Brian Wilson, muito além de “Pet Sounds”

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Brian Wilson
Brian Wilson durante a "The Beach Boys 50th Anniversary Reunion", no New Orleans Jazz & Heritage Festival 2012 - foto Takahiro Kyono/Flickr

Não me entendam mal: o álbum Pet Sounds (1966) é mesmo tão bom quanto dizem ou ainda melhor, difícil superestimá-lo. Só enche o saco ouvir sempre a mesma história desde que tomei conhecimento de quem eram Brian Wilson (1942-2025) e os Beach Boys, isso há mais anos do que gostaria de admitir. E desde que Brian morreu, em 11 de junho, a ladainha voltou com força total, contada até por gente manifestando pesar sincero, até por quem se diz grande admirador dele.

Variando minimamente em tom e termos, é o seguinte:

• No começo dos anos 1960, o californiano Brian Wilson escrevia para a banda que liderava, os Beach Boys, canções bonitinhas e bobas;

• Depois de ouvir Rubber Soul, dos Beatles, em 1965, teve uma epifania ao reconhecer a coesão conceitual do álbum, com cada faixa ocupando uma posição precisa para um sentido artístico uno;

• Inspirado, no ano seguinte lançou o majestoso Pet Sounds;

• Estabeleceu-se uma concorrência saudável com os Beatles, que por sua vez também foram influenciados pelos Beach Boys em certos aspectos perceptíveis nos álbuns Revolver (1966) e Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (1967);

• Brian tentou compor um álbum ainda mais ambicioso para suceder Pet Sounds, mas pirou e nunca conseguiu completar Smile;

• Depois disso, teve uma existência triste e limitada por problemas de saúde mental, vivendo de glórias passadas até sua morte.

Ué, mas não foi isso o que aconteceu? Não. Em alguns pontos, essa narrativa se mostra imprecisa e simplificada — e no grosso do conteúdo é só falsa mesmo. Tentemos lidar com a baboseira ponto por ponto.

As falsas canções bobinhas

Limitar a grandeza de um criador da altura de Brian Wilson à realização de um único álbum, por melhor que seja, fica entre o ignorante e o ofensivo. Os Beach Boys lançaram muitas e muitas canções lindíssimas (ou “artisticamente relevantes”, para adotar um tom menos de fã) antes de Pet Sounds.

Os Beach Boys em 1963, na era pré-“Pet Sounds” – foto promocional de domínio público

Certo, nos primeiros anos, de 1962 até 1964, a temática lírica de surf, carros e fruição veranil com garotas foi predominante nas canções dos Beach Boys, e abordada de maneira um tanto ingênua — chega a ser engraçado como uma música tão impressionante como “Don’t Worry Baby” (1964) pode ser acompanhada de uma letra tão besta. Ainda assim, há exceções, notoriamente “In My Room” (1963). E, em todo o caso, a responsabilidade pelos versos das canções do grupo, na maior parte dos casos, é total ou parcialmente de parceiros: Brian raras vezes se sentiu à vontade para escrever letras sozinho.

Sonoramente, no entanto, desde o princípio se esteve longe do elementar. Falar que as primeiras gravações dos Beach Boys consistem em típica surf music acrescida de canto e letra beira o criminoso.

Com o perdão de quem já se esforçou para me tentar ensinar teoria musical e harmonia, façamos uma simplificação extrema para fins ilustrativos: na música ocidental, há 12 sons que podem se combinar e ser sequenciados, teoricamente, de infinitas maneiras; na prática, porém, existem padrões na música popular muito recorrentes e previsíveis. Por isso é que músicos experimentados (eu lembro o Caçulinha no Domingão do Faustão) conseguem acompanhar sem ensaio um intérprete que começa a cantar, ainda que seja uma música nunca por eles ouvida.

