Ela diz que é uma carta de amor. Trata-se, de fato, do único momento vibrante de um álbum de modos menores, por vezes depressivos, que a cantora batizou “Oásis de Bethânia”. Em seu novo disco, a baiana Maria Bethânia reservou para o quase final a faixa “Carta de Amor”, escrita por ela sob melodia do compositor de sambas de amargor Paulo César Pinheiro. Atrás do nome inofensivo, oculta-se talvez o mais monumental canto de ódio da história da música brasileira.

A suíte de sete minutos de duração intercala textos declamados com trechos em clave de samba de roda, todos eles de prumada no mínimo ameaçadora. “Não mexe comigo/ que eu não ando só”, diz o refrão mais constante, cantado por ela em falsete fantasmagórico. “Não ando no breu/ nem ando na treva/ é por onde eu vou que o santo me leva.” “Eu não provo do teu fel/ eu não piso no teu chão/ e para onde você for/ não leva meu nome, não.” “O que é teu já tá guardado/ não sou que vou lhe dar.” Amor? Só se for no registro do sarcasmo.

Na parte falada, Bethânia atira-se ao fervor religioso, num chamamento sincrético a toda e qualquer entidade, humana ou inumana, que a possa proteger: Zumbi, Besouro, o chefe dos tupis, tupinambá, erês, caboclo boiadeiro, mãos de cura, morubixabas, cocares, arco-íris, zarabatanas, curare, flechas, altares, o escuro da mata escura, o breu, Jesus, Maria, José, todos os pajés, o menino-Deus, o poeta, a rainha do mar, o baile das ondas, o ouro de Oxum, o raio de Iansã, o Cruzeiro do Sul, a tocha da fogueira de João, as Três Marias, o esplendor das nebulosas, a forja de Ogum, o calor da lava dos vulcões de Xangô, Marta, Lázaro, a palma da inspiração de Caymmi, o terço de Fátima, o cordão de Gandhi, o oásis de Bethânia. O céu de Suely?

Se amor e fervor se entrelaçam nos chamamentos, a explosão de rancor está por vir, e extravasa os refrões rumo ao texto cuspido. “O veneno do mal não acha passagem em meu coração.” “Medo não me alcança, no deserto me acho, faço cobra morder o rabo, escorpião virar pirilampo.” “Onde vai, valente? Você secou, seus olhos insones secaram. Não veem brotar a relva que cresce livre, verde, longe da tua cegueira.” “Ninguém te escolhe, você pisa na terra mas não a sente, apenas pisa, apenas vaga sobre o planeta.” “Você é o oco do oco do oco do sem-fim do mundo.” “Eu posso engolir você, só pra cuspir depois.”

O endereço da canção pertence ao universo íntimo da poeta, não nos é dado conhecê-lo. Nos resta especular. Dirige-se a um ex-amor? A algum inimigo dentro ou fora da música? À política? Aos críticos musicais? À mídia voraz e onívora que arrasou com o projeto de poesia pelo qual a artista fora premiada com o direito de captar patrocínios com apoio estatal? A quem afinal Bethânia estaria desejando tanto fel vestido de bem, tamanho ódio travestido de (carta de) amor?

Se não é possível saber ao certo, é de todo modo curioso este momento da MPB dita histórica, da geração de Bethânia. Em anos recentes, gente como Caetano Veloso, Rita Lee e Gal Costa tem se esmerado em produzir canções-desabafo, quando não de rancor, sob nomes como “Odeio”, “Minhas Lágrimas”, “Perdeu” (Caetano), “Tudo Vira Bosta”, “Se Manca”, “Tão”, “Reza” (Rita), “Tudo Dói”, “Sexo e Dinheiro” (Gal), “Lágrima”, “Calúnia”, “Carta de Amor” (Bethânia).

Há uma dimensão trágica por trás dessa rabugice por vezes quase simpática. Em geral a música pop finge, o tempo todo, a felicidade, a bondade, a magnanimidade, o espírito otimista por cima de tudo, quando muito fossa e tristeza resignadas. Para dizer que odeia tanto quanto qualquer mortal, o pop star tem de dizer que ama, como faz Bethânia em sua “Carta de Amor”.

Na dimensão específica da MPB atual, devorada pela indústria fonográfica e autodevorada pelo Ecad, o veneno atirado de modo por vezes vomitado pode guardar um sentido suicida, de raiva mal oculta pelo freguês que, supostamente, deveria ser apenas mimado e bajulado. E se o objeto dos xingos de Bethânia for afinal seu ouvinte, cada um de seus fãs, o sujeito para quem ela está cantando este disco, você e eu?

