Na BR135, São Luís do Maranhão começa a virar interior numa pista duplicada cujo canteiro central está repleto de lixo – saquinhos plásticos, garrafas pet, cacarecos de ex-mobília.

O olhar fica bipartido, estrábico.

O olho direito, assediado pela nordestinofobia, formula mentalmente o raciocínio-clichê dos nascidos no ~Sul~: a família Sarney não se preocupa sequer com a limpeza dos próprios quintais.

O olho esquerdo, buscando apoio e suporte em algum tipo mais material de realidade, lembra-se imediatamente do estado onde mora, São Paulo, dito o mais rico e desenvolvido do país, cuja capital é rasgada pelos rios Tietê e Pinheiros, muito mais sujos e espúrios que uma centena de canteiros centrais de São Luís.

Para quem mora no Sudeste, nordestinos são sempre os outros.

Os olhos esquerdo e direito guerreiam, e quem decide qual deles vencerá a batalha campal é você, em você. Estar sozinho na BR135, onde a pista já não é mais duplicada, é colocar os dois olhos no mesmo ringue e deixar que eles mesmos façam da guerra a paz, ou vice-versa.

Os nomes começam a aparecer, falados ou escritos, conforme a viagem diurna vai soluçando de rodoviária em rodoviária. Bacabeira. Açailândia. Pedreiras. Serra das Alpercatas? Arari (a primeira rodoviária com jeitão de Brasil novo, conforto e simplicidade para maranhenses e não-maranhenses). Pindaré-Mirim. Assentamento Babilônia. Assentamento Babilônia. Assentamento Babilônia. Buriticupu com parada para “merenda”.

Já sei faz tempo que minha jornada interior será pelo Brasil indígena, e os nomes dos lugares só fazem comprovar a obviedade que a guerra dos olhos tenta o tempo todo obnubilar: indígenas exterminados é o caralho, nosso nome camaleão é tupi-guarani.

É certo que pré-selecionei no smartfone as músicas que iria trazer, mas é na BR135 que minha infalível DJ Aléa Tória escolhe com maestria a carioca Diana, “Ainda Queima a Esperança” (1971), para aquecer meu coração permeada à interioridade goiana de Odair José e à interioridade litorânea cearense de Karim AïnouzO Céu de Suely (2006) e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2010). O olho esquerdo golpeia um direto no direito e responde: volto porque preciso, viajo porque te amo (meu BraSil, eu te amo!).

A incrível quantidade de jumentos pastando plácidos às beiradas da BR135 enche meus olhos de lágrimas e me faz latejar de saudade de um herói que nunca conheci, o pernambucano Luiz Gonzaga, “O Jumento É Nosso Irmão” (1967). A nordestinofobia matou Luiz Gonzaga dia após dia, em cada um dos anos e meses que ele viveu.

Imperatriz, no sul do Maranhão, quase divisa com o Tocantins, é uma cidade nervosa à véspera da véspera do Natal. O rio Tocantins, lindo e majestoso como são os rios não-poluídos, deita-se meio deixado de lado num dos cantos da cidade. Cada povo à sua maneira, maranhenses e paulistas, esquerdos e direitos, gostam inexplicavelmente de fingir que não são (somos) alimentados e nutridos pelos rios. Será porque não querem(os) lembrar que são (somos) todos índios?, todos pescadores?, todos soltos?, todos nus?, todo dia de índio?

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Historietas se acumulam no hard disk que fica entre o olho direito e o esquerdo, já ameaçando perder espaço físico para informações mais novas.

Há a senhorinha no ônibus, que, dos mais de 700 quilômetros entre São Luís e Imperatriz, seguramente conversou pelo menos 500 quilômetros, com animação inesgotável. Reclamona como costuma sempre ser o olho direito (às vezes até o esquerdo), sustentou que por amor à função jamais vai se aposentar. E criticou o conhecido fulano, que tem o desplante de acumular dois aposentos. E discursou a favor do casamento, para depois discursar contra, para depois discursar contra e a favor. Por favor, pare agora, senhor juiz, disse o rapaz de Wanderléa, Teresina, Piauí, Memphis, Tennessee.

Müller, imperatrizense filho de paranaenses de ascendência germânica, que me conta que todos em sua família aprendem a dirigir muito cedo – justamente a mim, que sou paranaense, mas jamais aprendi a dirigir (nem) carro (nem minha própria vida). Ele, Müller, dirige (carros) desde os 6 anos de idade. Um dia desses, três de seus primos, irmãos entre eles, saíram à toda pela BR135 (imagino eu) e acabaram abalroados por uma carreta. O primo de 16 anos morreu com as mãos cravadas no volante, mas quem parecia dirigir era o primo de 12, morto no banco do motorista. O de 14, acomodado no banco do carona, também morreu, entre os 12 e os 16, sem tempo para esquerdo nem direito.