Claro, sempre dá para complicar as coisas. O problema é que se o compositor vai muito fundo na fuga dos modelos, acaba alienando o ouvinte médio, que não conseguirá se sensibilizar com a música, por estranheza. Brian Wilson, desde suas primeiras composições, soube trabalhar com o não convencional na medida certa para causar uma sensação de surpresa e elevação, sem perder a fluidez da música pop que se comunica com a massa.

(Cabe outra explicação: assim como MPB, ao menos na origem da sigla, não indica toda a música popular brasileira, pop music não é a mesma coisa que popular music. A abreviação pop passou a ser usada largamente só no começo da década de 1960, para indicar música de alto apelo comercial junto à juventude, ligada ao rock e a gêneros “jovens” a ele relacionados ou a ele posteriores. Frank Sinatra, em 1964, era um nobre representante da tradição da american popular music, mas não fazia música pop.)

Brian se valia daqueles termos complicados como tonicização, modulação, intervalo dissonante, sequência incomum de acordes, acordes não diatônicos, acordes invertidos, quebra de andamento — sem que o resultado soasse complexo ao ouvinte que não tivesse a mínima ideia do que isso quer dizer. Mas se o saudoso Caçulinha pegasse para tocar de prima, por exemplo, “Girls on the Beach“, ainda de 1964, junto com algum cantor, ia dar-lhe canseira acompanhar sem partitura e sem conhecer previamente a música, podem estar certos.

E mesmo quando a canção tinha uma sequência de acordes muito básica, típica de rock and roll, como “Catch a Wave” (1963), vinha acompanhada de nada básicos arranjos vocais para quatro, cinco ou mais vozes (com a possibilidade de sobreposição em estúdio). Além da famosa sofisticação das harmonias vocais escritas por Brian, a combinação de vozes era favorecida pela familiaridade e pelo poder da repetição.

Os Beach Boys eram inicialmente Brian, seus irmãos Dennis e Carl, seu primo Mike Love e o amigo de infância Al Jardine. Desde criancinhas cantavam juntos, instigados pelo obsessivo Brian a cantar quantas vezes fosse determinado trecho até que estivesse perfeito. Sua principal influência nesse campo eram os Four Freshmen, grupo do qual, segundo a lenda, sabia cantar todas as vozes de todas as gravações.

Desde o álbum Surfer Girl (1963), Brian era responsável por cada som que se ouvia nos discos de Beach Boys. Empolgados pelo sucesso da canção “Surfin’ USA“, a gravadora Capitol não teve escolha a não ser atender às exigências do líder do grupo, que conseguiu concentrar as funções de compositor, cantor, instrumentista, produtor, arranjador e regente. Sim, regente, pois já nesse álbum havia sua canção “The Surfer Moon“, com modulações na parte B e uma seção de cordas que Brian, aos 21 anos, com treinamento formal em música de nível rudimentar, conduzia sabe-se lá como. A essa altura, os Beatles não haviam nem lançado “I Want to Hold Your Hand” (1963).

A concepção de Pet Sounds

A influência da audição de Rubber Soul (1965), dos Beatles, para a feitura de Pet Sounds aparece superestimada na maioria dos relatos, por uma série de razões. “Ah, mas eu já li uma entrevista com o próprio Brian Wilson dizendo que…” Infelizmente, depois de sofrer por décadas com transtornos mentais tratados de maneira temerária, Brian não era uma testemunha confiável, nem sequer de sua própria história.

Notoriamente, por exemplo, declarava a cada instante ter um álbum ou uma canção diferente de sua lavra como favoritos. Como uma criança, ele não via problema em ter uns 30 prediletos ao mesmo tempo. As induções repetidas de entrevistadores ajudaram a consolidar uma balela incoerente, até por razões de calendário. Primeiramente, há a bobagem da tal unidade conceitual de Rubber Soul. Alguns vão além e conseguem ver o disco como o primeiro álbum conceitual da história. Dar aos Beatles esse mérito — ou ao Who, ao King Crimson ou qualquer outra banda de rock — só pode ser ideia de roqueiro em delírio, crente de que a música popular começou com Chuck Berry e Elvis Presley.

