Na madrugada de despedida do cruzeiro “Emoções em Alto Mar”, eu tive um baita pesadelo.

Não foi o mais bonito que eu tive em toda a minha vida, mas foi um desses sonhos transparentes feito água, daqueles que Freud explica tintim por tintim (oba, tenho assunto à beça pra conversar com minha terapeuta na próxima sessão!).

Sonhei que estava sozinho no convés e avistava na popa do navio, lá longe…, em osso e osso…, Ela…, a Morte.

A Famigerada me aparecia no figurino pop-clássico, de animador de crianças na Disney fanstasiado em túnica preta da cabeça aos pés, mais a célebre máscara tipo “Pânico” (“Pânico na TV”, não “Pânico” no cinema).

Eu olhava na cara branca dEla, Ela olhava na minha, mais pálida que nunca apesar do sol escaldante no convés. Ela virava de costas e subia as escadas para o deck de cima. Me vinha a certeza de que Ela ia me alcançar, e eu morria de pânico. Mas ia atrás dela mesmo assim.

Subia as escadas, a cena se repetia, eu via a Moléstia lá de longe, a Peste outra vez me encarava ameaçadora, eu ao mesmo tempo congelava, me sentia atraído e esboçava o gesto de fugir.

Mas agora Ela falava, sei lá eu com que voz: “Desta vez não é a Gal C. Desta vez é a Elis R.”.

(Gal C. e Elis R., no caso, são pseudônimos de duas pessoas – mulheres – da minha família, muito amadas e importantíssimas para mim.)

Vinha um corte hollywoodiano e eu via, qual num cinemão drive-in a bordo, minha adorada Elis R. tendo um ataque cardíaco e morrendo fulminada pelo poder da sentença da Dona da Foice. E eu me punha a correr pelas ruas (uai, mas eu não estava num navio?), chorando feito menino correndo que via o tempo.

Nem preciso contar que acordei de imediato, coração descompassado, suando e assustado, preciso?

Afora o toque histriônico da morte com máscara de “Pânico”, esse parque de diversões em forma de pesadelo foi o que bastou pra tombar as máscaras de tudo que eu não estava querendo ver nos dias todos de emoções à beira-mar.

São muitas, as imagens da Morte, dentro de um cruzeiro atlântico ou transatlântico.

Desde os naufrágios cinematográficos no infame “Titanic”, com a trilha sonora tumular de Whitney H., e no fantasmagórico “O Destino do Posseidon”, mito total da minha infância. Até o fato de ser uma representação de tumba em si propriamente dita a experiência de estar confinado num navio, ainda que seja um de 14 andares, gigantesco, feérico e habitado por quase 4 mil almas, como era o caso desse Costa Concordia. O conforto e o glamour são consideráveis, mas a gente não esquece um só minuto que pode afundar a qualquer segundo.

(Parece até o planeta Terra, um navio, não parece?)

Fazendo lé com cré deitado na cama macia, fui vendo que mais imagens mortíferas me perseguiram aos bandos nesses dias de quase-férias. Coincidência ou subconsciência, levei a bordo para ler nas horas vagas a biografia de uma morta, Clarice Lispector (essa nova, do genial título “Clarice,” – Clarice-vírgula-sem-continuação), e uma edição compacta do Teatro Completo de Nelson Rodrigues, todo ele repleto de falecidas, natimortas, mórbidas, anjas negras e mulheres penadas.

(Afinal, por que é que a Morte, do modo como a mitificamos, é invariavelmente uma Mulher, hein? Não somos machistas?)

Chegando mais perto dos motivos e arabescos da viagem, ribombava também atrás dos olhos a parcela preponderante de passageiros: mulheres (e alguns homens) de meia ou alta idade unida(o)s pela paixão avassaladora por seu ídolo, Roberto Carlos.

Sabe aquele muxoxo meio de escárnio que as pessoas esboçam (eu próprio acalento esse preconceito, tenho de admitir) quando se fala num show do “Rei”, pela presença maciça de senhorinhas e velhinhas? Pois no navio era isso promovido à décima terceira potência e acrescido do vasto repertório de trajes de gala empunhados por idosas, jovens senhoras e mocinhas (além de um e outro mancebo).

Na cereja do bolo, muitos tititis sobre saúde: cadeiras de roda, mal-estares, palpitações, artroses, esposas falecidas, paralisias, cirurgias, cânceres etc. Por esse ângulo quase me senti numa novela de Manoel Carlos (com a breve diferença de que o cruzeiro era divertido e não se passava dentro de um hospital).

Diante do pesadelo da Morte, fui forçado a reconhecer quão escandalizado eu tinha estado, o tempo todo, pela simples presença de tantas e tantas e tantas personagens rodrigueanas que desfilvam seus cabelos brancos, amarelos e acajus diante de mim. Aqui fora, é fácil a gente se segregar por critérios de faixa etária; lá dentro, a boate Lisbona era triste e solitário reduto onde se asilavam “jovens” assustadiços, daqueles que “não gostam” de velhos pelo prosaico fato de não saberem que serão iguais a eles depois de amanhã (nos meus indecisos 41 anos, me vejo na pinguela de não me adaptar nem ali, nem acolá, o que pode ser mais indigesto e causar mais pesadelo que comer bacon na ceia…).

