A antropofagia virou música no Pará

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A música paraense se encontra consigo mesma e recebe apoio do governo tucano local para divulgar sua diversidade, dos jovens Lia Sophia e Felipe Cordeiro aos Mestres da Guitarrada.

 

“Não tenho coração pra aguentar isso, gente.” É 1o de agosto, noite do aniversário de 34 anos de Gaby Amarantos. A plateia adiante dela canta o “parabéns a você”, e não é uma plateia qualquer. Estamos no mitológico do Theatro da Paz, fundado em 1869 para representar a cultura erudita na cidade de Belém do Pará.

O elenco do Terruá Pará no Theatro Municipal - Foto: Renato Chalú/divulgação

Gaby, rainha profana do tecnobrega, não está sozinha no palco nesta noite. Ela é apenas uma entre dezenas de artistas populares, eruditos, eruditos-populares, populares-eruditos que participam do show coletivo Terruá Pará. Idealizado pelo poder público estadual (para divulgar a música paraense Brasil afora) e dirigido com brilho pelo gaúcho Carlos Eduardo Miranda e pela pernambucana Cyz Zamorano, o Terruá frequentou o Auditório Ibirapuera de São Paulo em duas edições, em 2006 e 2011. Agora volta para casa e, de quebra, deságua em dois DVDs e dois CDs duplos ao vivo, tudo carimbado com o selo do governo (tucano) do Pará.

O “canto das três raças” de que falava a mineira Clara Nunes (1942-1983) se consuma não só na tez índia, africana e europeia de Gaby. Está disseminada pelo sangue de mestres da guitarrada, orquestras de violoncelistas, cantores de carimbó, DJs de eletromelody, violonistas eruditos, intérpretes de MPB, ídolos do brega e seus discípulos-afluentes. Semblantes mulatos, cafuzos, mamelucos, caboclos — qualquer dessas denominações mestiças que se puder imaginar está presente e confirma, em cinco sessões de terça a sábado, a vocação pacifista do batismo feliz do Theatro da Paz.

Antes isolado no norte do Brasil, o Pará oferece um novo paradigma de enfrentamento da cultura — seja pelos artistas e espectadores, seja pelos ditames complexos do poder público. O caldeirão racial ali reunido difere em tudo dos modos tradicionais de ocupação dos teatros municipais de, por exemplo, São Paulo e Rio de Janeiro. Abrindo-se para a música popular, o Theatro da Paz abre-se, simultaneamente, às etnias, às classes sociais, à democracia.

Conjunto de Carimbó O Uirapuru - Foto: Camila Lima/Divulgação

O espetáculo começa folclórico e tradicional, à frente da linda cortina ainda fechada do palco, com seis instrumentistas que tocam cheios de energia o carimbó “Meu Barquinho”: é o Conjunto de Carimbó O Uirapuru. Os panos sobem e nossos olhos e ouvidos adentram o palco colossal do Theatro da Paz: banda de rock, carimbó e guitarrada, orquestra de violoncelos, o violonista virtuoso Sebastião Tapajós, todo mundo junto e misturado.

Orquestra de Violoncelistas da Amazônia - Foto Camila Lima/Divulgação

Tomam a boca da cena um maestro e cinco jovens instrumentistas: é a formidável Orquestra de Violoncelistas da Amazônia. Nesta noite, eles tocam o “Uirapuru” do maestro, orquestrador, compositor e pianista paraense Waldemar Henrique (1905-1995). Os meninos têm postura rock’n’roll diante dos cellos. Nas apresentações habituais, misturam música do Pará com versões semi-eruditas de heavy metal, Beatles e que tais.

Com voz curtida pelo tempo, o veterano emepebista Paulo André Barata faz um mostruário de sucessos seus em vozes como as da paraense Fafá de Belém (“Foi Assim”) e da capixaba Nara Leão (“Nasci para Bailar”, parceria dele com o gênio acreano da bossa nova João Donato).

Solano, um dos mestres da guitarrada - Foto Renato Chalú/Divulgação

O cerebral Pio Lobato eletrifica, eletroniza e pós-moderniza a guitarrada de ases que aparecerão na sequência, como os mestres Solano, Curica, Vieira e Laurentino. Juntos, os mestres da guitarrada configuram uma versão amazônica de velha guarda da Mangueira ou da Portela. São a imagem da tradição, mas empunham guitarras, roubam motes da jovem guarda de Roberto Carlos nos anos 1960 e se esbaldam sem preconceitos ou receios entre mil e um ritmos caribenhos.

