Um dia, Jack Holman, chefão da norte-americana Elektra Records (que revelou os The Doors, Stooges, MC5), propôs ao guitarrista da poetisa punk Patty Smith, Lenny Kaye, que arrecadasse canções que considerasse “magníficas” no imenso erário musical da gravadora. As canções, ideia de Holman, seriam editadas numa coletânea dupla contendo sortidos tesouros pop da Elektra. Tratava-se, em sua maioria, de bandas conhecidos como “one hit wonder”, ou seja, que tiveram apenas um só sucesso. O garimpo cavado por Lenny – também jornalista e, mais do que isso, fissurado por raridades do rock – derivou na endeusada coletânea Nuggets: Original Artyfacts From The First Psychedelic Era. Lançada em 1972, não deu outra: converteu-se numa das mais famosas e prestigiadas compilações do Planeta.
O mesmo espírito de redescoberta, empreendido por Kaye, também norteou a varredura feita em dois volumes de Gauleses Irredutíveis Merecem Aplauso. Contudo, nosso “balaio de gatos” – ou, citando a banda Aristóteles de Ananias Jr, nosso “pagode acebolado” – não compreendeu somente um período da história do rock feito no Rio Grande do Sul. Dos 70 fonogramas editados nesses dois álbuns, alguns são “novinhos-em-folha”, outros são inéditos ou foram colhidos quase diretamente em suas matrizes originais. É o caso de grande parte das canções e álbuns localizados entre as décadas de 1960/1970, cujas mastertapes, até hoje, jamais foram remasterizadas. Bandas como Os Brasas, Liverpool, Bixo da Seda e Os Cleans. Na medida do possível, Gauleses Irredutíveis Merecem Aplauso procura coligar nomes que representam diversas “Eras” da música jovem gaúcha. Faltaram artistas, bandas e canções? Sim, muita coisa ficou de fora. Uma “falha” que, justamente, comprova o quão profícua é a musicalidade do “Paralelo 30” e seus arredores. São infindáveis os nomes que, por um motivo ou outro, aqui se ausentam – uma lista extensa como a retidão dos Pampas.
Volume I
Em 1969, Por Favor, Sucesso venceu o 2º Festival Universitário da Música Popular Brasileira, em Porto Alegre. Defendido pelo Liverpool, o tema pop rendeu uma vaga nas eliminatórias do 4º Festival Internacional da Canção, no Rio, o que resultou na gravação do único LP da banda: Por Favor, Sucesso. O disco é alquímica fusão de tropicalismo, distorções fuzz e acidez verde-amarela. Em Brasília, assisti ao vocalista dos Superguidis, Andrio Maquenzi, presentear os norte-americanos Mark Arm e Steve Turner, do Mudhoney, com exemplar criogenizado da bolacha do Liverpool. Vinil que, na verdade, pertencia ao acervo do empresário dos Guidis, Fernando Rosa. Vi cavar um baita sorriso no rosto dos grungers, notórios caçadores de extraviadas “gemas” do rock. Em Gauleses Irredutíveis Merecem Aplauso, o Liverpool é festejado, também, na candura riponga da canção Paz & Amor. Em seguida, os “Garotos do IAPI” saíram da clausura noutra legendária – e ainda mais roqueira – formação: o Bixo da Seda. Com a benção do guitarrista Mimi Lessa, o “Bixo” marca sua presença com o rockão stoniano Trem, retirado de Estação Elétrica, álbum filho-único gravado em 1976. Hoje radicado no Rio, Mimi manda “oi!” para os conterrâneos gaúchos na levada de sua banda carioca, a Orquestra de Guitarras. Eles atacam com a releitura de Led Boots, de Jeff Beck.
Do hitmaker Neil Sedaka, Stupid Cupid, interpretada aqui pelo Conjunto Melódico Norberto Baldauf, saiu num LP de nome ultra-sofisticado: Rock on Big Hits! De 1959, sua capa divulgava: “Contém melodias famosas em ritmo de rock.” Reza que, mais afeito aos temas musicais suaves, Baldauf teria gravado Rock On Big Hits! a contragosto… Mas há quem distinga essa versão como o primeiro registro de “rock” do Rio Grande do Sul.
