Rita Lee & nós, tutti fuditti

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O pop direto e inteligente de Rita Lee (na foto, durante a gravação do videoclipe de “Reza”) está de volta após um hiato de nove anos sem lançar nenhum CD de  inéditas

 

 

Houve nove anos de hiato entre o álbum inédito anterior de Rita Lee e o novo, que está chegando às lojas agora. Demorou, mas os semideuses e os hiperplebeus tropicalistas estão em festa: Balacobaco (2003) era inspirado, e este Reza é mais ainda. A desobrigação e a ruína da indústria fonográfica fazem bem à beça à mais importante compositora popular brasileira.

Permanece o truque-isca de Balacobaco: uma melodia chatinha para grudar nos ouvidos da multidão, via trilha de novela. Em Balacobaco era “Amor e Sexo”, que musicava uma crônica do reacionário de plantão da Globo, Arnaldo Jabor. Desta vez é “Reza”, de Rita e Roberto de Carvalho, em cartaz na atual Avenida Brasil global. Reza (o disco) é bem mais inspirador que “Reza” (a balada pop-rock), assim como Balacobaco era bem mais consistente que apenas “Amor e Sexo”.

A própria letra de “Reza” flagra Rita em um de seus muitos instantes brilhantes. Pertence à categoria das canções de ódio de anos recentes, nos quais vêm se esmerando ela, Caetano Veloso e Maria Bethânia. “Deus me perdoe por querer/ que Deus me livre e guarde de você”, dispara a ídola em diálogo direto com um fã imaganário que não sabemos quem é (mas podemos ser, e somos, você e eu). Se em 2000 Caetano se movia contra a fé em linguagem cifrada, em  “Zera a Reza”, Rita é mais direta: chama um treco de reza e se põe a xingar muito no CD (“Deus me defenda da sua macumba”, “Deus me imunize do seu veneno”), qual Bethânia em sua recente “Carta de Amor”.

Rita já explorara o veio da canção-xingo em duas das poucas canções inéditas incluídas num disco de sucessos ao vivo de 2009. “Se Manca” soltava bombinhas em religiosos (“nem vem falar de Jesus, você é pecador”), ambientalistas (“não me vem com papo ecológico, você é poluidor”), ricaços, intelectuais e outros chatos de plantão (“se manca, neném/ gente mala a gente trata com desdém”). No delicioso rockão “Tão”, arremetia contra uma figura que ela jamais há de admitir, mas tem tudo a ver com Sandy Leah: “Tão boazinha/ tão certinha/ tão discreta/ tão correta/ tão modesta/ tão honesta/ tão decente/ tão boa gente/ tão cordata/ tão sensata/ tão, tão, tão, tão…/chata, chata!”. Dinamite pop pura, à altura da Rita mutante, da Rita tutti-frutti ou da Rita roberta-de-carvalha.

Dona Rita, em foto-divulgação de "Reza", feita pelo marido-parceiro Roberto de Carvalho

Reza tem várias variáveis de canções-xingos. Em “As Loucas”, ela segue outra de suas bandeiras de sempre, a feminista, e investe contra a hipocrisia macha-machista-misógina: “Eles amam as loucas/ mas casam com outras” (com as chatas de “Tão”, provavelmente). Em “Paradise Brasil”, pressiona de leve a veia política (também reacionária) que a atormenta, num beliscão sutil ao país natal, visto por ela, para variar, como paraíso tropical-tropicalista habitados por carmens mirandas, bananas e tucanos (esses a letra não cita).

Mas a melhor verve da Rita 2012, e aqui ela vence de lavada os manos Caetano e Bethânia, é a da canção de autoxingo. Dona Lee é mestre em se autoavacalhar, daquele jeito que faria Eduardo Dussek, daquele modo inteligentíssimo que critica você e eu parecendo que está esculhambando apenas a si. “Divagando”, “Vidinha” e “Tô um Lixo” são as obras-primas de Reza nessa vertente.

“Divagando/ devagar/ quase parando/ de pensar”, glosa o mote-mantra da primeira. “Faço terapia/ malho todo dia/ pratico ioga/ não uso mais droga/ tomo ansiolítico/ em estado crítico/ na crise de pânico/ propofol orgânico”, reforça a segunda, entregando as agruras de estar às portas da “melhor idade” (dona Rita tem 64). E o refrão explode: “Vidinha besta/ vidinha furreca/ vidinha chinfrim/ ô vidinha de merda”. Se a vida dela, que é pop star, é assim, imagina a nossa.

“Tô um Lixo” é outro primor de autoavacalhação: “Parei de fumar/ parei de beber/ parei de jogar/ parei de ser aquele ser cafajeste/ aquela peste/ nem banho tomo mais/ trabalho tanto faz/ a cabeça tá um jazz/ eu vivo pelos cantos feito bicho/ eu tô um lixo”. Trata-se de reclamol azedo tipicamente paulista (até nessa linha Rita é a nossa maior compositora em atividade via São Paulo — inclua mulheres e homens). O queixume, no entanto, é atenuado pela agridoçura da melodia, vibrante e tipicamente bubble gum.

Uma quarta faixa expõe, de modo camuflado, o instinto autodepreciativo de Rita Lee. “Bamboogiewoogie” faz espelho com “Paradise Brasil” no papel de manifesto sempre-tropicalista, que Rita, como Caetano, nunca esquece de sublinhar. Eletrônico como quase tudo no disco, o arranjo faz lembrar um baião pós-tropicalista, um afago da paulistana profissional no pernambucanismo centenário de Luiz Gonzaga — bem mais antenado com 2012 que a dance-house de “Paradise Brasil”.