Na verdade, Rubber Soul não poderia ter servido de inspiração em sua (falsa) unidade conceitual, até porque a versão americana do álbum era consideravelmente distinta da versão inglesa, depois adotada como padrão. Não havia quatro faixas do Rubber Soul que conhecemos (entre elas “Nowhere Man“!) no disco ouvido por Brian, que tinha em compensação duas faixas lançadas originalmente no Help! (1965) inglês.

A discografia dos Beatles nos Estados Unidos até antes de Sgt. Peppers era uma bagunça, basicamente compilações de canções lançadas durante certo período em distintos álbuns e compactos. Isso não poderia ter servido a Brian como inspiração conceitual — e mesmo o Rubber Soul inglês não é álbum conceitual coisa nenhuma, vamos convir. Brian no máximo percebeu no disco norte-americano um admirável apanhado de canções, sem números ruins para encher linguiça. Mas quando Rubber Soul foi lançado, em dezembro de 1965, três faixas de Pet Sounds já estavam prontas e gravadas.

E, se for para forçar a barra, o álbum dos Beach Boys Today!, lançado em março de 1965, com um lado A de canções “para cima” e um lado B introspectivo, era mais conceitual do que Rubber Soul — cabe até lembrar de Little Deuce Coupe, álbum produzido por Brian em 1963 para os Beach Boys, só com canções sobre carros.

Querendo, em óbvio simplismo, isolar uma influência em Brian que o levou à feitura de Pet Sounds, o nome de Phil Spector tem mais peso do que os Beatles. Em dezembro de 1964, Brian teve uma crise de pânico durante um voo ao cumprir agenda de shows com os Beach Boys, o primeiro sinal das doenças psiquiátricas que o atormentariam pelo resto da vida. A partir desse ponto, decidiu que não mais excursionaria com seu grupo, dedicando-se a ficar em casa produzindo gravações enquanto seus colegas seguiam pelos palcos.

Os Beach Boys seriam, durante o biênio 1965-1966, basicamente um grupo vocal. Quem realizou as funções instrumentais em estúdio no período foi o mesmo conjunto de músicos, conhecido informalmente como The Wrecking Crew, que trabalhava com Phil Spector e já havia participado de sessões de gravação com Brian esporadicamente.

Em relatos posteriores, esses instrumentistas comumente relatam inicial desconfiança com aquele fedelho acumulando trocentas funções, autossuficiente na indústria em seus 22 anos, um Orson Welles da música pop. Além disso, dava ordens em linguagem um tanto heterodoxa, justo para aquele time especialista em executar partituras em leitura à primeira vista. Mas depois do ceticismo, ficavam agradavelmente espantados ao ver que o produto concluído… dava certo, e muito.

A partir de Today!, Brian começou a empregar de maneira sistemática as técnicas do famoso método “wall of sound” desenvolvido por Spector. Resumidamente, consistia em combinar muitos instrumentos distintos tocando em uníssono, o que gerava na mixagem timbres únicos e um som grandioso — o próprio estúdio se transformava em um instrumento. Com isso, Brian igualava nas faixas instrumentais a opulência das harmonias vocais já presentes desde o começo da carreira dos Beach Boys.

Nas letras do lado B de Today!, também já era introduzido o elemento de angústia em relação ao amadurecimento, comum às canções de Pet Sounds. Faixas como “She
Knows Me Too Well”, “In the Back of My Mind” e “Let Him Run Wild” — do álbum
posterior Summer Days (and Summer Nights!!), ainda de 1965 — poderiam entrar sem estranhamento nenhum no álbum mais famoso do grupo.

