O dia hoje pareceu irreal. Acostumado aos dias perdidos em Brasília peregrinando por gabinetes para tentar ser escutado por pessoas que nem sempre acham relevantes os assuntos culturais e aos prazos dilatadíssimos para progressos ínfimos, quase não consegui acreditar no que se passava diante de meus olhos.
Acompanhado pelos artistas e compositores Jorge Vercillo, Dudu Falcão, Fernanda Abreu, Fernando Anitelli (do grupo O Teatro Mágico), Esdras Nogueira e Paulo Rogério (da banda Móveis Coloniais de Acaju), Tim Rescala, maestro Rênio Quintas, Felipe Radicetti, Cristina Saraiva – representantes de um grupo muito maior – e de produtores de selos independentes e advogados ligados à nossa causa, vi o duro relatório da CPI do Ecad ser aprovado em alguns minutos, com a presença de um único representante dos investigados: um advogado assalariado da casa. Nem um único dirigente ou artista simpatizante para defender o indefensável.
Há um ano atrás eu não achava que tinha sequer o direito de sonhar com o fim de uma plutocracia de décadas que, apesar de ser uma conquista da classe, foi se degenerando e se apoderou do direito autoral desdenhando dos autores e da sociedade civil. Começava a ruir na minha frente, com uma falta de pompa assombrosa, como um castelo de cartas atingido pelo sopro de uma criança, um monopólio arrogante e, até então, intocável.
Claro que o resultado aparentemente tranquilo foi resultado de uma mobilização e de uma articulação política nunca antes conseguida. Além do esforço de uns poucos artistas – a classe é desinteressada (ou interessada demais, no mau sentido), desinformada ou medrosa –, contamos com a dedicação de vários políticos que não mediram esforços para entender e desmascarar esquemas de desvios de dinheiro e abuso de poder. Entre eles o senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), presidente da CPI, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ), o deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ) e a guerreira da cultura, deputada Federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), presidente da Frente Parlamentar da Cultura, que nos orientou em nossas ações junto ao Congresso e ao Executivo.
Tivemos ainda a academia participando através da consultoria e apoio da Fundação Getúlio Vargas (FGV) – Ronaldo Lemos e Pedro Paranaguá. E ainda a impressionante mobilização da rede – estivemos nos trending topics do Twitter durante e após a votação -, dos artistas independentes, da cultura digital e muito mais.
Foi um dia de sonho. Primeiro a aprovação de um relatório que não apenas aponta culpados, recomendando o indiciamento de 15 dirigentes do Ecad e das sociedades que o compõem, mas que também sugere, através de um anteprojeto de Lei, uma nova ideia de direito autoral para o Brasil – que teve sua reforma tão retardada pela atual gestão do Ministério da Cultura (MinC) que parece que foi esquecida – e, para fechar com chave de ouro, ainda pede a criação de uma Secretaria Nacional de Direitos Autorais e de um Conselho Nacional de Direitos Autorais dentro do Ministério da Justiça para fiscalizar, supervisionar e orientar o direito autoral no Brasil. Mais completo, impossível.
O ato público que seguiu a votação do relatório foi acompanhado por duas funcionárias do Ecad que filmaram as falas de todos que comemorávamos a ocasião histórica. Enquanto filmavam, balançavam a cabeça e bufavam como se estivessem na frente de um bando de lunáticos. Agora é ficar de olho se nós que nos expusemos não seremos retaliados pelo Ecad e pelas nossas sociedades. Nos próximos dias teremos pagamento e já vai dar para ter uma ideia. Qualquer coisa eu berro aqui.
Mas o conto de fadas ainda não tinha acabado. Nossa trupe partiu para entregar o relatório na Procuradoria Geral da República, que garantiu celeridade para encaminhar as recomendações de indiciamento ao Ministério Público. A primeira demanda da CPI foi acolhida de braços abertos.
