Seja como músico seja como pesquisador, fico positivamente impressionado com as mudanças pelas quais tem passado nossa indústria da música na última década. Não tenho dúvida de que vivemos um momento inédito e importante. No entanto, também me preocupa o futuro do mercado de música no Brasil. Ainda que tenhamos feito um grande progresso no sentido de ampliar o acesso dos músicos ao mercado, estão em disputa neste preciso momento questões cruciais para o futuro da produção, circulação e consumo de música neste país. Por isto, gostaria de compartilhar uma de minhas principais preocupações, que tem a ver com a circulação de música nas redes digitais de comunicação.
Se quisermos compreender o momento especial que experimentamos, é preciso considerar que, desde a década de 1960, a indústria da música neste país passou a se caracterizar pela forte centralização de sua atividade cultural no chamado “eixo Rio-São Paulo” e pela concentração da produção de discos em um reduzido grupo de grandes gravadoras, com escassa participação de empresas independentes. Este era um negócio interditado à maioria dos músicos brasileiros, pois dependiam dessas poucas gravadoras para viabilizar sua obra para um mercado nacional. Isto lhes dava um grande poder de selecionar o que e quem produzir e, como deve fazer toda empresa, escolhiam o que lhes daria lucro mais ou menos garantido. Para o público, por sua vez, era difícil acessar as produções musicais estrangeiras diversificadas, já que também dependiam do interesses dessas gravadoras em lançar novidades no mercado brasileiro. Tínhamos, assim, um mercado de música com escassas variações de gêneros musicais à disposição.
Desde os anos 1990, porém, alguns fenômenos passaram a indicar importantes transformações nesse cenário. Primeiramente, deu-se um rápido crescimento de gravadoras independentes nacionais (Trama, Deckdisc, Biscoito Fino, entre outras), que passaram a lançar novos artistas, a dar continuidade à carreira de grandes estrelas e até mesmo publicar no país discos de artistas independentes estrangeiros. Logo, os próprios músicos passaram a assumir a gerência de suas carreiras, acessando o mercado sem a intermediação de qualquer tipo de gravadora, alcançando certo êxito (O Teatro Mágico, Móveis Coloniais de Acaju, For Fun). À margem da grande indústria, consolidaram-se mercados “de nicho” que impressionam pelas cifras que apresentam em termos de público e pela vitalidade de sua produção cultural, como o tecnobrega, no Pará, o forró eletrônico, ao longo do nordeste brasileiro, ou o funk, no Rio de Janeiro. Finalmente, há as associações de artistas através de “coletivos” e “festivais independentes (de música)”, tornando-se vias importantes para a circulação de música no país, sendo o coletivo Fora do Eixo e a Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin) os exemplos mais notáveis desse fenômeno.
O consumo de música também mudou bastante. Se na década de 1970, os brasileiros se colocaram como um dos maiores consumidores de discos físicos no mundo, hoje essa categoria de consumo de fonogramas só cai. Isto não significa que ele seja menor. É que ele pode ser feito de diversas formas: comprando CD e DVD em lojas físicas ou pela internet, discos “piratas” nos camelôs, baixando arquivos digitais para computadores e/ou celulares ou escutando pela internet (streaming), entre outras possibilidades.
O que tudo isto significa? Em primeiro lugar, que “gravar um disco” e lançá-lo por uma “gravadora” hoje não é a única forma de alcançar o mercado. Pelo contrário. Não há dúvida de que a produção e o consumo de música no Brasil estão descentralizados, isto é, não se concentram em uma região do país ou em qualquer tipo de gravadora (major ou indie). Podemos mesmo dizer que a indústria da música, e particularmente a fonográfica, é uma grande rede formada de redes semi-autônomas de produtores que se juntam para realizar um determinado projeto (gravação de um disco, sua distribuição, realização de um show ou o que seja). Como as plataformas de acesso aos fonogramas se multiplicaram (internet, celulares, televisão digital, etc.), parece que depender dos critérios de julgamento estético das gravadoras é coisa do passado.
Mas, nesse momento de alegria, faço-me duas perguntas:
Todos os músicos têm seu espaço garantido no mercado?
Vivemos um momento de diversidade musical inédito e irrefreável?
Os mais apressados responderiam simplesmente que “sim”. Isto porque acreditam fervorosamente que as santas tecnologias digitais da comunicação permitiram o acesso direto entre artistas e público, diluindo as barreiras de entrada no mercado. Logo, todo artista pode oferecer seu produto e todo consumidor, ouvir a música que quiser e como quiser. Basta apenas que se encontrem para negociar diretamente em algum “nicho” de mercado! Deduz-se deste raciocínio que a diversidade musical está garantida, automaticamente, pela tecnologia e pelas leis de mercado. A música se tornou um bem abundante e facilmente acessível, e ninguém mais pode deter seu acesso – podemos dar, assim, adeus às pobres gravadoras.
Uma atitude um pouco mais prudente recomendaria cautela. Ok, todo músico pode gravar suas músicas e através da internet acessar seu público diretamente. Tudo bem, os consumidores podem entrar na internet e buscar todo tipo de música que quiser. Parece-me, no entanto, que o problema está exatamente na conexão entre a produção e o consumo via redes digitais de comunicação.