A tradição, no Pará, é estritamente moderna, apontada para o futuro – isso seria notícia de letras garrafais na mídia cultural de qualquer parte do Brasil (do mundo?), se as vozes críticas atuais não fossem tão conservadoras e/ou temerosas de ousar.

Dona Onete - Foto Renato Chalú/Divulgação

Dona Onete, uma senhora cantora paraense, híbrida de Clementina de Jesus e Lia de Itamaracá, dá seu recado em forma de música sensual, de apelo corporal — sexual, sensorial, culinária. Em “Jamburana”, descreve com maestria o tremor que acomete a língua quando mastigamos o jambu, planta local que é ingrediente indispensável do tacacá, outra maravilha paraense de que o Brasil ainda não aprendeu a desfrutar.

Toni Soares - Foto: Camila Lima/divulgação

 

Toni Soares vem fazer música pop com um exótico, retumbante, perturbador instrumento próprio, a banjola, banjo de arco: caubói norte-americano e índio tupi unificados num organismo só.

“Ela é americana/ da América do Sul”, mestre Solano confirma a pajelança transamericana. “Essa loirinha americana está querendo me esculachar/ foi dizendo que eu sou neguinho, e bem neguinho,/ e lá na América eu não posso entrar”, reconfirma, em tom de debochado protesto, o genial Mestre Laurentino. Modernismos e tropicalismos à parte, a antropofagia é aqui, e rende música das mais suculentas.

 

 

 

Lia Sophia - Foto Camila Lima/divulgação

Nascida na Guiana Francesa, criada no Amapá e radicada em Belém, Lia Sophia é vigorosa, talentosa e linda cantora, compositora e guitarrista — a rodopiante “Ai Menina” está na trilha da novela global das seis, e a autora brilha igualmente fazendo solo, secundando a guitarrada de mestre Solano ou fazendo backing vocal para o jovem líder Felipe Cordeiro, mestre prematuro em brega, carimbó, zouk, soca ou cacicó.

Felipe é filho de Manoel Cordeiro, ex-líder da divertida Banda Warilou e histórico produtor de incontáveis discos paraenses. A maioria dos brasileiros não sabe, mas o sebo de LPs de Max, nas cercanias do mercado Ver-o-Peso, prova que a indústria fonográfica local é forte e caudalosa desde muito antes do florescer espontâneo da incrível fábrica de aparelhagens de tecnobrega, tecnomelody, eletromelody etc.

Maderito e Keila Gentil, da Gang do Eletro - Foto Renato Chalú/Divulgação

Ao final da jornada de quase três horas, as novas gerações do pop eletrônico paraense têm sua vez, em alto e bom som. A Gang do Eletrão e Gaby Amarantos preparam o encerramento do espetáculo, numa orgia warholiana de eletromelody, punk rock, merengue, lambada, kuduro, brega e tecnobrega. O público paraense os recebe com o mesmo — muito — calor com que recebeu, antes, o experiente violão de Sebastião Tapajós e a jovem rabeca de Luê Soares, a erudição precisa do Trio Manari e o brega explosivo de Edilson Morenno.

Se houve estranhamento e até hostilidade no primeiro Terruá em São Paulo (quando Gaby já era diva do tecnobrega no norte, mas ainda estava longe de ser conhecida no sul como cantora de abertura de novela global), aqui não há sombra disso: em 2012, o público paraense ama sua música, da sinfonia ao carimbó ao eletromelody ao que mais vier. Nem sempre foi assim, segundo conta a própria Gaby.

O mais espantoso desse kuarup é a vontade de fazer caber, num mesmo espaço simbólico, identidades artísticas e crenças musicais diferentes (mas complementares), que poderiam facilmente viver em estado de guerra, e não de coexistência pacífica e agregadora. Esse novo paradigma belenense é em tudo divergente de iniciativas do tipo “Virada Cultural”, que viciam outras metrópoles no formato de vitrine fácil, barata, fast-food, sem maiores preocupações com identidade, encadeamento lógico, consequência e prosseguimento.

No Terruá, desde 2006, artistas, movimentos, cores de pele, camadas sociais e ritmos musicais díspares repousam (ou melhor, tremem) juntos, unificados, harmonizados, pacificados. Para quem topar navegar nesse barquinho, ao vivo ou via satélite, o Theatro da Paz é o melhor lugar do mundo, aqui e agora.

 

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

 
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