Fomos então atendidos pela ministra da Secretaria de Relações Institucionais, Ideli Salvatti, que, depois de nos ouvir atenciosamente, nos disse que passou a ser uma ativista da nossa causa, tanto na parte legislativa da reforma da Lei do Direito Autoral quanto no encaminhamento da criação dos órgãos. Mais dois golaços!
Nada foi conseguido ainda, mas sem a CPI nada poderia ser almejado. No caso do Ecad, como diz um amigo meu que está sem receber direitos de execução há um tempo, “o buraco é mais embaixo e a instância é mais em cima”. Vamos continuar acompanhando de perto a evolução dessa história para o bem do direito autoral no nosso país.
Hoje quando acordei levei um tempo pensando se tudo isso havia realmente acontecido e fiquei feliz em perceber que vivemos num país onde é possível lutar contra privilégios arraigados e buscar justiça. E que, apesar da má fama, dá para contar com alguns políticos e que esses trabalham muito pelo que acreditam. É só questão de saber escolher.
(Leoni é ativista digital, cantor e compositor independente carioca, ex-integrante dos grupos Kid Abelha e Heróis da Resistência.)
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O alvo é mesmo o ECAD?
Deve existir algum sinal positivo na péssima cobertura jornalística da recém-finalizada CPI do Ecad. Imagino que a mídia corporativa ficou temerosa de penetrar nos intestinos burocráticos do misterioso escritório. Isso faz ainda mais necessária a investigação das suas contas e a criação imediata de um organismo público de controle externo que o fiscalize permanentemente.
Há uma oportuna campanha na blogosfera contra a entidade. O problema é que os ataques não parecem capazes de amadurecer um discurso coerente e sólido sobre o núcleo da questão (o novo paradigma jurídico para os direitos autorais) e continuam presos àquele maniqueísmo personalista voltado a desqualificar Ana de Hollanda. Nada contra questionar a ministra e forçá-la a discutir certas plataformas de maneira explícita – algo que ela deveria ter feito desde o início, e não fez. Mas os argumentos usados para constrangê-la são muito fracos.
Tratar os defensores da propriedade intelectual como capitalistas exploradores ou lacaios da indústria do entretenimento equivale a afirmar que os inimigos de Ana de Hollanda são quadros partidários desalojados pela troca de governo, ou que eles se interessam apenas pelo acesso gratuito aos bens da própria indústria alienante. O curioso das mistificações tolas é que seus propagadores chegam ao cúmulo de reproduzir textos divulgados pela imprensa reacionária e pelas tevês pagas, que lutam para salvaguardar seus privilégios e possuem uma agenda frontalmente antagônica à dos ingênuos aliados ocasionais.
Não sei se a cúpula do MinC age segundo as melhores intenções. Mas tenho por óbvio que sua aproximação com o Ecad contribui para legitimar o debate sobre os direitos autorais, que nunca chegará a termos razoáveis (e democráticos) sem a participação de todos os atores envolvidos na extensa rede produtiva da cultura. Quando finge não perceber essa necessidade e quando ignora a relevante parcela da classe artística favorável ao órgão, a militância virtual se afasta do interesse público e levanta suspeitas sobre a viabilidade dos seus propósitos.
http://guilhermescalzilli.blogspot.com.br/
De nossa parte, Guilherme, estamos tentando, quase que quixotescamente, discutir essa questão da forma mais ampla possível. Algumas observações: o MinC, o Ecad e artistas que, com todo direito, defendem o atual regime de direitos autorais, não nos concedem entrevista para nós. Talvez por que sejamos “pequenos” para eles? Ou por que nos vejam como “juquistas”, os seus referidos “quadros partidários desalojadas pela troca de governo”. Admitimos que somos pequenos em tamanho, mas não somos doidos a falar a troco de nada. Mas não fazemos parte de uma blogosfera “juquista”, até porque o ex-ministro nunca nos beneficiou em nada.