O elemento novo em Pet Sounds foi a autoexigência de Brian de manter o padrão de qualidade do começo ao fim do álbum. Também foi humilde ao perceber que ele, com a colaboração diminuta de Mike Love, não tinha o repertório necessário para que as letras das canções estivessem à altura das músicas. Chamou o colaborador Tony Asher para trabalhar junto com ele no álbum. Como Asher contaria anos depois, Brian desenvolvia os temas líricos das canções, enquanto a escolha de palavras era dele. Mas tudo isso aconteceu como desenvolvimento natural do trabalho que os Beach Boys já vinham fazendo havia tempos, não por um surto único de genialidade proporcionado a Brian graças aos Beatles.

A crise de Smile

Lançado em maio de 1966, o álbum Pet Sounds, embora longe de um fracasso, não ficou tão bem-posicionado nas paradas norte-americanas de sucesso quanto os álbuns anteriores dos Beach Boys, atingindo o décimo lugar. Mesmo entre a crítica, o álbum foi recebido de maneira morna nos EUA. Na Inglaterra é que começou a ganhar o status mítico de que goza hoje, vendendo melhor (chegou ao segundo lugar), ganhando resenhas entusiásticas e despertando pública admiração de colegas músicos, notoriamente Paul McCartney.

Brian não desanimou com a resposta aquém do esperado em seu país. Logo depois, dispôs-se a ir além na ousadia, passando a trabalhar em “Good Vibrations“. A canção já havia sido começada durante as gravações de Pet Sounds, mas foi posta de lado para conclusão posterior com a devida calma.

Na produção de “Good vibrations”, Brian buscou superar o “wall of sound” de Spector. Em vez de registrar uma faixa básica da música do princípio ao fim, para depois preenchê-la com sobreposições instrumentais e vocais, trabalhou-se com módulos. Pequenos excertos musicais eram registrados separadamente, para depois serem sequenciados em montagem de fita, “como no cinema”. E cada excerto podia conter música em tons diferentes e em andamentos radicalmente distintos.

Muito maluco? Talvez, mas o resultado da “sinfonia de bolso”, como definiu seu autor, ficou bom (e palatável) o suficiente para que o compacto com a canção, lançado em outubro de 1966, atingisse o primeiro lugar tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. A crítica também ficou rendida, rotulando Brian como “gênio” (sob um estimulozinho de campanha de marketing da gravadora). Até a letra de Mike Love para “Good vibrations” era legal, admitamos. Era o momento dos Beach Boys.

Para dezembro, estava previsto o lançamento de Smile, álbum em que Brian pretendia usar em larga escala as técnicas modulares ouvidas em “Good vibrations” (que também entraria no álbum), com pitadas de música concreta. Para escrever as letras, chamou o compositor Van Dyke Parks, buscando densidade compatível com a música produzida.

Se em Pet Sounds se mostraram temas “mais maduros”, em Smile a intenção lírica era claramente vanguardista, com versos muito abstratos escritos usando técnicas incomuns para a música pop, como a livre associação de ideias. Depois de sucessivas prorrogações do prazo de entrega, porém, Smile foi cancelado por Brian Wilson em junho de 1967. Porquê? Em termos leigos, Brian teve um esgotamento mental e não conseguiu mais suportar a exaustão do trabalho no projeto.

Uma série de fatores contribuiu para o fracasso: predisposição a transtornos mentais, com indícios negligenciados (se ainda hoje diagnósticos corretos são difíceis, imaginem há 60 anos), somada a abuso no consumo de drogas, resultando em crises envolvendo surtos psicóticos; traumas da infância com um pai abusivo emergindo; falta de apoio dos colegas da banda, notoriamente Mike Love, quanto às inovações do álbum; insegurança ante o sucesso comercial e crítico dos Beatles, que justamente em junho lançaram Sgt. Peppers.

Era muita coisa para o prodígio de 24 anos dar conta. O disco de estreia dos Beach Boys, Surfin’ Safari, foi lançado em outubro de 1962. Se Smile tivesse sido entregue na data inicialmente prevista, seria o 12º álbum de estúdio do grupo num período de quatro anos e dois meses.