Avante no tempo, os porto-alegrenses dos Os Brasas (fora o flamejante nome) tinham ‘O’ diferencial – o qual rima com “rara qualidade autoral”. A brasa ardente d’Os Brasas, que apresentamos nesta compilação, todavia, é um take alternativo da “arrasa-coração” Ao Partir Encontrei Meu Amor, balada vertida do repertório dos uruguaios Los Shakers. Também da capital gaúcha, pinçamos a soft-psicodélica Estarei com Você, da banda Os Cleans. Autor do livro “Histórias Perdidas do Rock Brasileiro”, o carioca Nelio Rodrigues elucida que a música, na verdade, é uma versão de I Looked In The Mirror, do norte-americano Bob Morrison. “Embora tenham feito Estarei com Você às margens do Guaíba, naquele ano de 1968, a cabeça deles (Os Cleans), certamente, estava imersa na feérica, borbulhante e multicolorida ‘Swinging London’!”, diz Nelio.
Dos célebres concertos Vivendo a Vida de Lee, nos anos 1970 transmitidos pela Continental AM e conduzidos pelo radialista Julio Furst, emprestamos duas peças sonoras que, de certa forma, inauguram as gravações de rock “ao vivo” no Estado. “Tudo em só dois canais”, conta Furst. Dessas sessões, recolhemos a banda Byzarro e a hard-progressiva Betelgeus Star – que soa como Blue Cheer –, e o cantor Gilberto Travi & O Cálculo IV, que entoa o “ragga ecológico” Monumento à Poluição. Prensada numa fita K-7, Cine Marabá abre o álbum Último Verão, do bardo Julio Reny. Cine Marabá é um “roteiro” perfeito para o jovem Reny transbordar sua torrencial prosa. Ou seria “telegráfica trova”? O espírito de Julio surge em outras bootlegs: Lola (Não Chores Lola) – dos consoladores versos “um coração partido não é o fim” – e Expresso Oriente. Aqui revelada, a afetuosa versão acústica de Bromélias, da Bidê ou Balde (cuja letra é sobre saudade), até então, era conhecida apenas promocionalmente. O hit Deu Pra Ti também é sobre saudade. Ou, como prefere Kledir Ramil, uma “canção de exílio”: “Um canto de saudade da nossa terra, das pessoas, do jeito gaúcho de ser”, confessa Kledir. A “folkezita” Adeus Meu Chiripá também é dessas que inspiram saudades. Do desconhecido grupo Rebenque, a música foi editada em Som Grande do Sul, álbum produzido por Airton dos Anjos em 1978.
Adeus, Meu Chiripá – Grupo Rebenque
Os loucos mutantes (e revolucionários) do DeFalla nos brindam com três clássicas de seu cancioneiro – alive: It’s Fuckin’ Borin’ To Death, Sobre Amanhã e Gredy Juice Pussy Fucker. Todas foram remasterizadas pelo músico Flavio Santos, o Flu, baixista e um dos fundadores do DeFalla. Flu também desfila entre o disco bônus com a sofisticação instrumental de Batantan. Fazê um Bolo é o velho hit do Taranatiriça liquidificado numa versão tecno-espeto-corrido. É assinada pelo mago dos moogs Astronauta Pinguim. Da cultuada Locecraft, a anfetamínica Amonia foi sensação local em 1994. E, passados 17 anos, segue hit no underground. Gravada em 2007, a zombeteira Após o Bip marca a estreia autoral da Laranja Freak. Epilético, certamente, é um dos clássicos absolutos do low-fi-udigrudi-sulino. “Eu queria fazer uma música que falasse sobre alguma patologia”, conta Diego Medina, cérebro e candura por trás da Doiseumindoisema.
Quem também “dá as caras” no especial são os mascarados da Procura-se Quem Fez Isso (PQFI). Vêm ungidos pela graça do mutante Arnaldo Baptista, cujo ouvido aprovou Bagdá (She’s My Baby) e, entre as bônus, Ele Quer Todo Mundo a Seus Pés. Radicada em São Paulo, a Pública comparece com a versão demo da apaixonada Lugar Qualquer. Hard Rocker Old School marca – com muita compressão e guitarras venenosas – o retorno da Rosa Tattooada à ribalta. A letra de Eu Vou Arder Nas Chamas do Inferno originou-se a partir de uma tarde de trabalho com um ar condicionado inoperante, repara o “atonal” Marcelo Birck. Com seu riff nervoso e sua batida dançante, Não para de Dançar é single do terceiro disco da Identidade.
