Tantas palavras

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1966

1966 2 Chico Buarque de HollandaEstava à toa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar cantando coisas de amor. Ela e seu tricô, ela e sua janela, espiando, esperando. Manhã, parece, carece de esperar também. Juca foi autuado em flagrante como meliante, pois sambava bem diante da janela de Maria. O delegado é bamba na delegacia, mas nunca fez samba, nunca viu Maria.

A gente estancou de repente, ou foi o mundo então que cresceu. A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega Carolina e carrega o destino pra lá. Ela desatinou, viu chegar quarta-feira, acabar brincadeira, bandeiras se desmanchando. Eu bem que mostrei sorrindo pela janela, ói que lindo, mas Carolina não viu. O pessoal se desaponta, vai pro mar, levanta vela.

1970 1 Per un Pugno di SambaAgora falando sério: eu queria não cantar a cantiga bonita que se acredita que o mal espanta. Dou um chute no lirismo, um pega no cachorro, um tiro no sabiá. Dou um fora no violino, faço a mala e corro pra não ver banda passar. Eu queria não mentir, driblar, iludir. Quer saber o que está havendo com as flores do meu quintal? O amor-perfeito traindo, a sempre-viva morrendo e a rosa cheirando mal. Agora falando sério: preferia não falar nada. Tem certos dias em que eu penso em minha gente e sinto assim todo meu peito se apertar. Na gente deu o hábito de caminhar pelas trevas.

Ninguém, ninguém vai me segurar. Ninguém, ninguém vai me sujeitar. Eu não vou renunciar. Fugir. Ninguém, ninguém vai me acorrentar enquanto eu puder cantar. Quem tiver nada pra perder vai formar comigo um imenso cordão. Quero ver o vendaval. Quero ver o carnaval. Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar (apesar dele, amanhã há de ser.)

Reclamei. Baixinho. Dei pra maldizer o nosso lar, pra sujar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço, te adorando pelo avesso.

1972 Quando o Carnaval ChegarQuando eu canto que se cuide quem não for meu irmão. O meu canto, punhalada, não conhece o perdão. Eu odeio, eu adoro, numa mesma oração, mammy. Nem quero saber como se dança o baião. Tô me guardando pra quando o carnaval chegar. Hoje é o dia da graça. Hoje é o dia da caça e do caçador. Eu semeio vento, vou pra rua e bebo a tempestade. Brinque com meu fogo, venha me queimar. Aja duas vezes antes de pensar. Correndo no escuro, pixado no muro, você vai saber de mim: mambembe, cigano, debaixo da ponte, cantando por baixo da terra.

1973 Calabar - Chico CantaOlha o fogo. Cala a boca! Cala a boca, Bárbara! (Cale-se, pai!) Não existe pecado do lado de baixo do Equador. Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor. Me deixa ser teu escracho. Vem comer, me jantar. Quando é lição de esculacho, olha aí, sai debaixo, que eu sou professor. Me usa, me abusa, lambuza, que a tua cafuza não pode esperar. Tira as mãos de mim, põe as mãos em mim. Vence na vida quem diz sim. Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora. Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal. Minha fortaleza é de um silêncio infame, a minha represa (pode ser a gota d’água). Eu sou embaixador.

Acorda, amor! Eu tive um pesadelo agora! Sonhei que tinha gente lá fora, minha nossa santa criatura. O delegado é bamba na delegacia, mas chame o ladrão! Numa festa imodesta como esta, vamos homenagear todo aquele que nos empresta sua testa construindo coisas pra se cantar: viva aquele que se presta a esta ocupação!, salve o compositor popular! Eu não gosto de passar vexame.

Tem nada como um tempo após um contratempo. Você não gosta de mim, mas sua filha gosta. Tem nada como um dia após o outro dia.

A roupa suja da cuja se lava no meio da rua. Despudorada! Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo que amava Juca que amava Dora que amava… Carlos amava Dora que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha.

1976 Meus Caros AmigosO que será que será que andam suspirando pelas alcovas? Tantas águas rolaram. Quantos homens me amaram bem mais e melhor que você. Você vai me servir, você vai se curvar. Você vai resistir, mas vai se acostumar. Você vai me agredir, você vai me adorar, você vai me seguir aonde quer que eu vá – e vem me seduzir, me possuir, me infernizar. Você vai me trair, e eu vou consentir, você vai conseguir enfim me apunhalar. Vem me ninar. O que será o que será o que não tem censura nem nunca terá? O que não faz sentido?

1977 Miúcha & Antonio Carlos JobimMesmo com toda fama, com toda Brahma, com toda cama, com toda lama, a gente vai levando. Mesmo com todo rock, com todo pop, com todo estoque, com todo ibope. Agora eu era o Rei, era o bedel e era também juiz. Se lembra da jaqueira? Os passos no porão? Lembra da assombração? Se lembra do jardim, ó, maninha, coberto de flor? Pois hoje só dá erva daninha no chão que ele pisou. A gente vai levando, querendo acreditar que o dia vai raiar só porque uma cantiga anunciou. Um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar.

Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me dano. Quero lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado. Esse silêncio todo me atordoa. Mesmo calada a boca, resta o peito. Silêncio na cidade não se escuta. De muito gorda, a porca já não anda (cale-se!). Como é difícil, pai, abrir a porta, essa palavra presa na garganta. Mesmo calado o peito, resta a cuca. Quero inventar o meu próprio pecado. Quero morrer do meu próprio veneno (hoje você é quem manda, falou, tá falado, não tem discussão). Já murcharam a tua festa, pá, mas foi bonita a festa, pá.

(Eu pergunto a você: onde vai se esconder da enorme euforia?, como vai proibir quando o galo insistir em cantar? Inda pago pra ver o jardim florescer qual você não queria.)

1979 Ópera do MalandroSe tu falas muitas palavras sutis, se gostas de senhas, sussurros, ardis, a lei tem ouvidos pra te delatar – a lei te vigia, bandido infeliz. Te pregam na cruz, depois chamam os urubus. Se tiveres renda, aceito uma prenda, qualquer coisa assim. Eu sou sua alma gêmea, sou sua fêmea, seu par, sua irmã. Eu sou seu incesto. Sou igual a você. Eu nasci pra você, eu não presto. Eu sou cria da sua costela, sou bandida. Joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir.

Vida, minha vida: olha o que é que eu fiz… Não é por estar na sua presença, meu prezado rapaz, mas você vai mal – mas vai mal demais. Deixa a morena contente, deixa a menina sambar em paz. Bye-bye, Brasil, a última ficha caiu, eu vi um Brasil na TV. Não sonho mais.

Arrasa o meu projeto de vida, espinho cravado em minha garganta – a santa às vezes troca meu nome. A Rosa. A Rita.Egípcia, me encontra e me vira a cara, odara, a falsa, ópera, operária.

1981 2 Os Saltimbancos TrapalhõesOnde quer que esteja, meu caro barão, São Brás o proteja, o santo dos ladrão. Vem, excelência, nos visitar, estamos sempre noutro lugar. Dizem que virgula, aspas, travessão – coisa ridicula. Pronto. Ponto. De interrogação?

O gosto amargo do silêncio em sua boca vai te levar de volta ao mar e à fúria louca.

Deus, eu pensei que fosse Deus, e que os mares fossem meus – como pensam os ingleses. Eu pensei que fosse mel. Eu julguei que fosse meu.

Procurando bem, todo mundo tem pereba – só a bailarina que não tem.

1984 Chico BuarqueAndo com minha cabeça já pelas tabelas. Claro que ninguém se toca com minha aflição. Te perdoo por fazeres mil perguntas que em vidas que andam juntas ninguém faz. Te perdoo por contares minhas horas nas minhas demoras por aí. Te perdoo por te trair. Mas vai passar, ao lembrar. Dormia, distraída, subtraída, em tenebrosas transações, uma ofegante epidemia. Palmas pra ala dos barões famintos – e os pigmeus do bulevar.

Vida veio e me levou. Civilização, encruzilhada, cada ribanceira é uma nação. Eu posso vender. Quanto você dá? Deixe algum sinal. Festas acabada, músicos a pé, muzicuzapé.

Bia falou “ah, claro que eu vou”. Clara ficou até o sol raiar. Dadá também saracoteou. Didi tomou o que era pra tomar (babado!). Monsieur Dupont trouxe o dossiê. Pelé pintou, só que não quis ficarQuem não viu jamais verá, mas se você quiser saber a Warner gravou e a Globo vai passar. O JB fez a crítica, a Macintosh entrou com o vatapá, a Sanyo garantiu o som e o Carrefour topou patrocinar.

Para um coração mesquinho, contra a solidão agreste, Luiz Gonzaga é tiro certo, Pixinguinha é inconteste. Use Dorival Caymmi, fume Ary, cheire Vinicius. Tome Noel, Cartola, Orestes, Caetano e João Gilberto. Viva Erasmo, Ben, RobertoGil e Hermeto. Foi Antonio Brasileiro quem soprou esta toada que cobri de redondilhas pra seguir minha jornada. Evoé, jovens à vista.

1993 Paratodos

(© paratodos)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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3 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns Pedro, por este mosaico das belas e sublimes letras de canções de Chico Buarque. Não é por um palpite infeliz, numa hora errada, que vamos confudir o compositor magistral que ele demonstrou em mais de 40 anos de carreira com uma discussão que ele já sabe perdedor.(Ver entrevista na Folha de hoje).

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