O frio de ar-condicionado na BR135, no calor de interior não-sertanejo do Maranhão, não se reproduz no próximo trecho, os 600 e tantos quilômetros de Imperatriz até Palmas, capital do Tocantins. O microônibus é quente, morno, repleto de brasileiros e brasileiras que sobem e descem e descem e sobem a cada rodoviária.

O caminho agora é a BR010, a Belém-Brasília, ecos quentes dos índios paraenses que pronunciam “castânia”, “pamônia” e “tapioquínia” e que por vezes fazem remix com as “cashtanhas” de São Luís do Maranhão. Belém-Brasília, Transbrasiliana, Transamazônica, Iracema, uma Transa Amazônica (1976), BraSil grande. O microônibus em que viajo é da companhia Jam Joy, mano, Jam Joy. BraZil pequeno. Milho verde. Maçaroca.

Um laivo de bom humor invade uma ou mais cidades maranhenses cujos nomes não consigo descobrir. Churrascaria Pit Bull. Restaurante Costa pra Rua. Restaurante Babado Novo (é do babado esse restaurante!). Balneário Lepo-Lepo.

O muro pixado corrobora: “Em 2015 desejo a todos muita paz e muita sacanagem”. Trata-se de uma pixação anti-PIG (Partido da Imprensa Golpista) por excelência, em pleno império tecno-agrário dos Sarney. Nem tudo é resmungo na divisa-nariz entre o olho direito e o esquerdo. Desejo muita paz (no sentido não-católico) e muita sacanagem (no sentido não-católico) para todo mundo em 2015!

Mais nomes, mais índios, uns tantos caubóis: Ribamar Fiquene. Vitória do Mearim. Estreito (a ponte de ferro Maranhão-Tocantins, a memória do trem, o sangue no linho branco, Espírito Santo de Roberto Carlos, como você ousa viajar pelo interior brasileiro sem Roberto Carlos, DJ Aléa?). Darcinópolis. Gardelândia. Araguaína. Araguatins (Araguaia + Tocantins, rio sobre rio). Colinas. Presidente Kennedy (???). Guaraí. Tabocão. Chambaril. Miranorte. Miracema do Tocantins.

Bacabas, buritis, juçaras, outros cocos, outras palmas, outros açaís.

Meu jovem vizinho de poltrona no ônibus, de que esqueço de perguntar o nome, está vindo sem paradas para abrigo de Fortaleza, no Ceará, para passar o Natal com a mãe, que mora sozinha em Xambioá.

Xambioá. Xingu. Rio Araguaia. Guerrilha do Araguaia, José Genoino. Ditadura civil-militar. Ditabrandas PIG que dizimam políticos.

Meu jovem vizinho de poltrona no microônibus Jam Joy tem traços indígenas evidentes (será?) e carrega um cabelo moicano como o meu que sou índio loiro do Paraná. Antes de trepar no pequeno Jam Joy, ele havia chegado a Xambioá, após dois dias e meio de viagem, apenas para descobrir que a mãe se mudou para Palmas. E taca-lhe pau, jovem tchucarraMÃE, mais 500 e tantos quilômetros, ainda é 24 de dezembro, aproxima-se a data escravagista do Natal, há de dar tempo!

Mas, enquanto isso, como é deslumbrante a paisagem do Tocantins, especialmente de Aragauína a Palmas! Pertencente à região Norte e à Amazônia legal, o estado ainda é floresta e já é cerrado, tem a ilha do Bananal e o “deserto” do Jalapão, é seco e úmido, olho esquerdo e olho direito. Parece rico, certamente é rico, próspero, verde, deslumbrantemente verde, terra da ministra escravagista da agricultura, Kátia Abreu.

Palmas inunda meus dois olhos de surpresa, espanto, admiração e encanto. Capital caçula planejadíssima, vice-miss bumbum das sedes administrativas das unidades da federação, nasceu em 1989 como uma Brasília um pouco mais careta, mas muito mais espaçosa – se um dia eu não aguentar mais a estreiteza das ruas paulistanas, já tenho para onde migrar.

Bisneto de índios javaés, o guia Eudes me leva à ilha do Canela, no rio-mar Tocantins, e às cachoeiras do Taquaruçu, distrito montanhoso de Palmas, no alto da serra do Lajeado. Bonecos de neve e perversos papais noéis ornamentam a praça verde de Taquaruçu, inverno no verão, direito comendo as canelas do esquerdo, pelo menos Jesus Cristo não está aqui. Kátia ainda será governadora do Tocantins, me garante e promete o javaé Eudes.

IMG_9640Lá no alto da serra encontro um Ponto de Cultura, a linda Casa de Caboclo, dirigida por tocantinenses que monitoram a acarinham as visitas à serra. Rio também é cultura. Gilberto Gil. Ana de HollandaMarta SuplicyJuca Ferreira: ex e futuro ministro da Cultura. Vesgos, olho direito e olho esquerdo apontam para o mesmo nariz-chapadão.

Eudes me dá aulas de geografia brasileira e de música brasileira.

