Em entrevista exclusiva, Juca Ferreira, secretário de Cultura de SP, fala da nova Virada Cultural, do #existediálogoemSP (foto) e de “mudar a autoimagem” da metrópole.

 

Era uma vez o neoliberalismo  cultural em São Paulo. Juca Ferreira, 64 anos, o novo secretário de Cultura do maior município do país, não emprega esse termo em nenhum momento das quase duas horas de entrevista a FAROFAFÁ. Mas é possível ler no interior de várias de suas respostas uma crítica aberta à privatização desenfreada do espaço pública a que a cidade esteve exposta por muitos anos até a eleição do petista Fernando Haddad como novo prefeito da cidade. Daqui para frente, promete Juca, tudo será diferente.

Baiano que vinha morando na Espanha, e chegou a São Paulo na virada deste ano, Juca toca nesse tema ao fazer um primeiro diagnóstico sobre que demandas vê expressas nos rostos e anseios dos paulistanos em sua chegada. Afirma que os habitantes da cidade estão ansiosos por conviver. Diz que o crescimento desordenado das grandes cidades do país “desqualificou, esvaziou e em alguns casos chegou a criminalizar o espaço público”.

Para tecer essa e outras considerações, Juca se vale do que aprendeu no primeiro evento público que sua secretaria promoveu, no dia 5 de fevereiro passado, na Sala Adoniran Barbosa do Centro Cultural São Paulo (CCSP). O encontro foi batizado #existediálogoemSP, assim mesmo, em formato de hashtag de Twitter, e atraiu cerca de 2 mil agentes culturais paulistanos, num debate que promete se tornar constante e corriqueiro na gestão de “gabinete aberto” proposta pelo secretário.

Há experiência antecedente para isso, de quando Juca foi ministro da Cultura do Brasil, entre 2008 e 2010, no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, após ter sido, desde 2003, chefe de gabinete do primeiro ministro lulista da Cultura, Gilberto Gil. Para sua surpreta e satisfação as conferências promovidas pelo Ministério da Cultura (MinC) de Lula  envolveram 200 mil brasileiros e 80% dos municípios do país. Após a posse de Dilma Rousseff, enquanto Ana de Hollanda desconstruía o legado Gil-Juca, esse ex-exilado político da ditadura de 1964 exerceu cargo diplomático como coordenador da Secretaria Geral Ibero-Americana, em Madri. Volta agora, a convte de Haddad, sob promessa, revalidada no #existediálogoemSP, de voltar a zelar pelas periferias geográficas e culturais da cidade, em grande medida marginalizadas pelas gestões de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD).

Classifica o #existediálogoemSP como “um gesto civilizatório”,  e enquanto olha de soslaio, no gabinete, para os filhos Vicente, adolescente, e Rafael, de 2 anos, deixados ali enquanto a mãe, Celina, vai ao cartório cuidar de detalhes da mudança da família para São Paulo. “O combate ao crime e ao tráfico jamais pode ser extensivo à população de trabalhadores que moram nos bairros de periferia”, soma, tratando do paroxismo da privatização recente dos espaços públicos paulistas e paulistanos, que tem chegado, no campo cultural, ao extermínio físico de jovens artistas de funk e hip-hop.

Egresso do Partido Verde e filiado ao Partido dos Trabalhadores há um ano, Juca, que em entrevista anterior a FAROFAFÁ se autodefiniu como “um velhinho de esquerda”, ri do apelido que adquiriu ainda no PV, “melancia”, porque seria “verde com preocupações sociais”. Por esses dias (a entrevista ocorreu na tarde da sexta-feira pós-carnaval), está às voltas ainda com os blocos de rua de São Paulo, que pretende fomentar, e com a Virada Cultural programada para maio próximo, que a atual gestão manterá e para a qual sonha um ato fixo de abertura, composto como um desfile de manifestações populares do estado de São Paulo e do Brasil. Juca proclama a criação de um programa de eventos dispersos pelo ano todo, que circunscrevam a crítica recorrente de que toda a cultura oficial do município vinha se detendo às 24 horas de programação intensiva da Virada. Esboça a ativação de parcerias privadas, já a partir deste ano, para engordar o orçamento do evento. E, resistindo a críticas também recorrentes, defende e promete continuar a fixação do evento no centro da cidade, para ele tão marginalizado quanto as periferias.

Leia a seguir a entrevista exclusiva concedida por Juca a FAROFAFÁ, numa demonstração a mais dos propósitos do secretário, de democratizar o acesso à vivência cultural na cidade de São Paulo, seja sob critérios geográficos ou simbólicos, territoriais ou virtuais. A entrevista e o rol de assuntos são extensos, e FAROFAFÁ se permite apontar, por intermédio de alguns trechos coloridos, temas e afirmações do secretario que consideramos cruciais, e que, a nosso ver, merecem atenção especial de nossos leitores.

Juca Ferreira fala no encontro #existediálogoemSP, secundado por seu chefe de gabinete, Rodrigo Savazoni

 

Pedro Alexandre Sanches: Qual foi o significado simbólico e concreto do encontro #existediálogoemSP?

Juca Ferreira: Olhe, desde que cheguei em São Paulo, a grande maioria das pessoas que me encontram, porque são da área cultural ou não, tem chamado atenção para a necessidade de estabelecer um diálogo amplo e profundo para desenvolver as políticas culturais da cidade. Muitos diziam: “Não existe diálogo em São Paulo”, “é preciso existir diálogo em São Paulo”. Aí me inspirei na música do Criolo e em toda a reação que a cidade teve a ela. A música é “Não Existe Amor em SP”, mas a cidade fez manifestações chamadas “Existe Amor em SP”. Ou seja, ele estimulou uma coisa positiva, que é o reconhecimento da importância do afeto, das relações humanas, da convivência na cidade. Aí eu embarquei nessa viagem aí e fui na mesma linha. O formato de hashtag já foi a contribuição de Rodrigo (Savazoni, jornalista, militante em cultura digital e seu chefe de gabinete), na linguagem em que ele é fera.

Eduardo Nunomura: Qual foi o saldo que o sr. tirou daquele encontro?

JF: Muito positivo. Primeiro, simbolicamente, estabeleci o diálogo. Está estabelecido. Segundo, foram em torno de 2 mil pessoas, num espaço para 800. Eram as 800 que cabiam no teatro, mais uma sala ao lado com telão e mais o hall lotado da Sala Adoniran Barbosa. Fora a internet, que transmitiu ao vivo. As pessoas ali, de uma forma dispersa, colocaram muitas questões na mesa. Artistas e produtores culturais da periferia demandaram um atendimento mais qualificado por parte da prefeitura e denunciaram repressão policial aos rappers e funkeiros. Foi recorrente a demanda de que os CEUs (Centros Educacionais Unificados, projeto criado na gestão da prefeita Marta Suplicy, de 2001 a 2005) fvoltem ao seu projeto original de ser instrumento pedagógico, mas ao mesmo tempo um equipamento cultural da comunidade. Foi mencionada a necessidade de se revisitar as políticas de fomento, mas sempre que alguém falava demonstravam-se avaliações muito distintas, umas positivas e outras negativas. Teve uma hora que eu disse: olha, está na cara que vai ser preciso discutir as leis de fomento, porque, apesar da experiência ter sido positiva,  essa divergência que está se manifestando significa que a questão precisa ser aprimorada. Ficou claro que a Virada Cultural tem uma avaliação positiva. Algumas pessoas acham, eu nem concordo, que a Virada devia ir para a periferia. Eu acho que é um evento que, expliquei lá, deveria fazer parte de um programa de eventos da cidade. Não pode colocar tudo dentro da Virada, senão ela perde consistência, perde o conceito.

PAS: O sr. é contra levá-la para a periferia?