O grau de exigência do material idealizado, para alguém sem extenso treinamento formal em música, mostrou-se inaudito. Havia várias sequências musicais com temas recorrentes, passíveis de encaixamento em diversas faixas, e muito material lírico sem definição exata de onde entrar. Sofrendo psiquicamente, em vez de amarrar o que já tinha, Brian ia compondo e gravando cada vez mais, exasperando todos a sua volta e consumindo o orçamento da gravadora.

Chegou ao ponto em que não deu conta e resolveu lançar, no lugar do álbum previsto,
Smiley Smile, que chegou às lojas em setembro de 1967. Do projeto original, havia “Good Vibrations”, já uma canção conhecida há quase um ano, e “Heroes and Villains”, também lançada em compacto malsucedido comercialmente, numa gravação de estranho som abafado e muito resumida. Além disso, restavam outras dez canções, quase sempre instrumentadas em poucas vozes, baixo e órgão, apenas. A maioria delas consistia em reformulações minimalistas de temas previstos para o Smile.

Esperava-se o produto mais grandioso da história da música pop, veio aquilo. Ninguém entendeu nada, e o álbum só atingiu o 41º lugar das paradas norte-americanas, um retumbante fracasso para os padrões do grupo. Além disso, entre Pet Sounds e Smiley Smile correram um ano e quatro meses, uma eternidade para o contexto de revolução cultural da década de 1960. Nesse meio tempo, foram lançados os álbuns de estreia de Jimi Hendrix, do Grateful Dead, dos Doors, do Pink Floyd

Os Beach Boys não tinham agressividade sonora, com sua combinação de vozes angelicais em vez de guitarras distorcidas, e não tinham agressividade comportamental, exibindo-se como perfeitos alienados políticos. Num lapso curtíssimo de tempo, passaram de os artistas do momento a uma mistura tóxica de bizarrice e caretice combinadas.

A aura de Smile, porém, foi crescendo ao longo das décadas. Inicialmente, algumas de suas canções foram terminadas, ou adaptadas, e lançadas em diversos álbuns do grupo. Depois, compilações piratas das sessões começaram a circular entre admiradores, até que em 1993 a própria gravadora Capitol lançou oficialmente uma coletânea dos Beach Boys incluindo algumas faixas compostas para Smile. Fãs faziam suas próprias montagens com as sessões de estúdio sequenciadas a seu gosto. Falava-se do projeto como “o mais famoso disco não lançado da história”, ou “o primeiro álbum interativo”.

Brian Wilson só lançou uma versão acabada de Smile, como artista solo, em 2004. Voltou a trabalhar com Van Dyke Parks, sendo assistido pelo músico Darian Sahanaja, para juntar as peças do quebra-cabeça, colorindo-o aqui e ali onde faltava uma coisinha ou outra. Gravaram tudo do zero. O resultado ficou excelente, mas… Não dava para deixar de notar que não eram os Beach Boys cantando e que o próprio Brian sexagenário tinha um fiapo da voz da juventude.

Em 2011, foi lançada a compilação The Smile Sessions, com as gravações originais para o álbum sequenciadas, até onde foi possível, da maneira determinada no álbum solo de Brian. Agora tínhamos as vozes dos Beach Boys na flor da idade, mas… Não dava para deixar de notar que era um produto incompleto, com grandes lacunas. A grandiosidade total de Smile ainda só pode ser admirada como potência, exigindo abstração do ouvinte para que possa fruir por completo sua beleza tão sui generis.

Vivendo do passado?

Apenas por haver conseguido, em 2004, concluir o projeto Smile depois de 38 anos, já se vê quão errado é sair dizendo (ou insinuar) que Brian Wilson só viveu do passado depois de 1967. Ele criou, no entanto, muito mais — embora sua vida de fato tenha sido triste e limitada pelos transtornos mentais.