Isso posto, convido-o a fazer parte desse debate, que demonstra ter interesse. Essa é uma discussão complexa, sim, mas necessária. O debate, por ora, está interditado, e não é por conta da blogosfera, acredite. Sem esta, certamente, não haveria discussão alguma – ainda que seja desvirtuada, na sua concepção. Enfim, seja bem-vindo! Sua opinião é realmente muito importante.
Guilherme, não há ninguém aqui contra o direito autoral. Artistas como Jorge Vercilo, Fernanda Abreu, Dudu Falcão e eu ganhamos um bom dinheiro como autores. Somos contra a forma como o Direito Autoral é administrado. Você sabia que todos os votos nas Assembléias, tanto das Sociedades como do ECAD, são proporcionais ao faturamento? E que entre os 20 maiores arrecadadores apenas 6 são autores? As decisões portanto ficam nas mãos das editoras e gravadoras multinacionais.
Nada contra o capitalismo, mas tudo contra o capitalismo desregulado que atende primeiramente às corporações enquanto inúmeros autores talentosos não têm como sobreviver. Sem falar da sociedade civil que não tem a quem recorrer dos abusos do Escritório.
A discussão da CPI do ECAD nem esbarrou no MinC. Deve chegar lá, já que o último vive defendendo o primeiro. Mas esse já é outro capítulo.
Obrigado pelas críticas, são importantes para ajudar a nos nortear, Guilherme.
Não consegui distinguir perfeitamente quais são direcionadas ao FAROFAFÁ ou não, mas repito, é muito importante pros quixotes aqui saber como ecoamos do outro lado da parede invisível.
Tendo a concordar com tudo que Eduardo e Leoni colocaram, e acrescento um ponto: nós, jornalistas, também somos autores, e, como tal, estaríamos dinamitando nossa própria construção se defendêssemos qualquer vale-tudo no direito autoral. É justamente o inverso.
Mas há um ponto delicado aqui: por piores que sejam (e achamos que são), os direitos autorais na área musical estão estabelecidos, colocados, consolidados. Somos a favor da preservação, mas também da modernização e da adequação ao presente.
Nossa situação, como jornalistas – e digo isso para TODOS os muitos jornalistas que passam por aqui diariamente -, é muito pior. Nós simplesmente nos acostumamos a abdicar de todo e qualquer direito que não seja o de receber um salário no fim do mês. Os principais meios de comunicação frequentemente reenviam textos que escrevemos para eles para veículos do Brasil inteiro, e não nos pagam um centavo a mais por isso – ou seja, nós não temos direitos.
Não acho que a ministra da Cultura deva nos “salvar” a esse respeito (se nós não nos auto-respeitamos, quem vai?), mas nem por isso deixa de ser aviltante ouvir ela falar do Ecad com orgulho (justificado) e sempre em tom de forte defesa, enquanto não demonstra preocupação qualquer por outras modalidades análogas e contíguas de respeitos. No jornalismo, ela só defende direitos de quem defende os direitos da classe DELA – Ancelmo Góis, Helena Chagas, José Nêumanne, João Bosco Rabello…
Era melhor que isso com Gil e Juca? Não era muito melhor, não? Mas eles não esfregavam o corporativismo deles nas nossas fuças, como agora.
Ufs, desabafei! 🙂
Tudo motivado pela linda demonstração de orgulho e amor próprio do texto do Leoni…
🙂
Uia!
Ficou bom à beça de comentar na FAROFA nova, né?
#AmorPróprio
Quero aqui deixar o meu eterno agradecimento à esses guerreiros que foram incansáveis nessa luta. Sabemos que a guerra não está vencida. Mas a 1ª batalha sim…e com larga vantagem…Obrigada Leoni, Vercillo, Dudu Falcão, Ivan Lins, Fernanda Abreu e todos os “poucos” da classe que botaram a cara e foram incansáveis… Obrigada também a Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), presidente da CPI, senador Lindbergh Farias (PT-RJ), o deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ) e a deputada Federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) que deram sustentação e apoio político para que essa CPI não acabasse em pizza. Esse dia foi histórico. Sempre acreditei que essa mudança poderia acontecer e que a promessa de uma renovação se torne realidade em breve. A Cultura agradece e eu me sinto orgulhosa em fazer parte de uma classe que foi brilhantemente representada por vocês.