JF: Acho que a ideia de concentrar no centro é positiva. É um evento no qual a cidade vem para o centro. Permite a convivência de segmentos que quase nunca convivem. Em cidades litorâneas, a praia funciona como uma compensação para a divisão de classes. Todos se encontram na praia, e ali se estabelece uma convivência. No carnaval também. Aqui, o carnaval de rua ainda não se consolidou, então não há muito esses espaços e momentos de convivência, e a Virada acabou se constituindo como algo desse tipo. São em torno de 2 milhões de pessoas concentradas no centro. Nem é bom isso.

PAS: Havia a expectativa de que um governo petista democratizasse mais o acesso, rumo às periferias.

JF: O governo tem sensibilidade social e vai dar muita importância ao atendimento das demandas e necessidades da periferia. Mas você tem momentos de atendimento à população em geral, e momentos de atendimento à periferia. A Virada só se realiza se ela for esse momento de convivência, e o espaço ideal é o centro da cidade. Em qualquer cidade do mundo o centro tem uma função simbólica importante. As cidades brasileiras permitiram uma degradação dos seus centros. Agora nós fazemos o esforço inverso, de valorizá-lo. A saída para isso é gerar um programa de eventos durante todo o ano. A cidade tem mais de 10 milhões de habitantes, é hoje o maior destino turístico do Brasil. E é uma cidade carente de eventos. Tem datas já fixas, como o carnaval, mas podemos fortalecer o São João, ter momentos para segmentos específicos, transformar uma celebração das diversas colônias de migrantes daqui em um momento importante da cidade, como é em outras capitais do mundo que têm essa característica de ser cidades pluriculturais. Como há a Parada Gay, pode haver outras datas temáticas importantes. Pode-se criar um programa que se realiza uma parte no centro, outra na periferia. Aí a gente tem uma noção global de não ficar artificialmente tentando, com um evento, produzir o equilíbrio de todo o território.

PAS: O que o sr. faria de diferente do que tem sido feito, para promover um novo equacionamento centro-periferia?

JF: Temos que estender os serviços culturais para a periferia, através de centros culturais, CEUs, casas de cultura, compondo um sistema em que a periferia tenha acesso a bens e serviços culturais que outras regiões da cidade já têm. Há uma demanda recorrente nas periferias por cursos de formação associados a atividades culturais. Que a juventude que vive na periferia tenha possibilidade de se aprimorar em controle de linguagem ou em áreas técnicas ou até mesmo em gestão, que é outra dimensão importante para gerar um empreendedorismo na região. Vou reforçar uma experiência que nós criamos no MinC, dos Pontos de Cultura, dentro de uma estratégia de fortalecer o protagonismo cultural da sociedade. Tem muitos grupos culturais que precisam e demandam atendimento, criação da sua infraestrutura, da sua capacidade de intervenção, de qualificação.

PAS: Para quem não conhece, como funciona um Ponto de Cultura?

JF: Ponto de Cultura é uma atividade, um projeto cultural já existente, há no mínimo dois anos, que cumpra funções culturais. Podem ser atividades tradicionais, como samba rural, uma escola de samba, um grupo de capoeira, ou atividades ligadas a temas, como um clube de leitura. O importante é que uma dimensão cultural já exista para esses serviços culturais da comunidade, e que a contribuição do estado possa fazer com que eles ampliem e qualifiquem sua ação.

EN: Secretário, o sr. tem um orçamento limitado, e uma das questões colocadas é que as gestões anteriores concentraram muito a atividade da pasta apenas na Virada. Não deixando de fazer outras coisas, mas ficavam muito centradas na visão de marketing, da visibilidade que esse evento dá. O sr. pensa em modificar estruturalmente a Virada? No ano passado ela foi para 2 milhões de pessoas, o sr. pensa numa Virada menor? Pensa em diminuir o orçamento da Virada, ou em aumentar?

JF: O orçamento da Virada não é grande, vamos começar por aí. Tenho feito  reuniões de diálogo com segmentos, setores – já fiz com moda, cinema, grupos de periferia, blocos carnavalescos, teatro. Numa dessas reuniões, uma menina me disse: “É um absurdo, o sr. vai ter que modificar, se gastam R$ 73 milhões na Virada”. Não é verdade. O orçamento total da Virada é de R$ 7 milhões. Se forem 2 milhões de pessoas, você não gasta R$ 4 por pessoa na Virada, para um evento dessa dimensão, com essa repercussão.

PAS: É um evento barato, então?

JF: É um evento barato. Temos que ampliar a qualidade, a segurança, o conforto. Tem que garantir a presença de outras linguagens. Uma parte, se não me engano um quarto das pessoas que frequentam a Virada, vem de fora. Ou seja, além de gerar economia, há um fluxo turístico, um ganho para a cidade, porque vêm pessoas de fora para gastar. Então, por que ser contra um evento com essas características tão positivas? Não vejo como, nem há uma questão orçamentária aí. Então eu não acompanho muito essa crítica, o problema não é rebaixar o nível, é elevar o nível. É garantir qualidade e amplitude, desenvolver outras atividades que não sejam eventos. Por aí eu vou.

EN: O sr. pretende dar uma marca especial e particular à Virada?

JF: Não, não tenho intenção de criar marca. A marca acaba aparecendo como uma emanação do trabalho que é feito, mas eu não tenho essa demanda. Acho isso – vou usar o termo que passou na minha cabeça – careta. A gente não tinha nem um mês no MinC e foi uma jornalista francesa entrevistar Gilberto Gil. A mulher perguntou isso: “Qual é a marca que você vai deixar no ministério?”. Gilberto Gil de início não entendeu, “marca?”. “Marca, a imagem que ficará da sua gestão.” Ele disse: “Minha senhora, eu já tenho minha marca pública, não vim aqui para fazer marca, vim para fazer um trabalho cultural”. “Não, mas diga uma marca”. Ele disse: “Abrangência”. Não vou lhe dar uma resposta à la Gil, que você vai ter que passar duas horas pensando qual é o significado (risos), mas ele tinha razão. O que nós fizemos? Não nos concentramos em uma coisa. Assumimos a responsabilidade de tratar do conjunto das questões que envolvem uma área tão complexa como é a cultura. Marca não é um conceito que vai organizar nosso pensamento na hora da gestão. A não ser que eu repita que é a abrangência, aí eu estaria respondendo.

PAS: O sr. recebe da gestão anterior um orçamento definido para este ano, e menor que os dos anos anteriores. Dentro desse orçamento está estipulado quanto vai para a Virada? Isso pode ser modificado?

JF: A Virada tem um recurso próprio, de R$ 7 milhões. Vamos nos manter na questão da Virada, que ainda têm coisas. Estou com uma ideia de fazer uma abertura com manifestações populares do estado de São Paulo, do Brasil e no futuro até trazer, ser um grande desfile de manifestações populares abrindo a Virada. A gente vai fazer modificações. Primeiro, vamos criar uma curadoria colegiada. Em vez de ser uma pessoa definindo o perfil da Virada, a gente quer trazer um conjunto de pessoas.

PAS: Antes era só uma pessoa?

JF: Era uma pessoa. Agora vamos ter uma curadoria colegiada, com pessoas que tenham condições de agregar valor ao planejamento da Virada. Era uma pessoa, que fez um trabalho hercúleo. O que foi inventado hoje é um patrimônio da cidade, a gente tem que reconhecer isso. Muita gente critica, porque tudo é passível de crítica.

PAS: Parece necessário um debate para definir uma programação tão abrangente, não?

JF: É, também me surpreendeu. Mas me surpreendeu mais o fato de o gasto com a Virada não ser nem R$ 4 por pessoa. Lá de longe eu via muita gente repercutir em jornal, “está se gastando uma fortuna  num evento de 24 horas”, mas na verdade não é tanto assim. Feliz da cidade que pode fazer um evento dessa qualidade gastando menos de R$ 4 por pessoa que estará presente.