Um Rei e O Zé, da banda Apanhador Só, é (também) trocadilho sonoro com “Tom Zé”. O tanguito Cheio de Dentes, gravado no estúdio do compositor nativista Érlon Péricles, é o único registro deixado pelo combo Império da Lã. Hey Girl, Wath Your Gonna Do, saída da demo Júpiter Maçã & Os Pereiras Azuis, e Down Myth Girl (entre as extras) foram escolhidas por Júpiter em pessoa. A interplanetária persona do compositor (que atende pelo batismal nome de Flavio Basso), por sinal, abrilhanta o “mojo” encerrado entre faixas-bônus de Gauleses Irredutíveis Merecem Aplauso. Trata-se de três canções do ensaio pós-álbuns Sétima Efervescência/pré-Plastic Soda. A escalação a tocar é Maçã (guitarra e voz), Julio Cascaes (baixo) e Marcelo Gross (bateria). Muitos as consideram “as melhores jamais gravadas pelo Júpiter!”. São elas: Aquarianas da Rua 20, Cartas de Playground e Desconstruções do Acaso.
Volume II
Me Deixa Desafinar – Bidê ou Balde
Mascado num chicletudo refrão, o hit instantâneo Me Deixa Desafinar “realocou”, em 2011, a Bidê ou Balde no topo das listas de mais pedidas nas rádios no Rio Grande do Sul e, também, brasileiras. É o novo single da BoB que acende o segundo volume de Gauleses Irredutíveis Merecem Aplauso. A Bidê também pinta com a dobradinha maluca O Que Eu Não Vejo Não Existe/My Name Is Going. Com muita, mas muita satisfação, Ronnie Von liberou sua “brasa pop” Silvia 20 Horas Domingo, cuja letra leva a fina assinatura do “Guitarreiro” (ou “Macaquito”) Luís Vagner e de Tom Gomes. Ao telefone, o “Príncipe” declara sobre Porto Alegre: “O primeiro Estado que me descobriu como cantor foi o Rio Grande do Sul. No começo dos anos 1960, toda a semana eu estava em Porto Alegre. Na época, cheguei pensar em mudar pra cidade”. A Silvia 20 Horas Domingo que mostramos aqui é a versão que a Video Hits sulcou em seu registro único Doces, Refrescos e Tratamentos Dentários, de 1999. Ronnie lembra daquela tarde com em estúdio como se fosse hoje: “Me apeguei afetivamente à Video Hits. Eram uma grande banda.”
Embora a “bonitinha” melodia não sugira, Yanto Laitano faz de Meu Amor uma balada de amor (e morte) às avessas. A canção, que faz parte do disco Horizontes e Precipícios, é uma das mais solicitadas no playlist das principais rádios do sul. Com formação clássica, Yanto define seu disco como um álbum de “rock sem guitarras”. Sobre a interpretação da Cachorro Grande para Lugar Nenhum, o guitarrista Marcelo Gross explica: “Sempre fomos muito fãs dos Titãs, nossa banda brasileira favorita e referência desde que a Cachorro começou”. Gross garante que a versão é inédita – “Nunca tocou em lugar nenhum”. Segundo o compositor Arthur de Faria, Um Tango – que tem luxuosa participação dos patos-fus Fernanda Takai e Jhon Ulhôa – é inspirada na sonoridade dos conjuntos melódicos gaúchos dos anos 1950/60. E ele ilustra o processo: “Musiquei a letra, do Maurício Pereira, em ritmo de beguine. A Fernanda jogou luz na coisa toda com aquele timbre espetacular que ela tem”. De lambuja, John Ulhôa dropou uma malandra guitarra surf no solo de Um Tango. D’Os Exciters, A Mulher Brasileira é a Mais Linda, como define o “guru” Plato Divorak, “nasceu pronta para o verão bombástico de Porto Alegre”. A letra é baseada em múltiplas experiências amoroso-sexuais de Plato – do interior gaúcho às praias da Bahia… Divorak já teve insights de como deverá ser filmado o clipe de A Mulher Brasileira…: “Serão 100 mulheres nuas dançando nos três minutos da música.”
Posteriormente gravadas no primeiro long-play dos Os Replicantes, O Futuro é Vórtex, as versões de Nicotina e Surfista Calhorda que ouvimos neste volume foram extraídas do EP lançado pelo selo da banda, o Vórtex, em 1985. Heron Heiz: “Surfista Calhorda, o Gerbase (Carlos, ex-baterista) me passou a letra, eu desci pra garagem e fiz a música. No primeiro ensaio depois disso, o Claudio já pôs o solo – ‘verdadeiro achado’, segundo, à época, comentou o crítico Juarez Fonseca no jornal “Zero Hora”. O mesmo Heron, aliás, fazia parceria com Wander Wildner no Kadafi. A paulada homônima, Kadafi, lançada na coletânea de bandas punks gaúchas pela Vórtex em 1987 está em nosso álbum de extras – assim como três joias de Flavio Basso já em sua fase Jupiter Maçã. Do refrão “Ela usa meu sexo como um revólver!”, Santo Stéreo, da Viana Moog, de São Leopoldo, revela o lado Pixies que habita o subconsciente da banda. Era Moderna, da Pupilas Dilatadas (célebre por ter o dead kennedy Jello Biafra entre os fãs), é uma peça barulhenta e confessadamente “ativista”: anti-lixos industrial e tecnológico, brada a letra. Riffs, narra o vocalista dos Superguidis, Andrio Maquenzi, foi concebida como um cuspe: “À semelhança com 21st Century Digital Boy (Bad Religion) não é mera coincidência!”