Não só Brian não ficou improdutivo depois de Smiley Smile como apenas três meses depois, ainda em dezembro de 1967, já estava lançando outro álbum com os Beach Boys, Wild Honey. E, seis meses adiante, ainda outro álbum, Friends. Esses três álbuns formam uma espécie de trilogia minimalista na carreira dos Beach Boys, produções de instrumentação modesta nas quais os integrantes do grupo voltaram a tocar, em vez de haver majoritariamente músicos contratados cumprindo a função. Na época, pouquíssima gente os ouviu, mas hoje são valorizados pela estética muito própria, ganhando status cult.

Depois disso, gradativamente Brian se afastaria das funções de produtor e intérprete para os Beach Boys. Sofrendo com sua condição psiquiátrica mal assistida, passou a tipicamente mandar canções para seus companheiros a gravarem. Os outros membros do grupo também passaram a compor, com qualidade crescente, mas as canções de Brian ainda roubavam a cena.

De 1969 até 1973, os Beach Boys lançaram um álbum de estúdio por ano. Todos excelentes, todos largamente ignorados em seu país natal na época do lançamento — em outros mercados, notadamente a Inglaterra, até tiveram mais penetração, mas em nosso Brasil, por exemplo, os Beach Boys nunca aconteceram. Algumas das canções de Brian desse período, mesmo longe da notoriedade de “God Only Knows” (1966) e “Good Vibrations”, estão entre as preferidas de críticos e fãs: “Time to Get Alone” (1969), “This Whole World” (1970), “‘Til I Die“, “Sail On Sailor” (1973).

Depois disso, houve a coletânea Endless Summer, lançada em 1974 com os sucessos dos primeiros anos dos Beach Boys, chegando ao primeiro lugar na parada norte-americana. Se trouxe o grupo de volta à exposição midiática, também teve como consequência consolidá-lo como uma atração do passado. Daí para frente, eles estiveram sempre envoltos num clima de nostalgia, abrindo mão de ousadia artística — curiosamente, na altura do lançamento da compilação, Carl Wilson tinha 27 anos, e o mais velho do grupo, Mike Love, apenas 33.

Ainda assim, embora frequentemente sob uma camada desagradável de arranjos infelizes, podem ser descobertas excelentes canções, principalmente de Brian, em quase todos os álbuns posteriores dos Beach Boys. Além disso, há um sem-número de projetos, envolvendo o grupo ou apenas Brian, que não foram terminados por uma razão ou outra, ou rejeitados por gravadoras. Com o passar dos anos, canções desses trabalhos engavetados vieram à tona em compilações oficiais ou piratas, revelando-se muitas vezes melhores do que as apresentadas nos álbuns de carreira (“Soulful Old Man Sunshine“, “It’s Over Now“, “Still I Dream of It“).

No que diz respeito à vida pessoal, Brian foi tratado em 1975 por um psiquiatra chamado Eugene Landy. Com métodos radicais de controle da vida do paciente, livrou o músico de uma morte que parecia próxima, haja vista a quantidade industrial de cigarros, drogas e comida que estava consumindo compulsivamente, além de apresentar comportamento cada vez mais errático e deslocado da realidade. Há quem diga que, nessa fase logo antes de Landy aparecer em sua vida, Brian intencionalmente destruiu sua voz num tratamento baseado em tabaco e cocaína, pois passou a ter vergonha de seu famoso falsete, receando que fosse associado à homossexualidade.

O médico colocou seu paciente próximo dos eixos, mas quando Brian passou a apresentar comportamento minimamente funcional, com a conta psiquiátrica só aumentando, a família achou melhor dispensar os serviços de Landy. Acontece que, passados alguns anos, o comportamento autodestrutivo de Brian e sua alienação do mundo concreto voltaram recrudescidos. Em 1979, Marilyn Rovell, sua esposa havia 15 anos, não aguentou mais e pediu o divórcio.

