CORAÇÃO NA ESTRADA

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Na minha infância no Paraná, caminhoneiro era “rico”. Pobre éramos os filhos do carroceiro. Caminhoneiro morava em casa de “material” (as raras residências de alvenaria; nas de madeira morávamos nós). Caminhoneiro ocupava toda a larga avenida com sua Scania 113 Topline azul. Os filhos do caminhoneiro tinham Calóis novinhas. A imagem do caminhoneiro ferrado e mal pago é, para mim, uma imagem recente, moderna.
Mas é perfeitamente compreensível que João, o caminhoneiro do filme À Beira da Estrada, de Breno Silveira (o mesmo de 2 Filhos de Francisco), encarne um outsider clássico. Ele está ali para se desintegrar. João faz da estrada o seu ópio, sua cachaça, seu “arrebite” na tentativa de esquecer sua tragédia pessoal.
Tudo parece milimetricamente preciso no filme, uma arapuca bem armada. Inclusive o excesso trágico na saga sentimental do caminhoneiro – sou do tempo em que o rádio ainda tocava Teixeirinha e seus dramalhões inapeláveis, como o famoso “Churrasquinho de Mãe” (Coração de Luto, 1967). Ou seja: em termos de sentimentalidade, nada me escandaliza.
Tudo é exato: o namoro na Variant, a carga em Petrolina, o monte de menino de rua dormindo com papelão como cobertor, o buffet do posto de gasolina, o revólver na caixa de ferramentas. Tiraram até o rótulo da Coca-Cola – o que talvez tenha sido indiferença do patrocinador, mas que ajudou a não macular o cenário de estrada.
E aí tem as canções de Roberto. Eu poderia me exibir, dizer que Roberto Carlos faz sentido para mim desde a infância, como que para firmar um distanciamento. Mas é mentira. Sofro emboscadas dele todo dia. Quer dizer: tem dias que eu, com pretensão de ensaísta, acho que compreendi Roberto Carlos. Mas aí vem alguém me perguntar candidamente porque ele é tão fundamental e o “Brasa” me escapa, eu não consigo explicá-lo e tenho de recomeçar tudo de novo.
O filme de Breno Silveira busca se equiparar, em simplicidade, à estratégia de Roberto Carlos para a conquista do mundo. É assim: quando a gente pensa que é óbvio o que vai acontecer a seguir, que a cena seguinte é manjada, que o caminhoneiro vai entrar no rio e se banhar com o menino, é exatamente o que acontece. E, ainda assim, o espectador se emociona. Então não é isso que é Roberto Carlos? Não tem vacina, não tem imunização: o verso vai te sequestrar, a emoção vai te pegar.
Bom, mais ou menos. Roberto não é só um apelo. É também uma métrica, uma convicção, uma forma estética de elevar o banal a uma condição sagrada. De conferir personalidade à frase de para-choque de caminhão. Sabendo disso, Breno Silveira faz um uso cirúrgico das canções de Roberto Carlos no filme. Logo que começa, a canção que toca é A Distância (ele me contou que o próprio Roberto a escolheu), mas é ainda um som que vem abafado do rádio do caminhão, como se saísse de uma estação de rádio AM mal sintonizada.
O diretor não tem medo do didatismo. O didatismo às vezes é um cachorro louco que morde, mas basta que você seja suave com ele que ele senta e lambe sua mão. É assim que o espectador vai ouvir Esqueça, música que vem como uma manta cobrindo o drama de Rosa, que ama o caminhoneiro e seduz o caminhoneiro, mas sabe que seu coração não está bem ali, está em outro lugar.
São diversas fases do “Rei”, mas a direção não entra naquelas de querer privilegiar um lado “cult” da obra de Roberto. “Toda vez que o Roberto está sofrendo, ele arrebenta”, diz Breno Silveira, explicando o predomínio do romantismo. As canções escolhidas coincidem com o fim de relacionamentos do cantor, como a separação de Miriam Rios. “Essa porcaria de preconceito atrapalha muito a gente”, resmunga o diretor.
O ator-mirim Vinicius Nascimento é quem interpreta Amigo. O ator principal, João Miguel, canta Nossa Canção em um bailinho ultrachique. E aí tem os convidados: Nina Becker (canta Esqueça), Vanessa da Mata (também canta Nossa Canção), Chamego Tropical (canta Só Vou Gostar de Quem Gosta de Mim).