Se, num primeiro momento, a circulação de música pela internet se caracterizou por sua “napsterização”, o compartilhamento em rede de fonogramas digitais entre pares, com os usuários “baixando” os arquivos para seus computadores, atualmente, ela se molda de forma distinta. Cada vez mais, o streaming, o acesso à música na própria rede de computadores, toma o lugar de principal prática de consumo de música. Ou seja, passamos a ouvir música armazenada na rede, porque estamos preocupados em não ocupar mais espaço nos HD de nossos computadores e/ou smartmobs, já lotados de informação. E como fazemos isto?! Em geral, através de empresas especializadas em distribuir arquivos digitais para os consumidores finais (indivíduos) e outras empresas de comunicações e informática (operadoras de telefonia celular, televisão digital, portais de internet, etc.). Elas fazem o que os artistas individuais têm dificuldade de fazer: ampliar as redes de consumidores de forma rápida e massiva. Enquanto um artista que se produz espera atrair um grupo de fãs que, depois, encarrega-se de ampliar a rede de consumidores, estas empresas se posicionam de tal forma no mercado que elas cuidam da formação dessas redes de consumidores e da geração de renda para os artistas através de distintos serviços (venda de arquivos digitais, cobrança de mensalidades pelo acesso aos arquivos por streaming, licenciamento para venda em lojas online de fonogramas, sincronização, etc.).
Na medida em que ampliam seus catálogos e, por conseqüência, suas redes de clientes, elas se tornam críticas para os agentes do mercado de música, pois conseguem firmar contratos (com as empresas de telecomunicações, por exemplo) cada vez mais vantajosos para seus clientes (gravadoras e músicos). Por isto, nos EUA e na Europa, é difícil escapar da Apple e/ou do Spotify, já que não apenas distribuem música para computadores e celulares como também começam a dominar o mercado de televisão digital. No Brasil, a porta de entrada para o lucrativo mercado de telefonia celular é o iMusica. Considerando essa crescente importância, prefiro categorizar tais empresas como os novos intermediários do entorno digital (NIED).
E como os NIED funcionam? Diferentemente das gravadoras, eles não selecionam artistas. Pelo contrário, são contratados por músicos e por gravadoras para distribuir arquivos digitais. E conseguem fazer de forma ótima a partir dos catálogos que manejam. Quanto mais valioso for o produto que oferecem, mais heterogênea e maior tende a ser sua rede de consumidores. Por consequência, necessitam de (a) catálogos que mais atraem público e que (b) artistas e gravadoras cedam os direitos de gerenciamento de suas obras no entorno digital. E como os catálogos mais valorizados pertencem às tradicionais gravadoras, que controlam esse material através dos direitos autorais, estas empresas podem selecionar os NIED com que querem trabalhar. O resultado é que são poucos os intermediários que detêm os catálogos mais valiosos e que celebram acordos com grandes empresas de telecomunicações. Temos, assim, um cenário paradoxal: há uma completa descentralização da produção de música gravada, mas uma crescente centralização de sua distribuição.
Retomando minhas duas perguntas anteriores, diria que o perigo que se esconde nesse processo é o de criarmos algum tipo de diversidade musical “de vitrine”. Temos um cenário no qual parece haver de tudo no mercado, em que podemos escolher o que quisermos, mas cujo acesso se torna cada vez mais regulado por um pequeno número de empresas. Se for assim, é provável que uns poucos artistas figurem em todos os playlists de computadores e celulares, enquanto os 99% dos independentes encaminham-se para a parte mais distante de alguma “cauda longa”. Com isto, as disparidades que víamos na era da cultura de massa se reproduziriam nas redes digitais.
Meu ponto é que, hoje em dia, não basta “estar” no mercado; é preciso fazer circular a produção, facilitando o acesso aos arquivos. Por isto, as discussões sobre direitos autorais são tão importantes para o futuro da indústria da música. Garantir um grau amplo de flexibilidade da circulação dos bens culturais é crítico para que se possam consumir diversos produtos. Mas isto não basta. Também é preciso criar políticas públicas de incentivo à distribuição de música local pela internet, apoio aos NIED que trabalham com música local, entre outras medidas que chamem o Estado de volta à cena não apenas através de leis de incentivo fiscal e editais. Enfim, é preciso pensar em que tipo de indústria da música queremos para o futuro, pois não adianta acreditar que revoluções tecnológicas e leis de mercado bastem.
* Leonardo De Marchi é doutor em Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Excelente leitura do mercado! Discordo da opção de recorte nesse trecho:
“Se for assim, é provável que uns poucos artistas figurem em todos os playlists de computadores e celulares, enquanto os 99% dos independentes encaminham-se para a parte mais distante de alguma “cauda longa”.”
Eu consumo música intensamente no entorno digital. Acho que isso dificilmente vai acontecer pois a maioria dos serviços de distribuição digital, as muito-bem-denotadas NIED’s se baseiam em um princípio de situação em que há abundânciade informações, que é personalização. Somente permitida pela flexibilidade mesma que permitiu a abundância. Seu facebook é diferente do meu e suas playlists diferentes da minha. Enquanto houver certa neutralidade na rede, ou melhor, menos acessos patrocinados, o soundcloud vai continuar me mostrando aquilo que eu escolhi seguir e sugerindo artístas semelhantes pelo seu algorítmo que até agora não se vendeu nem se mostrou “sem-noção”, pelo contrário descobri altos artístas bacanas por ali. Isso pode ser corrompido, claro que pode, mas seria um tiro no pé se for 100% corrompido. Aí sim a sua possibilidade seria mais possível. Talvez um meio termo, um algorítmo que proponha vídeos sugeridos, avisando que são patrocinados, mas que podem ser do gosto do usuário. O youtube faz assim pelo menos… Veremos! 😀 Importante é olhar nas brechas que levam para os bons caminhos. Àquelas outras, talvez não venham a acontecer, sem pessoas ruins no mundo. É outro gargalo que a cultura trabalha, em formar pessoas com melhores inteções que às de ontem!