Landy foi chamado de volta em 1982. Dessa vez, resolveu assegurar que ninguém o interromperia em seus intuitos de controle total da vida de Brian, isolando-o de amigos e familiares, interferindo em questões artísticas e financeiras e até reivindicando parceria em canções compostas pelo paciente, sob vigilância 24 horas por dia. Brian ficou magro e longe das drogas ilícitas, mas por completo dependente do médico-monstro, sob toneladas de medicamentos psiquiátricos.

Desde então até o resto da vida, seu modo de falar e de se comportar publicamente fazia lembrar uma criança grande a um observador externo. No final de 1991, a família Wilson, por meio de processo, conseguiu afastar Landy de Brian. O médico já havia tido sua licença cassada, mas continuava o tratamento de maneira informal. Só parou quando uma medida judicial proibiu qualquer contato entre os dois.

Para completar a barafunda, no começo dos anos 1990 Brian foi processado por Mike Love (que pediu crédito em dezenas de canções por contribuir com algumas poucas palavras) e vários outros familiares, que se sentiram ofendidos por passagens de uma autobiografia escrita durante a era Landy — Brian afirmou posteriormente nem sequer ter lido o texto que levava sua assinatura.

Nesse contexto escabroso, entra em cena Melinda Ledbetter. Quando conheceu Brian, em 1986, era uma vendedora de carros. O músico estava sob custódia de Landy, e o namoro não pôde ir para frente. Depois que o psiquiatra foi afastado, retomaram o relacionamento, casando-se em 1995. Logo Melinda assumiu o gerenciamento da carreira de Brian, fazendo-o manter uma carreira discográfica prolífica e voltar a uma agenda de shows regular, o que não acontecia desde o fim de 1964. Essa ressureição culminaria em Brian Wilson Presents Smile (2004), sem dúvida o ponto máximo de sua carreira solo. Até o fim da vida, sempre se referia à segunda esposa como sua “salvadora” e seu porto seguro.

Mas, como na vida de Brian nada foi tão simples, também houve públicas objeções a essa nova figura de ascendência em sua vida. Carnie Wilson, filha do primeiro casamento do músico, chegou a referir-se a Melinda como “Melandy”, vendo semelhanças no controle total exercido sobre a vida do pai.

Notoriamente, a nova empresária também interferia em questões artísticas, nem sempre de maneira feliz: em meados da década de 1990, desencorajou Brian de continuar um projeto promissor com Andy Paley para levá-lo a estabelecer parceria com Joe Thomas, com quem faria os álbuns Imagination (1998), That’s Why God Made the Radio (2012,
uma reunião dos Beach Boys) e No Pier Pressure (2015). Todos esses, embora salvem-se algumas boas canções, são marcados por arranjos e produção ao gosto de Thomas, no estilo easy listening (algo próximo a “música de elevador” em português). O último desses álbuns, infelizmente também o derradeiro disco de carreira de Brian, mostra-se tão insosso que é de se pensar se o criador dos Beach Boys teve mesmo algum papel criativo naquelas canções. Um canto de cisne desafinado — ou melhor, afinado com Auto-Tune.

O que nos leva à outra questão polêmica envolvendo Melinda. O retorno de Brian aos palcos na virada do século foi amplamente visto como uma vitória, um caso hollywoodiano de superação e volta por cima. Nos últimos dez anos de sua vida — pelo menos —, porém, era muito visível que ele não tinha a mínima condição de cantar e apresentar-se em público. Muito doente, ficava na maior parte do tempo prostrado no palco, sem saber onde e em que ano estava, enquanto sua banda executava antigos sucessos. Assistir aos seus shows dessa última fase tinha algo de obsceno: por que submetê-lo a essa exposição?

Somente depois da morte de Melinda, em janeiro de 2024, anunciou-se que Brian sofria de demência senil e não tinha condições de cuidar de si mesmo — algo já bastante evidente havia muitos anos. Por outro lado, temia-se que sem os cuidados da amada esposa Brian não conseguisse aguentar por muito tempo, o que de fato aconteceu. Relatos dão conta de que o músico nunca compreendeu a morte de Melinda, e até seus últimos dias continuava chamando por ela.

