Inezita Barroso, dama majestosa da “Moda da Pinga”, do folclore (como ela gosta de dizer) e da música caipira brasileira e paulista, está na primeira fila, assistindo ao show.

No palco está Flávio Renegado, rapper mineiro egresso da periferia de Belo Horizonte, que acaba de lançar seu segundo álbum, “Minha Tribo É o Mundo”. Ele canta “Suave”, um dos novos e suingados raps: “Os manos como é que estão?/ suave!/ e as minas como é que estão?/ suave/ geral dentro do salão?/ suave!/ suave na nave, suave!”.

Inezita já fez algumas caretas nesta noite de 29 de novembro, no Tom Jazz de São Paulo, durante a entrega do maluquíssimo Troféu Sexo MPB, do jornalista, escritor e produtor musical carioca Rodrigo Faour.

Mas agora, não. Assistindo a Renegado, sua fisionomia está leve, sorridente. Quando ele pede a adesão da plateia ao coro de “suave!”, Inezita deixa chegar a hora de “e as minas como é que estão?” para exclamar, junto com todo mundo: “Suaaaaave!”.

Velha guarda: Cauby Peixoto, Inezita Barroso e Angela Maria

Eu estou numa fila lá atrás (o Tom Jazz é bem pequeno, e todo mundo vê todo mundo), chapado nas expressões que Inezita, Angela MariaCauby PeixotoClaudette Soares, entre outros, fazem quando, por exemplo, a paraense Gaby Amarantos canta tecnobrega com lâmpadas acesas na cintura, ou a roqueira carioca Marília Bessy faz uma versão “cool” para “Conga, Conga, Conga”, hit disco-sexy de Gretchen.

Coincidência maravilhosa, Inezita está exatamente ao lado do equipamento de vinil manipulado pelo DJ de Renegado, que faz os scratches da apresentação do rapper. O olhar da cantora que em 1954 desafiou o machismo rural e o urbano “de braço dado com dois sordado” oscila entre o rapper e a agulha que raspa no vinil no ritmo seguro da mão do DJ. Olhando para um ou para o outro, a expressão de simpatia de Inezita é a mesma.

A cena faz as lágrimas pularem soltas dos meus olhos. Até pouco tempo atrás, nem nos sonhos mais felizes era possível vislumbrar esse tipo sereno de interação. No final, faço questão de contar ao Renegado que ele certamente não reparou, mas o olhar de Inezita para sua apresentação era de encanto. Parecendo espantado e contente, ele foi conversar com a musa tradicionalista, tirar foto com ela. Emocionante.

O encontro promovido por Faour (que vai sair depois em CD e DVD) parece estapafúrdio de início. Estão ali, juntos e misturados, artistas tão distintos quanto Edy StarTetê EspíndolaVanusaPaulo PadilhaMaria AlcinaLuiz Calanca (o histórico dono do sebo paulista Baratos Afins, empolgadíssimo na plateia). Cacilda, que liga isso pode dar?, eu me pergunto, atarantado. Enquanto isso, Angela e Cauby causam frisson entre a mídia presente, Tetê posa para foto ao lado de Gaby, o efêmero astro gay-glitter dos anos 70 Edy Star sussurra “vai lá e arrasa!” para o negro Renegado, na hora dele subir ao palco.

De cara, a liga não parece possível. Mas, que tolice, ela está toda aqui e é maior que, somadas, as trajetórias gigantescas dos octagenários – e vivos, v-i-v-o-s, vivinhos – Inezita, Angela e Cauby. É um traço de união (para citar o samba, representado nesta noite por Paulo Padilha) a qual pouco estamos acostumados ainda, com jeitão pleno de novo Brasil.

O público parece 49% gay, 49% idoso (com as devidas interseções entre as duas turmas). Os artistas são negras, índios, louras, mulheres, homossexuais, idosos, jovens, quarentões, cinquentonas etc. Elegantérrima, a única travesti que vejo na plateia se deleita em mesuras aos artistas ao final.

Edy Star rende vivas ao ménage de “Ronda” entre Angela-Cauby-Inezita, e conta que “viado de Salvador” cantou muita “Ronda” nesta vida. O estranhamento entre os vários subgrupos é do mesmo tamanho do choque cultural entre Inezita e o aparelho de scratch.

Ou seja, o estranhamento não acontece, muito pelo contrário: é justamente a diferença entre as várias identidades presentes que rende essa liga (para mim) inesperada, doidíssima.

Jovem guarda: Gaby Amarantos

Não deve ser por outra razão que Alcina, contente e pirilampa como pipoca em panela quente, e Gaby, linda, precisa e esfuziante, fundem a “Doida” da mineira com a “Bebadoida” da paraense. “Mamãe!”, Gaby pede colo a Alcina no palco, para gargalhada gostosa da andrógina intérprete de “Fio Maravilha”. “Muita gente pensa até hoje que Alcina é travesti”, brinca Faour. “E eu acho que é verdade”, emenda a filha adotiva, que acabou de cantar “Ziriguidum”, do paraibano Jackson do Pandeiro, singrando mares já muito navegados indiretamente por ela (que é de família de sambistas do bairro pobre do Jurunas, em Belém) e pelo tecnobrega.