Ninah Jo
Viva, Ninah Jo, alguém da classe musical se manifestando! É isso aí, a luta só está começando.
Guilherme Scalzilli
Como você postou aqui um texto do seu blog, como fez com o meu texto publicado no Trezentos, imagino que como a água dos moínhos é a mesma, repondo-lhe por aqui.
Temos mesmo que fazer muita festa, pois foi uma longa e dolorosa luta que envolve questões bem mais profundas do que o direito autoral, mas o direito da sociedade e de muitos músicos se protegerem desse cartel. Não vi, nesse tempo todo, alguém forçar a barra contra o legítimo direito do autor. Tudo foi conduzido a partir do estado de direito. O horror do casamento entre MinC e Ecad é que colocou a noiva no altar.
A ministra, antes mesmo da posse, talvez tomada pelo ímpeto de uma vertigem causada pelo poder do cargo, se comportou da pior forma sendo juíza, o que já é um desastre, mas determinando uma sentença contra a sociedade, contra a reforma da LDA. Isso sem falar que na mesma entrevista, com sua maneira desajeitada, também anunciou, em tom profético, que a Lei Rouanet estava boa e não pretendia mexer nela. Ou seja, de cara ela desmoronou o debate do qual milhares de pessoas fizeram no Brasil durante muito tempo. E lhe digo mais, a ministra foi tão centralizadora que ficou mesmo parecendo que a questão do direito autoral começou a ser debatida a partir de sua gestão.
Então, quando você inclui aqui a ministra, seguindo um dos dois bordões dos que a defendem, e eu já li suas defesas a ela, é dito que os ataques são dirigidos à Ana de Hollanda, quando na realidade são à ministra, melhor dizendo, sua gestão e, assim, você desqualifica quem a critica sem um contraponto cirúrgico e pragmático sobre o que foi levantado. Essa generalidade foi conduzida por alguns de seus mais próximos conselheiros ou gurus para que utilizasse a autocomiseração e carregasse a mão em usar não só a própria pessoa da ministra como blindagem, mas de toda a sua família que tem um histórico que o povo brasileiro, de forma inabalável, continua respeitando.
Portanto, meu caro, vamos engatar uma segunda, temos muito debate pela frente, a reforma da Lei Rouanet, a questão dos Pontos de Cultura, enfim, temos um país pela frente para ser discutido.
Quero também parabenizar ao Leoni por este poético texto que desperta com emoção como uma organização social pode ser, através de seus movimentos, a grande ferramenta de transformação deste país.
Abraços a todos.
Carlos Henrique Machado Freitas.
Ai, Carlos Henrique, que bom ouvir as suas palavras. Soam como um bálsamo para a cultura brasileira. Mas, permita-me uma sugestão, não vamos engatar a segunda, não. Vamos direto para a terceira, quarta, porque já passamos dos 60 quilômetros por hora.
Esse forró aqui tá bom demais. Sem mais a acrescentar, a não ser que me sinto em casa por aqui. Esse grupo não é pequeno, nem é minoria, não está de fora, está dentro desde sempre. O lado de dentro é daquele que cria, trabalha e luta. Um abraço ao Leoni, ao Carlos Henrique e aos jornalistas anfitriões.
Forró? Uma coisa meio assim? http://youtu.be/SoybVzCw-rc
Há muito tempo o Ecad vem literalmente metendo a mão no direito dos compositores brasileiros e sempre foi uma incógnita a mensuração desse processo. Enquanto isso outros mais afortunados passaram décadas estufando os bolsos com dinheiro do ECAD como se suas obras estivessem bombando noite e dia em todo canto do planeta. Da forma como sempre foi o ECAD nada mais é do que um antro de bandidos. Tem gente torcendo o nariz agora? Fodam-se.