PAS: Essa pessoa que dirigia o evento (José Mauro Gnaspini, formado em direito pela USP, ex-diretor da Virada Cultural) continuará na curadoria?

JF: Continuará, será um dos curadores. A gente sabe que a música é o carro-chefe da atração desses 2 milhões de pessoas, mas vamos fortalecer a presença de outras linguagens, o que já existe, mas é embrionário. Estamos pensando em discutir com os gestores dos nossos equipamentos de eles abrirem com programações específicas nesse dia.

EN: Os da periferia também, ou só do centro?

JF: Não, do centro. Eu disse que a gente acha que a opção pelo centro é correta, nesse evento. Nesse evento.

PAS: Havia programação nos CEUs, por exemplo.

JF: Chegaram a fazer, mas há uma dispersão. Descaracteriza a natureza do evento.

PAS: Uma coisa que poderia mexer com a cidade seria levar artistas de expressão nacional para espaços na periferia, motivando a população a circular lá.

JF: Sim, nós vamos fazer isso, mas em outros momentos. Não precisa ser nesse momento.

PAS: E quanto ao orçamento menor para 2013? Por que aconteceu isso?

JF: Caiu de 1,3% para 0,9%. Isso são as opções que foram feitas no ano passado, pelo governo anterior. Aí, só perguntando a quem estava aqui.

PAS: Pela expectativa de chegar um novo secretário?…

JF: Talvez, quem sabe, não sei. Seria especulação. O Executivo manda o orçamento para a Câmara, a Câmara aprova ou modifica. Eu não conheço a história do orçamento, só vi a trajetória e vi que depois de dez anos houve uma queda razoavelmente grande. Outra coisa que estou pensando em relação à Virada é a possibilidade de financiamentos, mas com administração muito rigorosa de presença de marca, para não desfigurar o evento. Vai requerer uma tecnologia que nós ainda não temos, mas há eventos de cultura no Brasil que administram bem a presença de marca. O que isso possibilita? Que a gente crie um fundo para os eventos da Prefeitura e possa fazer essa série de eventos que se tenha.

EN: Isso vai acontecer já nesta próxima Virada?

JF: Vou tentar já nesta. Já tem ofertas de patrocinadores. Acho que não vai ser um problema. O sucesso e a força da Virada são tão grandes que o problema não é conseguir quem queira financiar. É administrar as marcas para que não ganhem uma característica negativa, de aparentar que é um evento privado, quando não é, e não será. É um evento público que terá uma programação pública. Mas tudo que é bom tem quem queira contribuir.

EN: Notamos, no #existediálogoemSP, que havia uma disputa pelo orçamento.

JF: É normal, isso é no mundo inteiro. O dia mais importante dos Estados Unidos é o dia que define o orçamento da república.

EN: Ali era como se fosse assim: temos a possiblidade de conversar com o secretário de Cultura e vamos conversar sobre o que nos interessa. Pessoas que têm um orçamento já garantido ou em vias de ser garantido e outras que estão com medo de perder.

JF: Ou que nunca tiveram. Tem os que nunca tiveram.

EN: Sim, os que nunca tiveram e estão pleiteando. Eu queria entender essa lógica. É uma disputa de cobertor curto, não dá para cobrir, o orçamento já está menor que nos anos anteriores. O sr. já tem a má notícia?, a dar a quem?

JF: Não, não existe isso, deixe eu explicar. Cobertor é um objeto físico que tem uma certa dimensão para cobrir um outro corpo físico que tem uma dimensão. Quando ele é curto, não tem o que fazer, porque se puxa para cima o pé fica de fora e se puxa para baixo o tronco fica de fora. No caso de orçamento, pode-se fazer uma melhoria de planejamento, uma definição de um sistema municipal de cultura que cubra todo o território, através de planejamento, de uma divisão generosa e abrangente, da definição de um sistema de captação. Uma política cultural de prefeitura não pode viver só do seu orçamento. Já estou dialogando com o MinC, com o governo do estado, vou dialogar com as empresas que patrocinam atividades culturais. Vou dialogar com os institutos de fundações privadas para fazemos parcerias. Não é uma coisa sólida, que você possa medir com a régua. À medida que você melhora o planejamento e tem uma política cultural abrangente e generosa, tem mais condições de atender, como fizemos no ministério.

PAS: Eu ia perguntar isso, o sr. trará essa experiência adquirida no ministério?

JF: Nós fizemos o milagre dos peixes lá. Entramos, não tinha dinheiro para nada. O orçamento era R$ 287 milhões, já dez anos.

PAS: Então era menos que o da cidade de São Paulo hoje.

JF: Era menos. E nós pulamos para R$ 2,3 bilhões. Foi crescendo paulatinamente, na medida que a cultura foi ganhando importância.

EN: O sr. acredita que em São Paulo vai acontecer isso também?

JF: Acho, claro. O prefeito é uma pessoa comprometida com a cultura.

PAS: O sr. disse, no #existediálogoemSP, que Haddad teria se comprometido a chegar a 2%.

JF: É isso, ele disse que o fortalecimento da cultura no governo é um compromisso de campanha.

EN: Além da questão de recursos orçamentários, em que cada um quer pegar um pedacinho do dinheiro, há também uma disputa do tipo “nós queremos manter os recursos que já temos”,. Outros querem pleitear recursos que não têm. Por trás disso há uma discussão sobre quem estava sendo mais beneficiado e quem estava sendo menos beneficiado pela gestão anterior. O sr. vai mudar essa estrutura, ou ela vai ser mantida?

JF: Olhe, deixe eu lhe dizer qual é a lógica. Nós encontramos uma situação muito melhor que a que encontramos no MinC. Lá encontramos pouca coisa, aqui não. Aqui há leis de fomento, equipamentos que cobrem já uma parte do território da cidade, alguns equipamentos com programação de qualidade, muitos já recuperados. O último secretário (Carlos Augusto Calil) se dedicou a uma recuperação desses equipamentos. Boa parte deles está em bom estado. Então o que a gente vai fazer? Um planejamento georreferenciado, ver no território da cidade onde há ausências por parte da Prefeitura. Essas áreas serão olhadas com mais carinho, com mais determinação. Em geral essas áreas são na periferia. Olhe, se a gente abre aqui o mapa dos equipamentos (apanha um traçado da cidade que demarca todas as instituições pertencentes à Prefeitura), você vê que há uma concentração muito clara. É evidente que é preciso cobrir as áreas que não têm equipamentos culturais. Outra coisa é que a cidade é carente de políticas culturais. Tem equipamentos, mas não tem políticas culturais. Nós temos 50 e tantas bibliotecas, mas não temos política de leitura. Não há um Plano Municipal de Livro e Leitura. É inclusive uma demanda da lei federal, que os estados tenham seus planos estaduais de Livro e leitura e os municípios tenham seus planos municipais. Esses planos de leitura ultrapassam os limites geográficos das paredes das bibliotecas, porque desenvolvem políticas de estímulo.

PAS: Esse mapa não é o próprio retrato da exclusão social do Brasil? Há uma altíssima concentração de equipamentos na região central, e na periferia sul da cidade, por exemplo, só existem dois pontinhos.

JF: É isso. E, se você for ver os equipamentos, vê que o pouco que escorrega é casa de cultura e biblioteca.

PAS: Mudar essa lógica tem a ver com o Arco do Futuro, que foi uma das principais promessas da campanha de Haddad, não?

JF: Claro, o diagnóstico já está feito pelo prefeito, que em campanha prometeu que seu governo vai ser caracterizado por estender os serviços da Prefeitura, garantindo direitos e oportunidades iguais para todos. Nós vamos fazer isso. Ao nível de políticas setoriais, há áreas que não têm atendimento nenhum, e a gente pretende dar atendimento. Tem várias áreas que vamos trabalhar no sentido de sempre buscar equidade.

