Quando recebi o e-mail-convite para o festival BR135, em São Luís do Maranhão, um item me chamou especial atenção entre diversos argumentos graciosamente colocados para me convencer a comparecer: “afeto”. Aceitei.
Não era retórica. Nos quatro dias passados na São Luís de minha adorada Alcione, fui cercado de afeto por entre shows, músicas, conversas, obras de arte culinária, alguns CDs, um documentário em DVD, uma pequena montanha de livros.
Quanto à montanha, até agora tenho dificuldades de distinguir onde acaba o afeto e começam os livros, e vice-versa. O historiador Bruno Azevêdo, de 35 anos, me procurou com um convite para uma cerveja (que acabou não se concretizando), um exemplar do meu velho Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (que completa neste mês justos dez anos) e uma pilha de lançamentos de sua editora orgulhosamente maranhense, a Pitomba.
De cara, fiquei estatelado com a capa e o título de Em Ritmo de Seresta – Música Brega e Choperias no Maranhão, escrito pelo próprio Bruno e acompanhado de um apetitoso CD-coletânea de preciosidades de Raimundo Soldado, Lindomar Lins, Tonny Cajazeira (alô, senhor doutor Dewis Caldas!), Lairton e Seus Teclados (“Morango do Nordeste”, quem não lembra?), Oswaldo Bezerra etc. Bendita hora em que nem tenho mais um toca-CDs, mas maldita hora em que eu não trouxe para a viagem um toca-CDs.
Os outros títulos que Bruno passou de suas mãos para as minhas não são menos apetitosos: O Reggae no Caribe Brasileiro (Caribe brasileiro, ouviram, reacionários nordestefóbicos/brasilfóbicos?), de Ramusyo Brasil; Onde o Reggae É a Lei, de Karla Freire; a novela gráfica Barato 66, de Luciano Irrthum com o próprio Bruno, o catecismo A Intrusa, escrito por Bruno em eu-lírica feminina, e daí adiante – todos de linda e apurada apresentação gráfica. Eu sei, o Maranhão é terra de poetas e literatos, mas que gosto dá ver tamanho esmero.
Nas duas noites de shows no maravilhoso, maltratado e desconservado centro histórico de São Luís, convidados paraenses (Felipe Cordeiro, Dona Onete) e pernambucanos (Mombojó) complementaram com mais afeto e troca uma saraivada de apresentações de bandas e artistas maranhenses. Ali Bruno Azevêdo também era figura constante, participando como músico de shows como o que mais gostei entre todos que vi, do grupo bregacult (perdão pelo rótulo idiota) Forrozão Mão na Xereca.
“Nada é mais importante do que foder”, resume um hino da Mão na Xereca, sobre um rapaz tímido na vida real que encontra valentia para abordar via Facebook a menina por quem tem tesão – “para foder, foder, foder gostoso”, e quem nunca?
A antena parabolicamará de Gilberto Gil se faz presente no retrofuturismo de teclados da Mão na Xereca e em cada detalhe do BR135. Um drone (ó céus, o que será daqueles que viam discos voadores neste tempo incrível de minúsculas naves não tripuladas?) filma do alto as apresentações de cacuriá (de Dona Teté, já falecida), tambor de crioula (de Mestre Amaral) e bumba-meu-boi.
Nos ornamentos impactantes do Boi de Santa Fé, luzes tecnobrega e CDs usados reluzem feito ouro e prata e multicor, demonstrando que a tradição também sabe assimilar, zombetear e mastigar a (ex-)inovação.
No show de Dona Onete, os olhos dela cintilam de estar se apresentando pela primeira vez no Maranhão, misturada à molecada maranhense que toca blues e MPB e rock e forró e reggae e brega e muitos etc. Pará e Maranhão (ó o Caribe brasileiro!) são estados vizinhos que só agora tentam adquirir o hábito de se frequentar.
