilados ou se recolheram. Mas todos voltaram. Ele nunca voltou”. Também nunca mais fez shows, exceto uma apresentação curiosa num cinema no Paraguai, em 1982, presenciada por 200 espectadores.

As aparições de Vandré são raríssimas. Em 2010, deu uma entrevista a Genetton Moraes Neto, da Globo News. Em março de 2014, fez sua última reentré: subiu ao palco como convidado da cantora norte-americana Joan Baez, no Teatro Bradesco, na Barra Funda, e até declamou um poema inédito.

EM TEMPO: Nos próximos dias, aguarde aqui a resenha e trechos da biografia de Vandré que você provavelmente nunca poderá ler.

* Publicado originalmente em El Pájaro que Come Piedra

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