PAS: Juca, somando o que Eduardo perguntou com a minha primeira pergunta, quando se propõe um #existediálogoemSP, na prática vocês estão chamando para o debate uma série de atores que estavam fora dele. É uma atitude política explícita, não? Quem estava fora?

JF: Na verdade não havia o diálogo, vamos falar claro.

PAS: Havia o diálogo de gabinete, com grupos privilegiados que tinham acesso a ele. Vocês falam muito em “gabinete aberto”.

JF: Nós vamos fazer uma negociação aberta, pública, à luz do dia, para pactuar o uso dos recursos, a natureza das políticas, os benefícios que elas trarão. E como a gente vai materializar isso? Todo esse diálogo vai convergir para algumas direções. Uma é para a elaboração do Plano Municipal de Cultura, que é uma demanda da Constituição que a cidade de São Paulo não fez. É preciso fazer, nós estamos inadimplentes. Vai chegar um momento em que a gente não vai poder ter acesso a recursos federais se não tiver esse Plano Municipal de Cultura. É assim que está planteado na Constituição.

PAS: Isso aconteceria por meio de conferências, como o MinC fez, por exemplo, para elaborar uma nova Lei do Direito Autoral?

JF: Sim. No MinC nós envolvemos mais de 200 mil pessoas em conferências. Mais de 80% dos municípios do Brasil participaram, eu me surpreendi com o interesse.

PAS: A ideia é trazer essa experiência para São Paulo?

JF: É trazer essa experiência e desenvolver. Vamos elaborar um Plano Municipal de Livro e Leitura. Vamos trabalhar uma política para o cinema e o audiovisual, para o teatro, a dança. É nesse processo que vai se estruturando uma política municipal de cultura, com suas políticas setoriais, temáticas.

EN: São Paulo deixou de pegar recursos federais? Na campanha, Haddad falou sobre isso em relação a creches, dizendo que São Paulo tinha dinheiro federal para construí-las, mas não foram construídas porque o município não cedeu os terrenos. Na área cultural havia dinheiro federal disponível que não foi utilizado?

JF: Tem. O município diz que houve uma má vontade do governo federal em disponibilizar, mas parece que houve também uma dificuldade do município em cumprir todas as exigências de um sistema que está sendo estruturado nacionalmente.

PAS: Seria uma má vontade de ambas as partes, por pertencerem a partidos diferentes?

JF: Não sei se é má vontade ou falar em linguagens distintas.

EN: Existe a conta de quanto existe disponível e já se pode trazer para São Paulo?

JF: Não, a conta não existe, mas já acertamos reuniões com o governo federal. Vamos estruturar isso. Além disso, montar sistemas de parcerias público-privadas. A mesma importância que demos no plano federal vamos dar aqui em criar um sistema de financiamento.

EN: O sr. já conhecia São Paulo? Como está tomando pé da situação da cidade?

JF: Já conhecia, tenho uma filha que mora aqui há quase 20 anos. Já fiz curso de cinema aqui. Não cheguei a morar.

PAS: Qual é o impacto deste primeiro mês?

JF: Primeiro, o seguinte: não sei se eu mudei a percepção, mas é uma cidade afável, as pessoas são gentis.

PAS: Gentis com um secretário de cultura?

JF: Não, na rua, no supermercado, onde ninguém sabe quem eu sou. Na rua as pessoas são gentis, dão informação. Dizem fora de São Paulo que paulista não para para dar informação. Eu não constatei isso. As pessoas param, inclusive de forma muito simpática. É uma cidade afável, civilizada, que tem já uma experiência de convivência de milhões de pessoas. Deixe eu ver mais o quê. Sim, a oferta cultural é a melhor do Brasil.

EN: As suas experiências anteriores eram muito mais no centro expandido, não? Qual é o olhar que o sr. tem hoje da periferia?

PAS: Já foi para lá?

JF: Já fui, e tem já uma programação aí. A chamada periferia expandida da cidade tem uma vida cultural muito maior do que se imagina. São atividades culturais, grupos de leitura, bibliotecas, saraus, hip-hop, capoeira, audiovisual.

PAS: Nós visitamos uma vez um Ponto de Cultura em Heliópolis, tinha lá a placa de inauguração por Luiz Inácio Lula da Silva e Gilberto Gil, mas não tinha uma sede propriamente dita, e eles entre outras coisas promoviam um baile black sem álcool para jovens da comunidade. Comecei a entender melhor o conceito de Ponto de Cultura ali.

EN: Numa mesma noite havia seis festas públicas nas ruas.

PAS: Tinha show de Almir Guineto ao vivo, na rua, de graça.

JF: Estive aqui com grupos culturais da zona sul, fiquei impressionado com a diversidade de atividades: poetas, escritores, grupos de incentivos à leitura.

EN: O sr. percebe que eles, sem equipamento cultural, sem recursos oficiais, estão fazendo cultura da forma que podem, e de forma criativa? Desta vez a Prefeitura vai chegar lá e oferecer mais a eles?

JF: Os Pontos de Cultura são um reconhecimento disso, que tem uma origem remota numa constatação de Aloísio Magalhães, aquele cara que desenhava o dinheiro do Brasil. Ele ia ser o primeiro ministro da Cultura do Brasil, no final da década de 1970, início da de 1980, foi o cara que colocou a ideia da necessidade do Ministério da Cultura, começou a desenvolvê-la (no antigo Ministério da Educação e Cultura), mas adoeceu e foi substituído pelo general Rubem Ludwig, que foi o cara que encaminhou os primeiros passos da existência do MinC. Por coincidência, eu fui à primeira reunião. Ele dizia que em muitas cidades brasileiras o verdadeiro centro cultural é embaixo de uma árvore. É ali que os artistas se reúnem, intercambiam informação, mostram suas produções. Ele estimulava um olhar não muito institucionalizado para perceber que os fluxos e processos culturais necessitam de equipamentos, mas acontecem mesmo quando não há equipamento. Isso é no Brasil inteiro. A gente, quando foi para o MinC, percebeu que podia ajudar a avançar na medida que infraestruturasse esses processos culturais que muitas vezes não se aprofundam, não ganham uma qualidade superior porque não têm acesso a tecnologia, a meios, a equipamentos. São Paulo não é diferente do resto do Brasil nisso. Na periferia de Salvador, que conheço muito bem, há uma infinidade de grupos culturais de todas as naturezas que você pode imaginar. Encontrei no interior de Pernambuco uma orquestra sinfônica que tocava Villa-Lobos. Os alunos eram jovens que trabalhavam na agricultura.

EN: O sr. já percebeu que dentro da periferia paulistana existe um ambiente, não vou dizer de guerra, mas conflagrado, onde há repressão, onde as manifestações culturais são proibidas? O que o sr. pretende trabalhar para intervir nesse processo?

JFG: Primeiro, valorizar a cultura. Segundo, defender a tese de que não se joga o menino junto com a água suja da bacia. Quer dizer, se há a presença de traficantes em algumas atividades culturais é porque o traficante está presente no meio. Em qualquer atividade que acontecer ele estará presente, mas isso não nega o valor e a importância da atividade cultural. No Rio, por exemplo, chegou um momento, alguns anos atrás, antes das comunidades pacificadas, em que se proibiu o funk, porque “tem traficante presente nos bailes funk”.

PAS: Aqui a questão está ainda mais grave, há um extermínio de funkeiros, de rappers. O que um secretário de Cultura pode fazer a respeito disso?

JF: Primeiro, valorizar a cultura. Segundo, dialogar institucionalmente para que essa repressão não seja cega, burra e predatória, destruindo as estruturas culturais da população da periferia. Aumentar serviço, direito, oportunidade, em vez de aumentar opressão, repressão e violência.

EN: Parte da repressão é feita pela Polícia Militar. O sr. se compromete, como secretário, a ir conversar sobre isso com o governo do estado, com a PM, dizer que não tem sentido continuar reprimindo?

JF: Claro, é evidente. Vai chegar a hora desse diálogo.