A voz de Roberto mesmo só comparece com duas canções de sua fase mais romântica: O Portão e Outra Vez (de Isolda), além de A Distância incidental do comecinho. “As letras de Roberto Carlos são ingênuas e simples e cortantes e profundas ao mesmo tempo. Não contém metáforas complicadas. Para mim, dizem fundo na minha alma. Quem não escuta Roberto de coração aberto não se emociona”, diz o diretor.
Mas ele escolheu também músicas que tangenciam a obra de Roberto, balizas sentimentais, a mais impressionante delas a entrada em cena de Impossível Acreditar que Perdi Você, de Marcio Greyck, o nosso Thom Yorke.
2 Filhos de Francisco foi um aríete arrombando os portões das fortalezas do “bom gosto”, mostrando que as classes sociais no Brasil têm mais coisas em comum do que diferenças, que nossos heróis populares merecem figurar ao lado dos Hurricanes, das Erins Brokovichs, dos dramas importados.
Com À Beira do Caminho, Breno vai fazer com que muitos de nós coloquemos Pedro e Bino na galeria dos caminhoneiros de butique. A imagem do caminhoneiro que vai perdurar agora é a de João, o motorista mal encarado e antissocial do filme.
De vez em quando, surge um nome de cidade numa placa que parece clarear a memória: Mucugê, Rio Verde. Aparece a ponte entre Juazeiro e Petrolina. A paisagem seca de repente se torna exuberante, verdinha, assim como a beleza dos atores do filme que se vai desvelando, uma beleza invulgar, real, brasileira. Dira Paes estraçalha. Denise Weinberg aparece uma única vez e dá vontade de pedir autógrafo. O sorriso de Ludmila Rosa está simplesmente estonteante.
E o que é o sorriso maroto desse menino baiano chamado Vinicius? Que grande figura.
É um filme mais dark, mais melancólico do que 2 Filhos de Francisco. Não deve repetir o êxito de público daquele. Mas é um filmaço.
O filme nasceu de uma ideia da veterana assessora Lea Penteado, que já assessorou Roberto Carlos (e atualmente trabalha para Dody Sirena, empresário do Rei). Ela me contou que teve o insight em 2005, quando coordenava um projeto social no Sul da Bahia, onde vive: 
Viajei muito de carro e sempre que parava nos postos à beira da estrada ficava de olho nos caminhões e na vida dos caminhoneiros. E vi uma cena que me marcou: um caminhoneiro sozinho, amargurado, com um cachorro na boleia e no CD player tocava Roberto Carlos. Tive a sensação que este homem fugia de si mesmo e criei esta história. No texto original havia um cão, mas creio que pela mão de obra que daria para gravar com animal isso foi eliminado. O que penso muito, vivendo num local meio rural, é na possibilidade de o homem mudar quando se consegue acessar seu coração. Foi isso que quis contar“.
E, para ninguém dizer que tenho medo do clichê, vou deixar aqui um epílogo adequado para isso tudo. Acredito que o filme vá fazer mais sentido ainda para outros espectadores como eu, meio crepusculares, ainda às voltas com a correia do Fusca, com empréstimos bancários para cobrir o gasto excessivo com o limite do cheque especial (muita gente, certo?). Porque é um filme que trata também das noções de tempo ganho e tempo perdido, da preciosidade que é a vida, da simplicidade que é aproveitar cada instante. Vocês também notaram que a cidade está mudando muito rápido?
(texto publicado hoje no jornal O Estado de S.Paulo; o filme estreia no Brasil todo no dia 10 de agosto)
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4 COMENTÁRIOS

  1. Lea foi quem me ensinou a profissão que tenho. Fui sua primeira "menina", ou como diz. Passamos anos trabalhando e convivendo. A estória que o filme conta mostra muito da sensibilidade que ela tem, de observar e sentir o mundo a volta. Feliz com a matéria.

  2. Estou esperando ele entrar em carataz em minha cidae, só uma coisa Jotabê, estava num café do shopping quando vi o trailler que finaliza com "O portão" e juro desabei. Sem falar que até hoje ainda uso aquele abriguinho de listras que o garoto do filme veste.

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