Sorte, se for assim, é que o texto-poema iracundo cede à dureza e à ilusão de onipotência por pelo menos um curto momento. Acontece no seguinte trecho, inicialmente gélido, mas afinal confessional: “Se choro, quando, choro, e minha lágrima cai, é pra regar o capim que alimenta a vida. Chorando eu reforço as nascentes que você secou”. Talvez nós (e não ela mesma) tenhamos secado as nascentes da diva, e isso não é doce de ouvir. Mas, por mais sobre-humana e inatacável que deseje transparecer, Bethânia (e com ela a MPB) tem vontade de chorar. E chora. Rega capins épicos quando chora. Mas chora.

Talvez, escondida atrás da raiva (e dos milhões de discos que já lhe compramos), exista mágoa. Feras ferozes, feras feridas, feras magoadas — nossos ídolos seguem exigindo desesperadamente nosso amor, não importa quanto já tenhamos lhes dado. Apesar do susto de ouvir a “Carta de Amor” de Maria, é bom poder encontrar um recanto, ainda que pequeno, onde ela se confesse simplesmente carente de nós.

Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do portal Yahoo! Brasil.

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10 COMENTÁRIOS

  1. PAS pra justificar seu texto você atribui aos artistas
    as canções feitas por outros letristas e nem se dá o trabalho de citar.
    Essa da Bethania é PCP – segundo você, compositor de sambas de amargor – minimizando a obra gigantesca do cara. Tudo vira bosta é do Moacyr Franco, e por aí vai.
    Se os interpretes está vivendo um “ódio alugado”, que você erroneamente mistura num balaio só e trata-se de uma década de criação e não um “ultimamente” , a era do roto falando do rasgado, porque você próprio meteu 850 mil de Rouanet pra sustentar seu blog
    Até tu brutus? É a falência crítica mesmo. O que aconteceu os MPBzeiros não te deram o devido valor e agora você vive de falar bem do Teló? rsrsrs abraço!

  2. Ai, Sonekka, cafundi tudo aqui: cê tá “mim” criticando pra ficar do lado da Bethânia, ou “mim” elogiando pra criticar a Bethânia? Desentendi…

    E esse “meteu” pra “sustentar”, que não corresponde a nenhuma realidade, cê achou bem preciso da sua parte? 😉

    O texto da “Carta de Amor” é assinado por Maria Bethânia.

  3. Pareceu-me que o dito “ódio” de Bethânia contaminou o autor do artigo, cegando-o mais do que à própria intérprete…
    O argumento desenvolvido sobre a canção “Carta de amor” confunde propositadamente “autor” e “narrador”, ou “compositor” e “eu lírico” – não sei exatamente como nomeá-los em se tratando de uma canção. A hipótese levantada pelo autor – “O endereço da canção pertence ao universo íntimo da poeta, não nos é dado conhecê-lo. Nos resta especular.” – é facilmente refutável: por que tentar descobrir a quem se endereça a canção? Em se tratando de arte, como certamente bem sabe o autor,importa menos saber de onde surge a criação ou a quem se endereça determinada obra, e muito mais a quem e como ela alcança. Que efeitos podem causar nos ouvintes o chamamento sincrético ou o falsete “fantasmagórico”? No caso, o poder de efeito da canção está mais do que dado… Para quem foi escrita, se possui relações com eventos recentes na vida da intérprete pouco ou nada importa a quem deseja, sobretudo, apreciar, deixar-se ser provocado pela arte e tocado pelo estranhamento. Sinceramente, pareceu-me que o próprio autor aproveitou a “Carta de amor” de Bethânia para destilar, ele sim, seus rancores e ódios sobre episódios pontuais que com certeza não resumem a grandiosidade da obra dessa nossa maravilhosa intérprete. Além disso, chama a atenção a ausência de comentários de densidade estética sobre as demais canções do cd, como por exemplo Velho Francisco interpretada pela batida arrebatadora de Lenine. Reduzido e equivocadamente inflamado o ódio de Pedro Alexandre Sanches.

  4. A velha forma. Fala, canta, fala. Convoca entidades, a força dos mares… Através deles, ordena ser amada. Tamanha onipotência deve realmente lhe dar a impressão de que todos estão à sua disposição. Em seu oásis, talvez. Mas aos olhos de quem construiu o que ela conclama de sua torre de marfim, jamais.

  5. Hoje dia 17 de abril de 2021, dois dias de se comemorar o dia dos Índios, que abandonamos, que tratamos como primos afastados, escuto Bethânia cantar um canto de proteção daqueles aprendidos nos Terreiros de Umbanda. Eu escuto um recado direto para um presidente mequetrefe, abusivo, um ser que adula no mundo sem destino, sem eira nem beira. Canto fundamental para qualquer mulher para proteção, empoderamento e valorização. A raiva é sua, e ela vai voltar pro seu colo, de onde nunca deviavter saido. Viva a mulher, a criança ancestral donas deste país.

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