PAS: São Paulo hoje está exatamente na contramão da imagem da árvore que o sr. usou. A gente vem de um período de repressão e criminalização de arte de rua, saraus, funk, hip-hop….

JF: Eu sei, daí o #existediálogoemSP. É o primeiro passo nessa direção. É um gesto civilizatório, no sentido de estabelecer uma relação saudável entre poder público e população. A população tem direitos, merece respeito, na periferia mora uma parte da cidadania da cidade que merece o mesmo respeito dos outros bairros. O combate ao crime e ao tráfico jamais pode ser extensivo à população de trabalhadores que moram nesses bairros.

EN: Particularmente no #existediálogoemSP, uma mulher falou que na periferia só existem postos de gasolina e funk. Como o sr. responderia a ela?

JF: Aí um outro disse: “Tudo de relevante nesta cidade está na periferia”. Ou seja, a periferia tem tudo e a periferia não tem nada. Depende do argumento e do ponto de vista que você diga.

EN: O que diz o baiano Juca Ferreira?

JF: Não é verdade que só existe posto de gasolina na periferia. Se ela está dizendo que não tem serviço público na periferia, ela está certa. Mas se está dizendo que não há vida cultural, não é verdade, porque boa parte dos artistas emergentes da cidade está vindo da periferia.

PAS: Implicitamente, esse tipo de argumentação quer dizer que manifestações populares como o funk não devem ser aceitas como cultura.

JF: Ou ela quer dizer que não tem nenhum equipamento ou serviço público, nenhum benefício por parte do poder público, para aquela população, que só tem acesso a posto de gasolina. Porque no posto de gasolina as pessoas se reúnem para tomar cerveja até tarde, ouvir música e conviver. Me chama a atenção como a cidade está demandando a possibilidade de convivência. Convivência é uma palavra-chave, aqui, para ler a demanda social de São Paulo. Todos querem conviver. O crescimento vertiginoso que a cidade teve nas últimas décadas esvaziou os espaços comuns, coletivos, públicos. Desqualificou, esvaziou, em alguns casos chegou a criminalizar o espaço público, como se você tivesse que sair da sua casa trancado dentro do seu automóvel, ir para um shopping ou para outro espaço fechado e voltar para casa. A cidade desaparece, dentro de uma percepção equivocada. Na verdade, aumentará a segurança quando a cidade tiver um nível de convivência maior, quando o espaço público for mais qualificado, quando houver negociações de ocupação dos espaços.

EN: O sr. falou de abrangência, mas convivência é outra marca que pode ser definida?

JF: Sim, fortalecer a convivência. Fortalecer a alegria também.

PAS: No #existesiálogoemSP o sr. falou muito sobre mudar a autoimagem de São Paulo. Como é isso? Precisamos de um baiano para fazer isso?

JF: São Paulo é conhecida pelo trabalho, e se orgulha disso. “São Paulo não pode parar”, “nós somos a locomotiva”, tem uma série de construções sobre a cidade que partem da ideia de que é uma cidade de trabalho. Mas já tem a maior noite do mundo, reconhecida inclusive em Nova York, em a gastronomia mais diversa do mundo, tem uma indústria de lazer consistente.

EN: Mas muito disso é privatizado, não?

JF: Sim, isso é outra coisa. Mas estou dizendo o seguinte: uma cidade não pode ser lida só pelo momento em que as pessoas estão trabalhando. Ninguém tem direito, no século XXI, de acreditar que o tempo livre é apenas para repor as energias para voltar a trabalhar.

PAS: O sr. viu na TV a propaganda política do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) durante o carnaval? Dava a entender que o carnaval é o tempo em que a gente para de trabalhar, mas que o trabalho é que é importante.

JF: Vi, o cara inclusive é baiano, é Benito Gama, um deputado que era muito ligado a Antonio Carlos Magalhães. Você vê que tem baiano para tudo (risos).

PAS: A propaganda do PTB soava como “não vão pular carnaval, fiquem quietinhos em casa”.

JF: E estipulou: “Voltem ao trabalho”. Mas a cidade está demandando uma mudança. Você viu o nível de participação fantástico do carnaval de rua em São Paulo neste ano? É incontrolável, é uma demanda social. A qualquer possiblidade de lazer as pessoas vão. O lazer é importante. O lazer é uma economia também, uma economia importante para a cidade. São Paulo está se tornando uma cidade pós-industrial, onde a economia criativa, a economia cultural, a economia do lazer cada dia vão ter importância maior. Não podemos ficar só nessa ideia fixa do trabalho, eu diria do trabalho sob o ponto de vista dos donos dos meios de produção, porque o trabalhador está mais para Tim Maia (risos) que para essa pregação de amor ao trabalho. Conhece aquela música que Tim Maia canta (cantarola, com voz grave), “eu não nasci pro trabalho…” (risos)?

PAS: Essa é do sobrinho dele, do Ed Motta

JF: Mas ele canta também.

PAS: Não…

JF: Claro, eu tenho gravado com ele, ouço milhões de vezes. Certeza absoluta, eu tenho no meu iPod, está lá Tim Maia cantando várias. Acho ele um dos grandes artistas brasileiros.

PAS: Mudar a autoimagem quer dizer o quê?

JF: É a cidade assumir que o lazer é parte da experiência social, é uma demanda e é muito bom economicamente em termos do equilíbrio energético das pessoas.

PAS: E é bom para os donos dos meios de produção, ou eles vão ficar contrariados com sua proposta?

JF: Talvez não seja bom para os mesmos. Quem fabrica automóvel é o trabalhador, sempre de prontidão para produzir mais automóveis para encher nossas ruas. Mas os donos de bares, teatros, gravadoras… É uma outra economia, que cresce independente do Estado, do poder público, da sociedade. Cresce porque é uma demanda social.

EN: São Paulo não se desenvolveu como potência cultural também em função dessa não-convivência?

JF: Não, de jeito nenhum. Eu diria que ela teria se desenvolvido mais se tivesse tido mais convivência.

EN: Os espaços públicos são poucos, os lugares são privatizados e os espetáculos, caros.

JF: Tem um blog aqui que vive de anunciar as atividades culturais de custo zero em São Paulo. Esse blog, é um blog importante, Catraca Livre, que está fazendo uma enquete…

PAS: Por coincidência, é do jornalista que perguntou se São Paulo precisava importar um baiano para a secretaria de Cultura, Gilberto Dimenstein.

JF: É uma mera coincidência (risos). Ele está fazendo uma enquete de quais são os artistas que o público quer na Virada. Sabe quantas pessoas já responderam? 300 mil pessoas. É uma consulta importante, que amplia nosso diálogo. Toda forma de diálogo é positiva. Mas deixa eu dizer, uma das vezes em que eu vim aqui para fazer um curso de audiovisual, fui algumas vezes ao Chic Show, no Palmeiras, que era um baile tremendo, à altura dos melhores bailes do Rio e da Bahia que eu conhecia. A moçada, classe média baixa e trabalhadores, desfilava o que havia de melhor de elegância e cultura, todo mundo na moda, alguns inclusive conectados com Nova York.

PAS: E o samba-rock, que é uma invenção paulista em grande medida, impulsionada por Jorge Ben quando ele morava aqui…

JF: O samba-rock, o funk. A população inventa. Você não encontrará comunidade humana, por mais pobre e miserável e oprimida que seja, que não produza cultura.

EN: Quando questionei da privatização, é indiscutível que São Paulo é um polo gastronômico mundial, por exemplo. Mas paga-se muito por isso.

PAS: É para os ricos.

EN: É para os ricos. Quando a Virada faz uma galinhada no Minhocão, a primeira consequência, depois da multidão que aparece, é dizer que “superdimensionamos”…

JF: Aqui se pode comer caríssimo, mas também pode-se comer barato e bem. A gente comeu domingo, num boteco, uma comida de primeiríssima.