Lembremos ainda que Brian perdeu precocemente seus dois irmãos: Dennis morreu afogado em 1983, com 39 anos; Carl morreu de câncer em 1998, aos 51. Com toda essa vida desgraçada, causa pasmo que mesmo em sua carreira solo, iniciada em 1988 ainda sob o domínio de Landy, haja grandes momentos. Além do miraculoso Smile e de canções aqui e ali em que é necessário relevar os arranjos para a apreciação, lançou pelo menos dois outros excelentes álbuns: Gettin’ In Over My Head (também de 2004, basicamente uma compilação com regravações de diversos projetos engavetados) e That Lucky Old Sun (2007).

Majoritariamente como intérprete e arranjador, também registrou outros três discos muito divertidos: um de canções natalinas (What I Really Want for Christmas, 2005), outro com releituras à Beach Boys de canções de George Gerhswin (Brian Wilson Reimagines Gershwin, 2010) e ainda outro com canções de filmes da Disney (In the Key of Disney, 2011).

As sobrancelhas podem se erguer quando se veem essas escolhas temáticas vindas de um astro do rock. Para apreciar a obra de Brian, no entanto — e isso desde Pet Sounds —, torna-se fundamental esquecer essa sua associação forçada com o estilo. Continuaram ligando-o ao rock and roll porque no começo de sua carreira a fórmula básica era a mistura de Chuck Berry com os Four Freshmen. Algo meio no espírito “uma vez roqueiro, sempre roqueiro”.

Fica óbvio a qualquer ouvinte atento, porém, que sua música é muito mais próxima de Richard Rodgers do que de Jimi Hendrix ou Eddie van Halen. Para quem se amarra num “rockão com energia crua, pegada e atitude”, a arte de Brian pode não fazer mesmo muito seu estilo. Se o negócio são belas canções, no entanto, temos com ele algumas peças do que de melhor se produziu no gênero.

Roteiro para conhecer Brian Wilson

O primeiro passo óbvio é começar escutando uma coletânea dos Beach Boys, para conhecer os hits de sua carreira e ter uma visão geral de sua obra. Há inúmeras, de variados tamanhos. Sounds of Summer: The Very Best of The Beach Boys se mostra uma
escolha bem razoável, mas se deve ouvi-la sabendo que está longe revelar todo o ouro.

Em seguida, como não, o negócio é mesmo deliciar-se com Pet Sounds. Depois, torna-se necessário mergulhar no universo de Smile. Imprescindível apreciar tanto as gravações originais, compiladas em The Smile Sessions (vá até a faixa 19 do primeiro disco, o resto são excertos para fãs contumazes), quanto o álbum solo em que Brian finalmente apresentou um produto acabado.

Um ouvinte casual de Beach Boys e Brian Wilson provavelmente já terá passado por essas etapas. Para aprofundamento, no qual ficará evidente que os lugares-comuns sobre a banda e o artista estão longe da verdade, preparei três playlists: uma com canções dos Beach Boys de antes do Pet Sounds, uma com canções da banda posteriores ao cancelamento de Smile, e outra da carreira solo de Brian Wilson. Os links são do YouTube, pois nem todas as faixas estão disponíveis nas plataformas de streaming

Tudo isso fica restrito à produção de Brian Wilson como compositor. Há ainda muitas contribuições relevantes dos outros membros da banda e tantas outras canções de primeira qualidade que ficaram de fora. O universo envolvendo os Beach Boys se oferece riquíssimo em tragédias e belezas.

André Simões é jornalista e escritor, autor dos livros Francis Hime – Ensaio e Entrevista (2023) e Chico Buarque em 80 Canções (2024), ambos lançados pela Editora 34.

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