Sediado em São Paulo entre os dias 11 e 18 passados, o IV Congresso Fora do Eixo foi excelente para quem se interessa por cultura e por soluções novas para problemas antigos. Mas terminou beligerante, em grande medida devido às trapalhadas do líder mais boquirroto da turma Fora do Eixo, o matogrossense Pablo Capilé.
Criticando legitimamente a cena musical pernambucana, ele enfiou os pés pelas mãos ao tomar uma parte pelo todo e se referir ao estado nordestino inteiro como “estagnado” em termos culturais. Bastou para o mundo cair. A animosidade latente contra os hippies-nerds fora-do-eixo que vivem e trabalham em comunidade em diversas casas espalhadas pelo Brasil explodiu com violência verbal diretamente proporcional à de Capilé, e além.
O quiproquó fez lembrar as ofensas com que o ex-presidente Lula foi “brindado” ao descobrir que estava com câncer. Capilé foi ridicularizado não só pelo que disse, mas porque debatia descalço e acocorado numa cadeira, porque tem aspecto de “mendigo” (segundo vários detratores), porque fala jargão, e assim por diante.
Se o índio pantaneiro havia tentado devorar mais uma vez o bispo Sardinha, acabou o ano cozido no panelão, devorado vivo pela ousadia de politicar de cócoras. Foi xingado de Hitler, ironicamente por canibais de sangue africano, americano e europeu, tão vorazes nos desejos atávicos de vingança quanto ele próprio.
Tentando fugir da imensa arapuca armada ao final de um evento que parecia ter transcorrido de modo 100% positivo e propositivo, fico tentado a discordar das visões apocalípticas do Capilé e escrever um pouquinho sobre música… pernambucana.
O final do ano de 2011 viu virem à tona os novos produtos musicais de dois dos mais importantes nomes pernambucanos da geração dos anos 1990, coinventores do movimento manguebit, influenciador e precursor ideológico do atual (e muito mais que simplesmente musical) movimento Fora do Eixo.
Os fora-do-eixo preconizam o alargamento do Brasil rumo ao norte, ao sul, a leste e a oeste, para lá da preguiça intelectual do velho e perverso eixo Rio-São Paulo (não deve ser à toa que as praias paulistanas ficam tão incomodadas). Alastram, portanto, preceitos que artistas pernambucanos lançaram 15 anos atrás, abrindo o Brasil inclusive além-fronteiras.
A briga de agora é bizantina, à medida que ocorre entre gente parecida que deseja (ou desejou) os mesmos destinos altivos para o país. Quando tribos indígenas guerreiam entre elas, quem esfrega as mãos de contentamento são o velho eixo e os mantenedores da cada dia mais pálida casa-grande.
Mas voltemos à música. Mundo Livre S/A e Eddie são os dois grupos manguebit que estão com discos novos na praça.
Novas Lendas da Etnia Toshi Babaa traz o Mundo Livre de volta à lida e à forma. Ajuda a ver por que seu líder, Fred Zeroquatro, foi desde início uma das forças motrizes da geração mangue, ao lado do ex-líder da Nação Zumbi, Chico Science, morto precocemente num acidente de carro, em 1997.
Samba, samba-rock, rock, maracatu, ciranda e bossa nova têm espaço garantido e reservado no novo e afiado disco do Mundo Livre. O Tim Maia doidão da fase “Racional” também rebrilha, das letras psicodélicas de várias faixas ao texto enigmático que apresenta o disco misturando Via Láctea, “rompimento atômico”, “fissura moral” e “tribos imunizadas pela força dos pajés nativos”.
Zeroquatro não foge à raia de certas posições conservadoras que tem peitado em anos recentes, contra os Creative Commons e o download livre (e/ou “pirata”) de música, por exemplo. Enfrenta a pauleira em “Cabôcocopyleft”: “Na era da internética o capeta se transfigurou/ numa assombração pseudoacadêmica/ que me deixa atordoado só de imaginar/ cocococopyleft, pernas para que te quero”.
“Ela É Indie” é outra faixa que exibe a verve ácida de Zeroquatro, por vezes voltada contra seu próprio público preferencial. “Se emo eu fosse ainda dava pra apelar e chorar/ mas não tem apelo, não/ pois eu sou apenas um mangueboy/ triste de mim que sou um mangueboy/ mas a verdade é que ninguém entende um mangueboy”, choraminga o vocalista, em clave pós-Jorge Ben.
Veraneio, do Eddie, é semelhante na prumada psicodélica e viajandona, hedonista e cerebral, pernambucana, brasileiro e estrangeira. “Delírios Espaciais” inicia o disco em sopro de gostoso entorpecimento. “Parque de Diversões” e “Você Quer Ir Frevar?” investem na veia hedonista, não sem pingos doces de ideologia.
Tal tema me faz pensar no também pernambucano (radicado em São Paulo) China, ultimamente notabilizado como o mais explícito opositor retórico dos fora-do-eiro. Mais cedo, neste ano, ele lançou o disco Moto Contínuo, outra delícia despretensiosa e hedonista, apoiada no discurso leve e despolitizante de “Só Serve pra Dançar”: “Não é música para entender/ só serve pra dançar/ não é hino de uma geração/ nem a mais pedida na Voz do Brasil/ sem discurso, sem intenção/ só serve pra dançar”.
Musicalmente eficaz, “Só Serve pra Dançar” me deixa em dúvida atroz entre dois Chinas que duelam publicamente: um que dança e se afirma contrário a qualquer politização e ao debate, outro que, via blogs e rede sociais, milita, debate, polemiza e politiza o tempo inteiro.
Por sinal, apesar do apelido oriental, o litorâneo China ostenta feições indígenas — diferentes das do matuto interiorano Capilé, mas ainda assim indígenas. Olhar para um e para outro fortalece em mim a convicção de que estou diante de dois irmãos que guerreiam vaidosamente entre si, para benefício de feitores atocaiados na casa-grande.
P.S.: só ao separar fotos para publicar neste tópico, me ocorreu mais uma dúvida. Por que será que as capas dos novos discos de China, Eddie e Mundo Livre S/A são tão unanimemente preto-no-branco?
* Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil
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