EN: Secretário, a gente não vê o pessoal da periferia freqüentando o Teatro Municipal ou a Sala São Paulo. A convivência nesses espaços não existe.

JF: Sim, isso é outra coisa. Mas você, antes, disse o seguinte: foram essa inacessibilidade e essa não-convivência que geraram cultura. Eu digo o contrário: se tivesse tido convivência e acessibilidade maiores, a cultura seria muito mais forte. No dia em que todos frequentarem o Teatro Municipal, ou puderem frequentar, e forem quando quiserem, tiverem acesso a uma estrutura cultural pública sem depender de poder aquisitivo, o padrão cultural da cidade vai ser multiplicado. A equação é inversa. Apesar de todos os limites de acessibilidade, a cidade é muito rica culturalmente.

PAS: Como o sr. encaixaria nisso tudo o fato de a tropicália, um movimento liderado por artistas baianos, ter eclodido nesta cidade? A gente estaria voltando àquele momento com a sua presença aqui?

JF: Não. O que foi a tropicália? Foi mais que um movimento musical. Num momento muito específico da sociedade brasileira, da música popular brasileira, da arte brasileira, surgiu uma manifestação de quebra de parâmetros de bom gosto, uma demanda de modernização, de atualização da produção cultural brasileira, tendo a música como principal lastro. Mas tinha Helio Oiticica, Lygia Clark, Rogério DupratJulio Medaglia, os concretistas, muita gente, aqui e em outras áreas do Brasil. Tinha na Bahia o Seminário de Música, com Hans-Joachim Koellreutter

PAS: O disco-manifesto tropicalista foi gestado a poucos quarteirões daqui (a secretaria de Cultura fica na Galeria Olido, na avenida São João; Gil e Caetano Veloso moravam, respectivamente, na praça da República e na avenida São Luís).

JF: São Paulo é parte do Brasil. Quero chamar atenção e sublinhar isso o tempo inteiro. Não sei se vem da Revolução Constitucionalista, mas às vezes algumas pessoas daqui se apresentam meio de lado para o resto do Brasil. Um sentimento de superioridade, de distanciamento, de não-valorização, quando parte do que se expressa aqui vem de outros centros brasileiros, da Bahia, de Pernambuco, do Pará, até de outras partes do mundo. A vocação da cidade é essa, é uma cidade plural, capaz de transformar tudo num processo cultural. O tropicalismo foi um momento, hoje é outro momento. Estamos aqui tentando atualizar a estrutura cultural pública, para permitir que a cidade se atualize rapidamente. São Paulo é muito importante para ela mesma, para o resto do Estado, para o Brasil, para a América Latina, para o mundo. Não tem de ter uma relação meio de lado. São Paulo tem de correr para o abraço para o resto do Brasil. Há uma defasagem. Por exemplo, o pessoal da moda vem aqui e diz que a moda é um evento, ou alguns eventos, mas é também uma indústria. O pessoal do audiovisual vem e diz que o Rio está muito melhor do que a gente na área do cinema, na produção, no público, na promoção. Aqui não há um grande festival. Tem a Mostra, mas não tem um grande festival.

EN: O sr. pensa em fazer um festival de cinema em São Paulo?

JF: Eu penso, se a Mostra topar, em reforçá-la, já que é um evento consolidado e importante. E, se couber, agregar um festival que apresente o cinema de São Paulo, valorize a produção nacional e seja uma mostra internacional também, para fazer de São Paulo um centro cinematográfico.

PAS: Juca, coloquei a tropicália na conversa porque, lendo as suas entrevistas recentes para grandes jornais paulistanos, ali até se fala um pouco da periferia, mas parece que os grandes temas da cultura de São Paulo se restringem ao Masp, ao Teatro Municipal e à Sala São Paulo. Parece que São Paulo está ainda na era modernista, pré-tropicalista.

JF: Lina Bo Bardi participou do movimento tropicalista, então não é pré. Ela foi um esteio importante, conceitualmente, puxando para a arquitetura e para a visão de que a cultura popular é tão importante quanto a erudita, que as referências estéticas populares muitas vezes são sofisticadíssimas, então não há uma hierarquia. Lina foi uma referência para Gil, Caetano, Torquato Neto, Tom Zé. Como ela é a referência fundadora do Masp, então não diria que São Paulo é pré-tropicalista. Mas as questões que o tropicalismo propôs estão aí ainda.

PAS: O que estou tentando avizinhar é se você traz o tropicalismo de volta para São Paulo, se pertence a esse grupo.

JF: Não, não chego a ter um grupo.

PAS: Mas é mais tropicalista que modernista, não?

JF: Não. Eu só não gosto, no modernismo, de uma certa imposição de gosto. Já morei em duas casas modernistas, às vezes é desconfortável, porque ali pedominou um conceito estético sobre o funcional. Uma casa serve para se viver, e a dimensão estética tem que no mínimo dialogar, mas de preferência tem que emanar da função estética. Morei em Brasília também, é um projeto que revela a grandeza e a deficiência do modernismo. Acho Brasília um pouco excessivamente monumental e racional, o que em certos momentos dificulta a vivência urbana em seu interior. O projeto modernista tem algo de autoritário, que toda vanguarda tem. Toda vanguarda é autoritária.

PAS: O movimento Fora do Eixo é a vanguarda de hoje, a tropicália de hoje (ele ri)? O sr. é um incentivador, ou um fomentador do movimento, não?

JF: Não sou fomentador. Vejo as redes sociais como um fenômeno altamente positivo. Não sou dos que acham que a Primavera Árabe é conseqüência da cultura digital, nem da existência da internet, nem do celular conectado. É um exagero. Evidentemente o celular e a tecnologia digital aceleram os contatos humanos e possibilita que a insurreição tenha um nível de conspiração bem-sucedida na preparação das suas manifestações. Meu filho de 2 anos é um mestre, pega um celular, liga, sabe ir para o Skype, que não sei por que ele adora. Fala uma língua que ninguém entende, às vezes vejo amigos meus e pessoas com quem tenho só relação formal conectados no meu Skype, e foi ele que ligou. Liga e fica falando, e a pessoa: “Juca, Juca!” (risos). Aí saio correndo e desligo.

PAS: Isso vai dar confusão na secretaria, qualquer dia ele liga para a Ana de Hollanda…

JF: Meu Skype não tem o endereço eletrônico de Ana de Hollanda. Nem sei se ela tem Skype (risos). Mas o Fora do Eixo é, talvez, a rede social mais bem-sucedida, que começou como um grupo de produção cultural de eventos presenciais e teve ano que eles produziram mais CDs do que todas as majors do Brasil juntas. Depois se irradiaram pelo resto do Brasil, hoje têm conexões. O Fora do Eixo estava na Espanha, meus amigos espanhóis diziam que iam ter reunião com o Fora do Eixo. É porque lá tem um fenômeno muito semelhante, que é os Indignados, o 15M.

PAS: Há quem diga que o Fora do Eixo nomeou o secretário de Cultura de São Paulo.

JF: Não.

PAS: Do meu ponto de vista, vejo o contrário. É mais fácil achar que o ministério de vocês, seu e de Gil, fomentou movimentos como esse a vicejar.

JF: Acho que a nossa presença – do Gil, minha, de Alfredo Manevy, Marcos Souza e outros que tínhamos uma compreensão da importância da cultura digital e patrocinamos e estimulamos a cultura digital no Brasil – produziu uma velocidade maior na existência dessas redes. São muitas. A que mais cresceu é o Fora do Eixo. O ciúme é normal. Em toda atividade humana, o que mais cresce tem que considerar que virá um certo olhar atravessado dos que menos cresceram.

PAS: Como a tropicália recebeu em 1967?