O BraZil não conhece o BraSil, cantava Elis Regina e gosta de lembra sua filha Maria Rita. Não conhece, mas está louco para conhecer e já está conhecendo, querida(s) Maria Elis Rita.
Por sinal, Alê Muniz e Luciana Simões, os curadores-organizadores do BR135, me contam que, assim como Dona Onete, nunca se apresentaram no estado vizinho, nem sequer o visitaram. O Brasil nunca foi ao Brasil…
Jumtos, Alê e Luciana formam a dupla-casal Criolina. Não se apresentam como artistas nesta que é a terceira e maior edição do festival, com convidados de fora, palestra de Marcelo Yuka, tal e coisa. O empenho, desta vez, se direciona a espalhar amor e cuidado aos artistas e espectadores conterrâneos.
Alê me conta que admira a experiência Fora do Eixo, mas parece orgulhoso de não pertencer a ela – eu também fico, tanto por saber quão inspiradora a experiência foi e é para grupos e comunidades e estados e regiões antes culturalmente (auto-)abandonados do Brasil, quanto por constatar que há vida saudável e latejante fora do Fora do Eixo.
Curadores e músicos e jornalistas e artistas e provocadores reunidos nas mesmas pessoas, Bruno Azevêdo e o(a)s Criolina retratam bem o que é a cultura em lugares onde o faça-você-mesmo impera e marginaliza preconceito, discriminação e isolamentos. É o caso, também, do amorosíssimo casal formado pelos jornalistas Andréa e Celso Borges, ele também assessor de imprensa do BR135, poeta, documentarista, compositor e parceiro musical do conterrâneo Zeca Baleiro. De autoria de Celso, recebo o livro de foto e poesia O Futuro Tem o Coração Antigo (a antena parabólica, camará!) e o documentário A Estrela e o Vagalume – Carlos & Zelinda, sobre um casal (outro casal) que marcou a vida cultural de São Luís.
Um retrato minimamente preciso do que vi e vivi nos dias de São Luís passa, forçosamente, pela lembrança de que dentro de poucos dias se interrompe mais uma vez a era Sarney no Maranhão. Atores e agitadores culturais se mostram ansiosos e esperançosos com a chegada do governo de Flávio Dino, do PCdoB.
No vaivém dos quadris da tradição-invenção, é hora de deixar São Luís. Me despeço me perguntando o que pode ser mais rico que visitar um lugar e voltar com a bagagem cheia de afeto e novas fontes de saber. Com a mala cheia de amor e cultura, parto para a rodoviária de São Luís, rumo à cidade de Imperatriz, no sul maranhense, divisa com o Tocantins, e rumo ao Brasil interior.
A rodovia que pego para me embrenhar por lugares que são meus desde o berço é a BR135.
Forrozão Mão na Xereca na escuta! Felizes por você ter entendido nosso recado! Um afetuoso abraço!
Só uma correção: o autor de Reggae no Caribe Brasileiro é Ramusyo Brasil e não Raymundo, como apontado.
Obrigado, Sergio, e desculpem pela desatenção! Vou corrigir agora mesmo!
Parabéns! Ótimo texto!
Oi Pedro, eu sou o Gilberto Mineiro, jornalista, pesquisador musical, produtor cultural em São Luis, o qual produz e apresenta o programa de rádio ” Cia Da Música”, sobre a música do mundo ,dos artistas chamados “Sem Mídia”, uma alusão aos “Sem Terra”, toda quinta, das 20 às 21 hs,
há mais de 26 anos, o qual pode ser escutado em tempo real pelo site http://www.universidadefm.ufma.br
Fui convidado para compor uma mesa de debate e outros papos em que você participou, mas não deu, muito em cima da hora. Seria um encontro interessante, visto que há uma admiração a partir do recorte do livro seu “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba”. Daí surge algumas empatias de regulares observações sobre as trupes e os muitos tropeiros que se aglutinam para formarem movi ment ação e movimentos na música e arte brasileira. Quando der, dá uma escutada no programa. Até outra oportunidade