Logo vi que o detonador imediato do sonho aparentemente ruim foi uma cena que tinha ficado admirando pouco antes de ir dormir, num parapeito do alto do pátio da piscina onde se aguardava a presença carnavalesca da Beija-Flor. Esquentando os tamborins, uma jovem negra cantava (bem) sambas de Zeca P., Clara N. e Beth C. E, no chão, uma única senhora idosa sambava, as costas levemente encurvadas, o vestido longo roxo (e discreto, e elegante, e bonito), uma bolsinha prateada pendendo numa das mãos. Dançava e rodava, nem aí pra saber se tinha ou não mais alguém sambando ao redor. Sambava do jeitinho dela, mas a dancinha dela era das coisas mais fofas que já vi nesta Vida.

Não sei se sei explicar, mas foi ela que me despertou do “país de maravilhas” em que eu, Alice C., estava vivendo até então no navio.

Mas, voltando à última madrugada. O sonho da Desgraçada acabou, e com ele também o sono. Rolei na cama até decidir, ora bolas, ir dar umas últimas voltas pelo navio. Como seria o navio às 3 horas da madrugada da noite de despedida?

Saí zonzo zanzando feito zumbi pelos muitos espaços do navio. Senti o vento frio da madrugada marítima paulista (engraçado, em alto mar não choveu uma vez sequer, por que será que chove tanto no túmulo-do-samba?). Escorreguei pelo chão pastoso do pátio da piscina, agora quase vazio. Me diverti com os bêbados e bêbadas que sassaricavam cambaleando rumo às últimas horas de sono nas cabines. Encontrei as passistas e os ritmistas da Beija-Flor reunidos em torno do rango tardio do restaurante Milano. Vi empenhados na limpeza alguns dos mesmos muitos filipinos que trabalham como camelos no casco da Concordia (aterrorizante como os navios negreiros continuam a existir e como os africanos embarcados têm, hoje em dia, olhos puxadinhos, senão feições indianas ou outras que tais). Ainda no Milano, senti a plenos pulmões o cheiro de pano de chão cujos resquícios me acompanharam a cada viçoso café da manhã.

A essa altura, quase zumbizei de vez e voltei para o quarto, mas então me perguntei: e o quinto andar, região do cassino e das boates, como estará a estas horas? Zarpei no primeiro elevador panorâmico que encontrei e fui conferir.

Vi a parafernália do show de RC sendo desmontada no teatro, o show já terminou… vamos voltar à realidade… Mas não é que, dos bares em diante, me encontrei no ambiente mais cheio de Vida de todo o navio?!

Casais zanzando daqui pra lá e de lá pra cá. Senhorinhas e senhoronas empetecadas vibrando suas notas de dólar à boca dos caça-níqueis. Gatos pingados “jovens” rebolando na Lisbona. Senhores empedernidos tilintando potes de pipoca cheios não de pipocas, mas de moedas. Velhinhas sorridentes, risonhas, hiperativas, sedentas de Vida (Vida, aliás, foi o que mais vi nesses dias todos, com a módica diferença de que era outro tipo de Vida, não a Vida sovina que acostumei a consumir nos rostos e corpos malhados de Giselle B., Ronaldo F., Ivete S., Ayrton S., Adriane G. etc. e tal). Luzes, cores, exageros. Máquinas fotográficas disparando flashs frenéticos.

Opa…

…Máquinas fotográficas disparando flashs frenéticos?… Sim.

É que, última coisa que eu esperava encontrar no meu giro insone, eis que me vejo frente a frente com Ele, Roberto Carlos, em carne e osso (e, pela primeira e única vez em toda a viagem, a pouquíssimos metros de distância).

Cercado de senhoras radiantes que balbuciavam “deixa eu falar com você, Roberto” e faiscavam olhares apaixonados, Ele apostava na roleta do cassino, de semblante bonachão, sereno, divertido e satisfeito. Tava na cara dEle o quanto Ele adora esses indescritíveis cruzeiros.

Então. Resumindo a epopeia, do sonho à realidade? Foi uma experiência imensa, ótima pra eu tentar me convencer de que, como dizem os sábios, a Morte só existe onde a gente não deixa a Vida entrar (o que pode acontecer… dentro… da gente… mesmo…). E pra eu parar de moleza e peitar a tarefa filipina de começar a quebrar alguns dos 4 mil preconceitos e tabus que continuam morando dentro de mim.

(Por falar em preconceito – essa coisinha estúpida que não existe -, não comentei aqui neste diário de bordo o show do grupo Calcinha Preta, até porque meio me desanimei com um clima de choque cultural entre eles e a moçada vivíssima da plateia. Mas sabe que seus forrós bisnetos de Luiz Gonzaga são pra lá de interessantes? Acho que o “Rei” sabe muito bem quem coloca nas suas redondezas.)

E foi mais ou menos isso. E esquece aquele papo do outro tópico, de que não havia lençóis macios no transatlântico de RC. Era engano, mentira, miragem, ou ilusão.

(P.S.: minha querida Madeleine L., eu infelizmente não consegui trazer aquilo que você me pediu… continuo envergonhado demais pra ter coragem de erguer as mãos e pedir uma rosa ao Comandante dos Nossos Corações pan-Brasileiros…)

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