JF: É, qualquer um que se mexer vai tomar tiro. A vida é assim. Os que não encontraram os caminhos de crescimento vão achar que houve algum privilégio indevido de quem cresceu. Faz parte até da incompreensão de por que ele não cresceu. Mas vejo como muito positiva a existência dessas redes sociais no Brasil. Vivenciei e vi de perto as redes sociais espanholas, que adquiriram na Espanha uma credibilidade maior que a Igreja, os partidos políticos, as Forças Armadas. Lá as manifestações tratam do desemprego, que na juventude chega a 50% e na população em geral a 30%. Tratam da crise econômica, da Comunidade Europeia, de porque a Comunidade Europeia beneficia mais a Alemanha do que países como Portugal e Espanha. Então estão polarizando algo que os partidos políticos não são mais capazes de fazer. Eles têm um pouco um sentimento antipartidário, mas acho que é daquela experiência que vai nascer uma renovação política da Espanha. Aqui é mais restrito o significado, se ateve a temas um pouco menos amplos, mas mesmo assim são depositários de uma renovação política enorme. Veja, por exemplo, Marina Silva, que está se movimentando para criar um partido político que represente uma ruptura com os anteriores, e a ideia foi chamar de Rede toda a movimentação de criação desse partido. Ou seja, qualquer renovação política passará inevitavelmente pelas redes sociais, porque elas foram capazes de representar o espírito da época.

PAS: O termo “fora-do-eixo” mexe com a configuração do mapa da cidade, com a exclusão social das periferias, com a dominação do eixo Rio-São Paulo.

JF: Mas mesmo no eixo Rio-São Paulo há um nível de exclusão de parcelas grandes da população, que não participam dos processos. Essa é uma novidade cultural do Brasil, essa emergência cultural que vem junto com o aumento do poder aquisitivo, particularmente a partir do governo Lula. Tem as consequências culturais de uma emergência cultural imensa. Vocês vejam os novos artistas brasileiros, quase todos vêm de experiências de periferias: Criolo, Emicida, Gaby Amarantos, os funkeiros todos, os blocos afro da Bahia, os pernambucanos quase todos. Há uma emergência no Brasil que ainda não está devidamente compreendida, e em São Paulo é muito forte. Percebo que há uma arte contemporânea muito forte, uma arte de rua muito forte aqui, atividades em várias linguagens se constituindo como saraus e novas sociabilidades culturais. Isso não está ainda nem compreendido e muitas vezes ainda é criminalizado. Por exemplo, saiu um artigo recente falando de uma decadência cultural do Brasil.

PAS: Do Mino Carta (na revista CartaCapital).

JF: Eu não acredito nisso. Acredito que o Brasil está emergindo com uma força vital incontrolável, múltipla, referências das mais diversas possíveis estão dialogando. Está se constituindo um novo diálogo no Brasil. Talvez não tão elegante porque não passa pelas universidades, nem são os filhos das classes médias que estão à frente desse processo.

PAS: Isso assusta muita gente.

JF: Assusta, ou passa desapercebido. As pessoas andam com as janelas dos carros fechadas, têm uma circulação reduzida na cidade, sonham em fugir da cidade.

PAS: Confundem funkeiro com bandido.

JF: Confundem, e têm uma percepção que não dá conta do que está acontecendo ali ao seu lado.

PAS: O MinC de vocês deu uma dimensão à questão da comunicação, que inclusive foi conflituosa, como nos casos da Ancinav. Como esta secretaria de Cultura vai se relacionar com a questão da comunicação?

JF: Olha, a experiência do ministério e a experiência da secretaria são diferentes. No ministério, tínhamos a responsabilidade de reordenar a esfera cultural, definir marcos regulatórios modernos, contemporâneos, na área de direito autoral, comunicação, fomento. A questão era organizar o cenário nacional, que é atrasado. Boa parte das leis que regem o audiovisual, por exemplo, são da época que não existia videotape, imagine. Aqui não, aqui é prestação de serviço, uma gestão territorializada, que precisa reduzir as desigualdades. Na área da comunicação, vamos lidar menos com a regulamentação da cultura, porque do ponto de vista de legislação é um problema nacional. Mas vamos fortalecer a cultura digital, a pluralidade de emissores, a possibilidade de multiplicação de manifestações, valorizando muito a diversidade cultural. Temos compreensão clara de que o Brasil, e São Paulo em particular, é pluricultural e tem que se assumir enquanto tal. O que temos de vantajoso em relação a países como Estados Unidos é que lá não há convivência, interação, absorção. A separação continua, há uma conquista de direitos dos que não os tinham da época de apartheid, mas eles crescem em paralelo. Aqui, não. A convivência, a interação, a aceitação são em uma escala diferente, e isso é uma qualidade superior do processo social brasileiro.

EN: A secretaria pensa em fomentar essa pluralidade de vozes?

JF: Mais do que fomentar, reconhecer.

PAS: O sr. dar entrevista para o FAROFAFÁ é um sinal de reconhecimento.

JF: Claro, a importância com que dou entrevista aos blogs, à nova mídia.

PAS: O sr. acredita que um homem público tem a obrigação de fazer isso?

JF: É evidente. É inquestionável que não há mais retorno para poucos falando para muitos. É preciso agora assumir que há muitos falando para muitos e todos são relevantes e um não substitui o outro. Inclusive li agora que a mídia borte-americana voltou a crescer, inclusive porque está conseguindo dialogar com essa dimensão eletrônica da informação.

PAS: Todo ano eles noticiam que a mídia voltou a crescer, mas não é bem isso o que a gente percebe.

JF: Não, nos Estados Unidos, teve um crescimento. Mas vocês não acreditam que vão extinguir a grande mídia, né (risos)? Vocês vão conviver, amor e ódio permanente.

EN: Secretário, e a dimensão política da secretaria? Ela também tem a responsabilidade de iniciar uma discussão sobre o Arco do Futuro, proposta por Haddad. São Paulo é uma cidade onde o PT teve já duas experiências administrativas, mas elas não tiveram continuidade, ao contrário do governo federal, que teve, com Lula e Dilma. Qual contribuição sua pasta dará no âmbito político?

JF: Olha, me lembrei do Gil agora, daquela música, “o copo vazio está cheio de ar”. Se foi difícil para o PT manter a continuidade, é difícil também para os adversários políticos do PT manterem. Você tem um xadrez político, ora é um, ora é outro, primeiro vem a casa branca, depois vem a casa preta.

EN: Aqui menos, secretário.

PAS: No estado de São Paulo nunca houve essa alternância.

JF: Mas a cidade tem referências muito positivas dos governo Marta Suplicy e Luiza Erundina.

EN: Na sua concepção?

JF: Não sou eu que digo, são as pessoas que verbalizam, abrem a boca e dizem.

PAS: Não é meio superposto, já que é justamente a população que não era ouvida nos últimos anos?

JF: Mas isso é normal, o ponto de partida óbvio. Os excluídos, que não são poucos, se sentem confortados com alguém que se propõe a fazer a incluí-los econômica, social e culturalmente.

PAS: E a gente já acumula a experiência de que a inclusão se torna irreversível, não? Depois que incluiu, não há como voltar atrás.

JF: Era isso que eu ia dizer. Estamos vivendo um processo no Brasil em que a inclusão está se tornando irreversível. No último mês que eu estava na Espanha, vi um caderno de entrevistas com empresários brasileiros, todos elogiando Lula, quase todos de São Paulo, dizendo que nunca ganharam tanto dinheiro quanto na inclusão.

PAS: Não se sabe onde moram, mas eles existem.