De novo, Rita repete chavões da “tropicania” tropicalista, inaugurando neologismos trôpegos como “tupinikingkong”, “babalorixamego”, “bamboogiewoogie” — o universal & o local, o Brasil & o mundo, o som universal, todas aquelas mumunhas antropofágico-modernistas-tropicalistas. Só que há ali um refrãozinho, o mais confessional do CD, na mais inspirada de suas faixas: “Eu I love you, mas você não love me eu”.

A compositora costuma reclamar que paulistanos e corintianos não gostam dela — que, por sinal, é paulistana e corintiana, logo… Dois versos antes do refrão, já entregou de bandeja a relação com o Rio de Janeiro: “Copacabana me engana que eu gosto”. Pensemos em “eu I love you, mas você não love me eu” como queixa direcionada não a uma pessoa, mas a uma cidade (São Paulo?), um estado (Rio?), um país (Brasil). “Voy a me matar, atirar-me da ponte, se não me quieras”, dramatiza em portunhol ao final, com voz de pândega em chantagem emocional bem paulista embutida na eterna rixa autofágica da tropicália com o Brasil.

Mesmo considerando que Rita sempre foi muito mais leve na brasilfobia que seus herdeiros da geração pop-roqueira dos anos 1980, a tensão perene resiste: afinal, quem não gosta de quem nessa joça?

Se há resposta para isso em Reza, está em “Bamboogiewoogie”, em “Paradise Brasil” e nas faixas que são a especialidade de Rita & Roberto, as gomas de mascar transnacionais com letras feitas de trocadilhos aparentemente bobos: “Gororoba”, “Bagdá”,  “Tutti Fuditti”.

“Gororoba” cobiça a cultura pop norte-americana (é uma canção-“merchan” perversa, um tributo cafajeste à Coca-Cola), mas comunica-se diretamente com o “seu garçom, faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada” de “Conversa de Botequim” (1935), do carioquíssimo Noel Rosa. Muito já se disse que o pop de Rita & Roberto era um modo excêntrico de fazer marchinha carnavalesca, samba ou coisa parecida, e é por aí mesmo que a barca corre.

“Bagdá” brinca com termos sonoros derivados da cultura árabe. E joga um “vatapá” entre tabules, esfirras, quibes e húmus. O próprio Caetano parece gostar da semelhança física com Bin Laden — citado explicitamente em “Bagdá”, entre (Salvador d’)Ali Babá e Saddam Hussein. Quem ousaria citar simpaticamente tais vilões mundiais numa letra pop? Rita Lee ousaria — ela, que em 1976, em “Arrombou a Festa”, foi a única a furar um cerco de concreto armado e citar nominalmente o então já proscrito Wilson Simonal.

Em “Tutti Fuditti”, por fim, a brincadeira é com termos italianos (e nem à distância passa por citar seu grupo setentista-feminista, o Tutti Frutti, como se pode a princípio deduzir). “Siamo tutti fuditti/ maledetto mondo cane/ voglio a mangiare dinamite, dinamite, dinamite”, ela pipoca, em versos que, pensando bem, são autoesculhambativos (“maledetto mondo cane”, “alegro ma non treppo”) e chantagistas emocionais paulistanos profissionais (“voglio mangiare dinamite”).

O arranjo de “Tutti Fuditti” lembra de perto a Rita Pavone de “Datemi un Martello” (1964) e, por intermédio dela, o iê-iê-iê praticado nos anos 1960 a partir de São Paulo, Celly Campello, Os Incríveis, Wanderléa e que tais. Ainda que seja por vieses estadunidenses, árabes, italianos ou punk-roqueiros, Rita Lee é paulistanidade pura, entre gostosos e amorosos e sofisticados tratamentos musicais.

Deixa de manha, dona irRita, a gente também te ama – que discaço, o seu novo.

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop do Yahoo! Brasil.)

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2 COMENTÁRIOS

  1. Vamos ouvir como ficou o trabalho após esses anos de hiato. Como não assisto mais TV e isso a uns 6 ou 7 anos, não ouvi uma das canções dela que está na trilha de novela global.Em termos de ouvir coisas ando mesmo escutando Edu Lobo, Villa Lobos, Arrigo Barnabé e uns jazzes de Ryo Utasato.
    Pelo texto não tem nada no estilo tchu, tcha.

  2. O Ministério da Cultura do Brasil está sendo ruído por verdadeiros ratos !!!
    Sei o que acontece por lá, estão acabando com o pouco que existia.
    Internamente o que existe é uma porção de servidores desmotivados, com uma Ministra que não tem nenhuma força política, a Dona Ana está “cagando e andando” para a cultura brasileira.
    Não é preciso dizer mais nada, está ai para qualquer um ver!
    O Brasil diante de sua grandeza, não merece Ana de Hollanda como ministra.
    Vocês precisam saber o que está acontecendo internamente!!!
    Os servidores não tem culpa da ministra que têm, e nem o Brasil merece isso !!!
    Não estou aqui reclamando de salário, que na verdade é mesmo uma piada. Estou aqui na condição de brasileiro e que passa os dias ali no MinC. Gente!!! é necessário URGENTEMENTE uma MOBILIZAÇÃO em prol da CULTURA do Brasil!!!
    Até quando vamos ter Ana de Hollanda no MinC???
    Uma pessoa que não sabe conduzir um discurso com o mínimo de lógica, gente!!! precisamos da alguém que saiba e entenda realmente de cultura no MinC !!!

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