Alerta para o fato de que o Tocantins, centro do centro do Brasilzão, faz divisa com nada menos que seis estados: Maranhão, Piauí, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Pará. Norte, Centro-Oeste, Nordeste, tudo que o olho caolho direito mais abomina na vida.

Apresenta-me nomes de músicos populares na região. Genésio Tocantins (comprei um disco!). Braguinha Barroso (comprei um disco!). DorivanJuraildes da Cruz (conheço!, já tenho discos!).

Saindo de Palmas, faço, por falta de opção diurna, a primeira viagem 100% noturna, 650 e tantos quilômetros até Alto Paraíso de Goiás, coração goiano da inenarrável Chapada dos Veadeiros.

Mais nomes, mais índios, mais negros, mais nordestinos, mais médicos, menos preconceito, fobia e discriminação. Arraias. Campos Belos. Teresina de Goiás (disse o rapaz de Teresina, Piauí, Memphis, Tennessee). Cavalcante (e o bate-e-volta louco Alto Paraíso-Cavalcante-Alto Paraíso). Quilombo Kalunga.

Há quilombos onde a floresta ficou para trás e o cerrado é 100% (ou 99%) cerrado. Eu vi mamãe Naná na cachoeira de Taquaruçu, e ela jogava búzios e cartas e fazia amarração do amor.

IMG_9804Mais índios: Aruã, o guia (e DJ de forest trance) louro que me leva de bicicleta (como é difícil dirigir a minha vida e uma bicicleta!) às cachoeiras das Loquinhas, em Alto Paraíso, não acredita na nossa democracia. De acordo com sua convicção, a ditadura nunca deixou de vigorar: ditadura e democracia entraram num acordo de bastidores, se misturaram uma na outra, estão ainda aí juntas e misturadas – tal qual, imagino, olho esquerdo e olho direito dividindo a mesma íris.

Por descrença na democracia, Aruã não foi votar no primeiro turno das eleições presidenciais de 2014. No segundo turno, percebendo o perigo Aécio Neves, abriu uma exceção para a democradura e compareceu à urna para votar Dilma Rousseff.

Aruã é olho esquerdo, e estou em pleno acordo com a tese dele sobre o autoritarismo ditatorial que sobrevive acocorado e atocaiado nas reentrâncias jovens e imaturas da NOSSA democracia. Imatura ou não, a democracia é nossa como nosso é o petróleo e do céu é o condor.

Ensimesmado, garro a imaginar que a ditadura vive dentro da democracia (e vice-versa) como, no Tocantins, a floresta amazônica norte-sulista vive dentro do cerrado centro-ocidental (e vice-versa) – com a diferença crua de que a ditadura é a ausência completa de vegetação, o mais-que-sertão nordestino (quero dizer, sudestino, paulista, o sertão de Geraldo Alckmim e da Sabesp).

Na ausência quase completa de vegetação, é preciso ser cacto para encontrar chances de subsistência, e existe gente que vive na seca quase total das redações de jornal, revista e TV. O PIG é o sertão desassistido que corrói a inteligência humana.

Já não sei mais em que BR estou, na madrugada do penúltimo para o último dia de 2014. Os 248 quilômetros entre Alto Paraíso e Brasília conduzem a 31 de dezembro, a 2015, à posse do quarto governo esquerdo-popular cerrado-amazônico brasileiro consecutivo, direito e sobretudo esquerdo.

A viagem continua.

 

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3 COMENTÁRIOS

  1. Prezado Pedro:

    olá! Feliz 2015! Meu nome é Lisa. Com outra amiga, estou desenvolvendo um chuveiro que filtra e recircula a água, sem a necessidade de eletricidade, pois é operado manualmente. No momento, participamos de um programa de aceleração para melhor entender o mercado na Universidade Nacional de Cingapura e nosso foco são mercados BOP (“base of pyramid”) e em desenvolvimento localizados em áreas urbanas. Mais especificamente, nós queremos entender melhor algumas carências que esses bairros – até onde a infraestrutura de fornecimento de água ainda não chegou – sofrem com a falta de água e como o nosso produto pode solucionar parte dessas carências.

    Acompanho o seu Instagram e Twitter, e acredito que poderias ajudar-nos muito com a sua experiência e visão, principalmente porque quero poder oferecer nosso produto no Brasil com a missão de contribuir para a melhoria de vida das pessoas que sofrem com essas carências.

    Sei que és uma pessoa ocupada com teus compromissos, mas gostaria de pedir 30 minutos do teu tempo pra poder te fazer algumas perguntas – poderia ser via Skype ou posso telefonar para o seu celular. Você teria esse tempo pra nós?

    Não consegui encontrar um e-mail seu disponível, se possível entre em contato comigo no e-mail (lisa ponto ribeiro arroba floopwaters ponto com) deste comentário. Desde já, agradeço a ajuda.

    Tenha um bom dia!

    Saudações,
    Lisa

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