“Hip-hop salvou minha vida.” O rapaz sacode a faixa vistosa da plateia, à beira do show do paulistano Emicida. Poucos minutos antes, a mesma faixa e o mesmo militante estavam em cima do palco, participando da apresentação das bandas amapaenses Nata VL e Relatos de Rua. Estamos no festival Quebramar, em Macapá, e também por aqui viceja a noção crucial de que a cultura hip-hop salva vidas. “Aí, Macapá! Você é o único representante do seu sonho na face da Terra!”, Emicida incentiva o público que se diverte ao ar livre ao pé da Fortaleza de São José e à beira do rio Amazonas, na noite do sábado, 30 de novembro. Depois da estreia 100% metaleira, a segunda noite é diversificada entre a MPB nortista do amapaense João Amorim, o rock e o rap, com nítida predominância desse último estilo. Alternando-se no palco, o Nata VL e o Relatos de Rua saúdam a “família hip-hop amapaense”. “Mãe, não chores mais”, adaptam-se os versos caribenhos imortalizados por Bob Marley e traduzidos para o português por Gilberto Gil. O Relatos tem uma vocalista de pendor gospel, Cleide, que suinga com fervor a dureza do rap. Em seguida, vem um hip-hop impactante para o pai que morreu. “Sempre que for possível, dê um abraço no seu pai. Mesmo que seja um abraço tímido”, aconselha o rapper. Quando, daqui a pouco, Emicida cantar “Crisântemo”, sobre o pai que morreu, tudo fará duplo, triplo e quádruplo sentidos. O paraense Bruno B.O. sucede Emicida e faz bonito com um modelo bem desenhado de “rap original do Norte”. É som afroamazônico pesado e seguro que rende vivas com carinho do rapper ao pós-tecnobrega indígena de Gaby Amarantos. Percebe-se que a cama sonora dos grupos amapaenses (seja no rap ou no rock) é tímida, mesmo diante do estado vizinho dominante. Como num Lollapalooza em que os artistas brasileiros se curvassem diante dos cabeças-de-planilha norte-americanos, aqui os paraenses parecem subjugar (com talento e responsa) os amapaenses. As escalas mudam, mas as estratégias de dominação cultural parecem sempre as mesmas. No dia seguinte, o domingo, o Sudeste (paulista, para ser mais exato) se imporá sobre o Norte, nos shows finais de Curumin e Arnaldo Antunes. O, digamos, efeito Rock in Rio é o de praxe: plateias pequenas e dispersas diante dos artistas locais, maior concentração e curiosidade em torno dos forasteiros. Macapá está transformada nessa noite de domingo. O Quebramar tem de suar na disputa de espaço e atenções com uma concorrida Parada Gay, que percorre a orla e termina num palco de shows a uns, sei lá, 300 metros do festival independente. Numa de minhas passadas pelos shows axé-pop-dance da Parada, me dá a impressão de já conhecer a vocalista negra que canta Lady Gaga, Beyoncé e Gloria Gaynor em inglês. Mais tarde, ela própria me revela de onde a conheço, ao chegar suada, contando que acabou de cantar na Parada Gay: outra entre os circenses versáteis que joga em várias posições na cultura amapaense, Hanna Paulino é a apresentadora oficial do Quebramar. Uma atração tipicamente amapaense é a que começa a conquistar mais atenções, embora sem ainda sobrepujar a animação vizinha da Parada Gay. O guitarreiro Fineias Nelluty apresenta a banda-ritmo Zankerada e celebra “a ponte binacional que liga o Amapá com nossos coirmãos da Guiana Francesa”. De novo, surge o “Woman No Cry” de Marley, desta vez na versão de Gil, mas em ritmo de zankerada. Fineias chama a cantora guianense Muriella Buchert para dividir o palco com ele. É um tapa com luvas aveludadas na cara de quem costuma se esquecer do imenso, gigantesco Brasil fronteiriço com a América hispânica. Fineias coloca um cocar e chama os dançarinos (de pique aparentemente lambadeiro, para quem mal conhece a cultura local), que voltam ao palco seminus, vestidos de índios. Eles dançam e ele canta o “Lengue Lengue” (não sei como se escreve), que descreve como o toque de uma tribo da Guiana. Sensacional. Há flashes para o blues amapaense da Mano Blues Band e para o delicioso surf rock potiguar da Camarones Orquestra Guitarrística (foto acima), enriquecido por uma diabólica baixista performática, Ana Morena. O Pará novamente diz presente com altivez nessa última noite. A banda Molho Negro investe num indie rock ortodoxo, mas escapa às regras em pelo menos duas ocasiões. Na primeira, ironiza afetivamente Roberto Carlos ao anunciar uma versão acelerada de “Negro Gato” (1965) – é a ponte capixaba-caribenha entre iê-iê-iê e guitarrada revalidada via indie rock globalizado. O segundo momento é um rock em louvor à “aparelhagem de apartamento” (uma bossa nova à paraense?), que o narrador aprendeu a amar ouvindo o “extraordinariamente novo” DJ Cremoso. A antropofagia ainda nos (des)une. Também do Pará vem o show mais fofo do festival, levado na raça e solitariamente pelo meigo Jaloo. Trata-se de um DJ de vestes retrô-espaciais que canta, munido apenas de toca-discos, microfone e processador de voz. Simplificando, eu poderia dizer que é bem Daft Punk, mas a fusão de ritmos é mais audaz e inventiva. Jaloo canta hits pop norte-americanos, Lucas Santtana e a tropicalista “Baby”, enquanto as bases passeiam por tecnobrega, sons caribenhos etc. Jaloo (e não só ele) vem lembrar que não só o hip-hop, mas também o tecnobrega, o pop, a música eletrônica, o reggae etc. salvam e dão sentido às vidas – para a cultura. Esse é o espírito do Quebramar, que tem ainda muito a crescer e aparecer, sobretudo se crescer e aparecer focado nas vidas que ele mesmo salvou, salva e salvará. Como o outro cara falou, os amapaenses (como qualquer um de nós) são os únicos representantes do sonho deles na face da Terra.
Quebramar
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