JF: Por quê? Porque o presidente Lula teve a inteligência e a sabedoria de perceber que a inclusão dessas pessoas beneficia os donos dos negócios, os empresários, porque cria um mercado interno. A grande fragilidade da economia brasileira sempre foi ter que viver da exportação, porque internamente o mercado era pequeno. Até recentemente o mercado brasileiro era do tamanho daquela pequena ilha do Mar do Norte chamada Inglaterra. Agora, não. Estamos caminhando na direção de um mercado de 200 milhões de pessoas,  o que abre a possibilidade de geração de negócios, um nível melhor de circulação de mercadorias. E quando houver uma qualificação desse mercado, através da educação de qualidade e acesso á cultura, vão se desenvolver setores da indústria que sempre foram inibidos no Brasil. O consumo de livros é de 1,7 livro per capita por ano, pela educação e pelo padrão cultural que temos. O nível de freqüência em cinema é de 13% dos brasileiros. Não dá para montar uma economia com esse grau de precariedade da inclusão das pessoas. A grande contribuição do PT, do presidente Lula, foi essa, e ela é irreversível.

PAS: Sua filiação ao PT teve a ver com isso?

JF: Teve. Alguns amigos no Partido Verde me chamavam de melancia, porque eu era verde, mas tinha preocupações sociais (risos). É preciso ter preocupação com o meio ambiente, com a sustentabilidade, mas é preciso associar essa preocupação a justiça social, a igualdade.

EN: O sr. começou falando de abrangência, depois convivência e agora finaliza com inclusão. A secretaria pretende trabalhar para isso?

JF: A inclusão é a essência do governo. Fernando Haddad, que me chamou para ser seu secretário, apresentou à sociedade um programa de inclusão, de diminuir a desigualdade, garantir acesso e direitos e oportunidades iguais para o conjunto da sociedade. Isso vai se refletir na saúde, na educação, no Plano Diretor, ou seja, uma visão da cidade para todos. E é evidente que a secretaria da Cultura vai navegar nesse rumo dado pelo prefeito, que é o comandante do barco.

EN: Se a gente estivesse entrevistando o sr. e fosse o último mês de seu mandato, qual o legado cultural que o sr. gostaria de ter deixado para São Paulo?

JF: Lá vem você com a ideia de marca de novo (risos). Uma cidade mais tolerante, mais aberta, mais igual, com a vida cultural plenamente ativada, forte no seu centro, com apoio do poder público, sem restrições nem criminalizações de áreas da cultura. Aí vou até o funk e o incorporo.

PAS: O sr. está gostando de trabalhar no centro?

JF: Adoro, adoro este centro aqui. É ótimo. Sabe qual foi o comentário de minha mulher, que veio me visitar hoje pela primeira vez? “Pô, o centro é de uma tranquilidade imensa, não sei por que as pessoas ficam dizendo que aqui é mais perigoso que outras partes da cidade.” E é, é uma tranquilidade imensa.

PAS: É corriqueiro um ministro de Estado se transformar em um secretário de um município?

JF: Tem pessoas que veem uma hierarquia, que depois de ministro não pode. Não, eu posso ser qualquer coisa. Depois de ministro, fui ser embaixador, que nunca tinha sido, passei dois anos fazendo um trabalho diplomático. Trabalhei em 16 países. Organizei um sevento da ONU e um seminário iberoamericano de economia da cultura nesses dois anos.

PAS: Considerado tudo isso, o que fez o sr. aceitar essa incumbência?

JF: São Paulo é um desafio enorme, quase do tamanho do desafio do ministério. É mundialmente importante, a terceira maior cidade, com conexões internacionais ainda não totalmente estabelecidas. São Paulo só será plenamente a locomotiva quando criar uma conexão em que os vagões se sintam confortáveis. Nenhuma locomotiva puxa um trem sem uma boa relação, senão sai dos trilhos.

PAS: São Paulo tem de parar de se sentir como Londres ou Nova York e entrar dentro do Brasil?

JF: A comparação com Nova York tem a ver, mas é precária, porque a cartografia de São Paulo é outra, mais próxima da Cidade do México, Bogotá, Caracas, Cairo. São Paulo precisa assumir que isso é bom, que é um centro de cultura mundial e poderia potencializar isso, em vez de só importar shows que vêm de Hollywood ou da Broadway. Produzir também um sistema de significados desse mundo multipolar que está emergindo.

EN: Do ponto de vista administrativo, o sr. ainda tem muitas nomeações a fazer?

JF: Rapaz, aqui não tem muitas nomeações a fazer, não. Eu vou fazer uma reforma administrativa. A secretaria tem o secretário, o adjunto (Alfredo Manevy), o chefe de gabinete (Rodrigo Savazoni) e depois tem mais de cem equipamentos. A secretaria tem uma cabeça fraca.Vamos estudar, trabalhar um projeto que seja consistente. Não dá para ter políticas culturais com a estrutura atual. É precário, não tem nem quem faça. Cada equipamento é um equipamento em si. A imagem mais próxima é a de um arquipélago, e não o de um sistema cultural.

EN: E o sr. é o presidente dessas ilhas?

JF: É, lembra dos Sobrinhos do Capitão? Tinha um rei daquele arquipélago. Eu sou mais ou menos aquele rei.

PAS: E o trânsito, está legal (risos)?

JF: Não, o trânsito não. Mas é o trânsito das capitais brasileiras. Salvador tem as ruas estreitas, é barra pesada também. Recife, Fortaleza também. Enquanto não tivemos transporte público qualificado e políticas públicas para reduzir o uso do automóvel, vamos chegar àquele livro do Julio Cortázar, o engarrafamento chega a um ponto em que os carros não andam mais e aí se estabelece uma sociedade a partir disso. Aí já não é mais meu departamento, mas minha secretaria pode contribuir para a criação de uma cultura contemporânea. Na Europa, você vê o cara de paletó e gravata, indo de bicicleta trabalhar, e é um grande executivo. É mais americana essa adoração do automóvel. Americana e subdesenvolvida. Os americanos e os árabes seguem essa linha de o automóvel ser o padrão de civilização. Se você tem automóvel, você é gente. Se não tem, pode ser atropelado. A coisa que mais me chocou quando morei na Suécia foi o dia em que chegou o correspondente do maior jornal, o Dagens Nyheter, que significa Diário de Notícias. Eu por coincidência era faxineiro desse jornal. Ele foi entrevistado na televisão, e a mulher perguntou a ele se existia tortura no Brasil. Era época de Emilio Medici aqui. O sueco não mente, não é como a gente, que mente o tempo inteiro. Ele ficou vermelhão e disse assim: “Eu não conheço os subterrâneos daquela sociedade, mas com o que vi na superfície eu garanto que tem tortura no Brasil”.

PAS: O sr. foi faxineiro na Suécia?

JF: Fui exilado durante quase os meus 20 anos todos. Fui escorraçado daqui, e lá fui lavador de prato no hospital, estivador, auxiliar de trânsito, faxineiro – que foi a profissão mais estável que tive -, garçom e babysitter.

PAS: A atual profissão parece com qual dessas? Babysitter?

JF: Não, nenhuma. O que eu descobri lá é que no Brasil a sociedade só interessa pelo cara de classe média do pescoço para cima. E lá, só se interessavam por mim do pescoço pra baixo.

EN: O braçal.

JF: Braçal e tudo que vem abaixo do pescoço (risos).

PAS: Pode contar, rapidamente, a história do exílio?

JF: Fui preso com 19 anos em Salvador, em 1969. Passei alguns meses preso, depois fui solto e fui para o Rio, aí minha barra pesou total, vivi clandestino um ano e pouco. Aí fui para o Chile.

EN: Para que organização o sr. militava?

JF: (Savazoni diz que foi o MR8.) Passei um ano e meio no Chile. Depois, sete anos e meio na Suécia, quase oito. E um ano na França.

PAS: Conheceu Gil já desse período?

JF: Não, conheci Gil na volta. Eu era um retornado que trabalhava na Fundação Cultural do Estado da Bahia. Quando ele queria se candidatar a prefeito, me ofereci a ajudá-lo gratuitamente.

 

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2 COMENTÁRIOS

  1. Acho que nem só a nossa tese, nem só a sua, né, Delmes? O balanço entre os atos neoliberais e os, er, socialistas é que vai dizer, láááá pra frente.

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