A diversidade que paira no ar é tanta que Angela Maria, para sempre “Babalu”, se confunde ao cantar “Esse Cara”, de Caetano Veloso. “Eu sou o homem/ eu sou apenas uma mulher”, ela canta, trocando as bolas de “ele é o homem/ eu sou apenas uma mulher”. Faz todo sentido o seu ato falho, dona Angela.

Enfim, eis a liga: diversidade, respeito, demolição de preconceitos. Tudo me faz lembrar  minha mãe, que morreu neste ano, aos 77 anos, e não muito tempo antes andou reclamando do preconceito contra idosos. “Ninguém gosta da gente, todo mundo discrimina”, ela se queixou a minha irmã mais velha.

Hoje, ver Cauby Peixoto beijando as bocas da sexy indiafricana Gaby Amarantos e do homossexual assumidíssimo Edy Star, na frente de suas fãs mais alucinadas, é coisa que dá vontade de sair soltando rojões por aí. Como ouvir Claudette Soares cantar de novo “Os Grilos” de Marcos Valle, em plena forma, é sexy a valer. Como notar a liberdade de errar que a idade avançada dá a Inezita-Angela-Cauby também parece sedutor à beça (será que agora entendi tudo, Rodrigo Faour?!).

Bem, quero confessar antes de botar ponto final: dona Inezita, para mim, é a cara de dona Zaira, minha mãe. E eu fiz questão de cumprimentá-la e contar que chorei vendo ela ver o rap do Renegado. “Que pena que esse tipo de encontro ao vivo não acontece mais”, ela lamentou, como outros na noite também haviam lamentado. Eu, “crítico de música”, exclamei para a grande cantora, suave na nave: “Aconteceu hoje, Inezita!”.

* Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil

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8 COMENTÁRIOS

  1. Oi Pedro,
    Fiquei muito feliz e emocionada com seu texto. Lembrei da Cassia Eller da qual tive a oportunidade de trabalhar durante os seus primeiros 4 anos de carreira. O Faour conseguiu reunir varios dos idolos dela (e de mta gente!), Angela Maria, Cauby Peixoto e Inezita Barroso. Valeu Faour, vc a homenageou sem saber! Ótimo texto Pedro, eu tb chorei… abs, Danusa

  2. Tocante seu texto, como tocante é o trabalho do Rodrigo Faour, acompanho há tempos sua verdadeira devoção ao resgate dos nossos artistas, às vezes tão esquecidos. Palmas de pé para Faour, já tive o prazer de participar de eventos produzidos por ele e tb chorei. Igual a você, lembrei demais de minha mãe, que tb já partiu, figuraça de mulher.Um abraço.

  3. Então, e depois eu estava dando uma olhada (bem de leve, admito) na cobertura da imprensa, parece que só o desabafo da Vanusa deu o que falar, né?

    Não foi proposital, mas fui por outro caminho e nem citei a mágoa da Vanusa por ser chacoteada pelo Brasil todo por conta de um problema sério de saúde – não citei também o lindo apelo da Gaby Amarantos do alto do palco para ela, “não pare, Vanusa, nós precisamos de você”.

    Será que tô errado de nem ter citado? Ou será que todo mundo vai sempre no mesmo lugar? Ou será que as duas coisas?

  4. De todo modo, outros momentos sensacionais que eu também não citei:

    a) com o Paulo Padilha, a Claudette Soares cantou uma versão 100% Jorge Ben de “Meu Esquema”, do Mundo Livre S/A. De arrepiar, e moderníssimo.

    b) Juntas, Maria Alcina e Gaby Amarantos cantaram a “Bacurinha” da Alcina (“mamãe, ai, que calor/ calor na bacurinha”). Logo de cara a Inezita botou a mão na frente dos olhos, não sei se de vergonha ou pra enxugar o calor na… testa. E Alcina e Gaby, propositalmente, excitaram do palco as bacurinhas da Angela, do Cauby e da… Inezita! 🙂

    c) Juntos, Alcina e Edy Star cantaram uma versão MARAVILHOSA de “Camisa Listrada”, do Assis Valente. Estavam de camisas listradas de carnaval. Releitura genial, porque ela narrava (“rompeu a cortina de veludo pra fazer uma saia”. “saiu gritando eu quero mamar, mamãe, eu quero mamar”), e ele gritava: “Mamãe!, eu quero mamar!, mamãe!, eu quero mamar!”. Isso porque, lembra?, Gaby já tinha chamado Alcina de “mamãe”, né?

    Tudo bem surreal, deliciosamente surreal.

  5. Putz, e um beijaço pra quem consegue descobrir como faz pra comentar neste FAROFAFÁ – que às vezes (er, momento autocrítica) nem eu consigo achar…

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