Versionada do cancioneiro dos Beatles, Todo Mundo Tem Algo A Esconder (Exceto Eu e Meu Macaco), dos guaibenses da Superguidis (da qual empilhamos as músicas uma atrás da outra, por conta da liga sonora que as cimenta), foi feita sob encomenda para uma homônima peça de teatro. Em sou Sou Blasé, conta o guitarrista Fredi Endres, rolou uma legítima “ironia nin-jitsu”. Sou Blasé é um pancadão AC/DC, mais para o rock do que para o funk: “A música é um deboche com o meio moderninho-clubber-indie e com algumas pessoas metidas de hoje em dia”. Arthur, da Pata de Elefante, pela sua beleza e oscilação de climas, é um das mais belas canções do power trio. A autoria é do compositor Daniel Mosmann. Ainda sobre Elefantes e Patas, Do Seu Amor, Primeiro é Você Quem Precisa é do primeiro trabalho solo do baterista Gustavo “Prego” Tellles e seu “Belchior Sound”. O vocalista dos Volantes, Arthur Teixeira, diz que Maçã, para a banda, significa uma “corrida pelas canções”. Sobre o som, o vocalista dá a barbada: “A gente ama Kraftwerk e vai sempre fazer um monte de ‘zing-zóing’. A letra de Mod te Fode, da Podia Ser Pior, foi feita na Lancheria do Parque, depois de a banda observar “uns três caras” que entraram vestidos em paletós de brechó num calor infernal de dezembro em Porto Alegre… “Na época, tava todo mundo de saco cheio desse pessoal pseudo-mod e a gente exercitava a criatividade fazendo piada, o que não era difícil”, diz o guitarrista Patrick Magalhães. Diagonal é a Walverdes em seu estado natural. Ou seja, simples, barulhenta e direta no som. Sobre a letra de Diagonal, o guitarrista Gustavo “Mini” tenta explicar: fala muito dizendo pouco. “A letra não é muito clara, mas tudo bem: quem ouvir pode decidir sobre o que é a música”.
Em 2000, foi lançada Garage Laboratorium, primeira demo da banda Hipnóticos. Caçador de Bônus-Track saiu nessa demo, lançada originalmente em CDR. All Gone, da Loomer, é Sonic Youth e Dinosaur Jr. na cabeça: linhas de baixo com distorção, guitarra lamacenta, bateria grandona e vocal suave. Albert Einstein revela o lado menos “zen” e mais punk de Nenung (atual Os The Darma Lóvers) no comando da Barata Oriental, sediada em Novo Hamburgo nos anos 1980.
Novo Estilo é uma cover da Rosa Tattooada para uma velha canção perdida d´Os Cascavelletes. A música está ligada a história da Rosa, uma vez que o vocalista e guitarrista Jacques Maciel foi roadie dos “Cascas” durante toda a carreira deles. “A Rosa Tattooada foi criada a partir de um convite do Flavio Basso para que a gente fizesse uma banda pra abrir um show deles. Além de ser ‘paulada’, sempre tocávamos Novo Estilo nas passagens de som…” Anestesia é uma verdadeira ode à condição humana de ficar chapado, e foi gravada no único álbum da banda Os Irmãos Rocha. Retirada da coletânea Garagem Hermética Punk Hits, Rock Stress, d´Os Alcalóides, concentra-se em, segundo a banda postula, construir melodias novas – “nunca antes sonhadas”. Kill Summertime, música da Space Rave, ganha versão da banda Dating Robots. “Um mix de diversos estilos conectados através de temas recorrentes”, define Marcelo Birck sobre Pagode Acebolado – composição sua lançada em 1996 no primeiro e único álbum da Aristóteles de Ananias Jr., e que ainda hoje é tocada em seus shows solo.
Aplausos e, novamente, uma boa “viagem”.
** Essa deliciosa seleção da música dos pampas foi produzida para a Revista Aplauso, publicação que acaba de republicar o especial já em seu novo site (músicas liberadas para baixar)
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