No debate “Música: A Fronteira do Futuro”, a música foi a coadjuvante do espetáculo. Pouquíssimo se falou dela em mais de três horas de diálogo. E olha que estava no Auditório do Ibirapuera ninguém menos que Gilberto Gil, cantor, compositor, ex-ministro da Cultura e visionário na adoção de políticas públicas para o casamento da produção artística com o mundo digital. Mas, quer saber, o que se falou ali diz muito respeito ao universo musical.
Comecemos pela última frase de Gilberto Gil, nas suas colocações finais: “Antes a comunicação ficava na mão da mídia e hoje as coisas estão acontecendo e não chegam na mídia. (…) Não é mais a mídia que diz o que é, que anuncia, que informa, que discute, que aprecia, que dá o preço. Está mudando. ‘É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte.'” A mídia, como lembrou Gil, não estampa em suas manchetes de primeira página, nem nos cadernos de cultura, que hoje os Creative Commons atingem a marca de 400 milhões de novas licenças, segundo informou ao cantor o escritor americano Lawrence Lessig, que também participou do encontro e um dos maiores defensores do direito à distribuição dos bens culturais. E por que o distanciamento entre o que se noticia e o que está acontecendo na sociedade? Porque parte da sociedade, representativa e com poder, ainda milita no mundo em que é melhor proibir, coibir e punir do que libertar, compartilhar e promover. [Pensando na música: os “Ecads da vida” (expressão utilizada por Gil) vivem da ultrapassada estratégia de perseguir os artistas e os consumidores de música, ignorando que hoje os fluxos de informação ocorrem independentemente dos meios físicos]
A discussão que se propunha na série Pensar Música era refletir sobre a criatividade, as novas tecnologias e políticas públicas para o mundo digital nesse século XXI. Lessig veio ao Brasil esbanjando otimismo em relação ao papel que o país pode ter se comparado com o resto do mundo. Seríamos a vanguarda perto do atraso e do obscurantismo que países desenvolvidos têm imposto à internet em seus territórios. Aqui, a sociedade civil “mestiça e miscigenada”, como disse Gil, participa, enquanto ela fica ausente nos debates dos Estados Unidos e Europa. Segundo Lessig, a questão sobre direitos autorais, o copyright, se transformou numa guerra, conduzida por extremistas americanos e que é exportada para outras nações, inclusive o Brasil. Adotar o tom belicoso seria oportuno para rotular cada jovem que faz um download de “pirata” ou “terrorista”. “Temos que lutar contra essa concepção. Não se pode parar gerações de jovens criando, não se pode torná-los passivos. Deixe o Brasil liderar essa luta de novo.” [Lessig mostrou alguns vídeos feitos a partir da música “Lisztomania”, do grupo indie francês Phoenix, que foi apropriada por internautas do mundo todo, inclusive brasileiros, cada um criando a sua própria versão divertida dessa obra]
Lessig e Sergio Amadeu, sociólogo e um dos maiores defensores do sofware livre no Brasil, bem lembraram que a invenção dos direitos autorais nasceu e floresceu no século XX, uma cultura tipicamente read only (somente para leitura). “No século XIX, não fazia sentido propriedade de música. Só fez sentido quando houve o aprisionamento da música ao meio físico, mas isso mudou e a sociedade aderiu à rede distribuída. Nas redes digitais, o difícil não é falar, mas ser ouvido.” Estaríamos, assim, com a internet, e por meio dela, tendo a grande oportunidade de, neste século XXI, voltarmos a ter uma cultura livre das amarras que beneficiaram só ao mundo das corporações (grandes gravadoras, editoras etc). [O mundo da música hoje é read & write, ou seja, você lê, mas também pode criar por cima. Músicos que querem fazer sucesso precisam ser ouvidos, e isso só é possível quanto mais houver interação com o público]
Ivana Bentes, professora de comunicação da UFRJ, lembrou que paradoxalmente o Brasil, cujos ciclos econômicos sempre chegam tarde e nunca se completam, tem condições reais de assumir um papel de pioneirismo no mundo globalizado, uma espécie de país beta global da cultura digital, mas está assumindo uma postura da “vanguarda do atraso”. A crítica clara e direta feita a atual gestão do Ministério da Cultura, na figura de Ana de Hollanda, que ignora a importância dos CC, corta orçamentos importantes de programas exitosos dos antecessores (Gilberto Gil e Juca Ferreira) e não percebe que os pontos de cultura são o verdadeiro pré-sal da cultura. Ainda assim ela vê esperança nos movimentos culturais de coletivos, como o Fora do Eixo, ou nos plugadinhos do Rio (redes wi-fi compartilhadas por vizinhos em bairros da periferia). “Estamos disputando o MinC, pois há o risco de o governo Dilma dar uma guinada para uma certo conservadorismo.” [O Fora do Eixo viabiliza o intercâmbio de diversos músicos e bandas, como Gaby Amarantos, Burro Morto, Macaco Bong, Emicida e Móveis Colonias de Acaju, que têm agora mais facilidade de tocar em locais como Rio e São Paulo e outras capitais]
Serve de resposta e estimulado por uma provação de Cláudio Prado, da Casa de Cultura Digital, a posição de Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc-SP, reconhecida como instituição de grande importância cultural. “Temos a política de levar o mais rapidamente para as diversas plataformas aquilo que se pratica como objetivo da instituição. Estamos atrelados ao empresariado, mas não quer dizer que somos conservadores ou reacionários”, afirmou, referindo-se à adesão do Sesc-SP aos CC. [Os CC não são o “liberou geral”, mas uma forma de devolver ao artista o direito sobre sua criação, dando a um compositor, por exemplo, o poder de decidir como quer compartilhar sua música com o público, se de forma totalmente livre ou com cobrança pelo uso dela]
Nada mais oportuno e simbólico do que fazer esse debate no dia em que o governo brasileiro envia ao Congresso a proposta para o Marco Civil da Internet, que pretende estabelecer normas, direitos, deveres e princípios para o uso da web. É uma resposta oficial, do Executivo, mas que surge como resposta ao AI-5 digital, na qual a sociedade se mobilizou e pressionou, com abaixos-assinados e outras manifestações virtuais, contra o projeto do senador tucano Eduardo Azeredo. O que faz com que a mobilização se torne ainda mais importante: “As mudanças estão acontecendo na cultura, nas comunicações, na economia e na política. A sociedade passa por uma transição, que é acompanhada de forma mais lenta pelo Congresso”, afirmou a deputada federal Manuela D’Ávila (PC do B). “Há uma tendência de o Estado ser vigilante. Estamos numa fase de dominar o Estado. É o povo que vai dominar o Estado ou o Estado que vai tentar dominar o povo?” [As gravadoras estão cada vez menores, perdem sua importância, mas não significa que estão mortas. Elas continuam agindo nos bastidores, via “Ecads da vida”, tentando impor regimes de direitos autorais restritivos, como nas discussões que ocorrem nos Estados Unidos, na Espanha ou na França]
Segundo Gil, estamos nos aproximando da realização dos ideais imaginados pelo reputado geógrafo Milton Santos, que via a fase popular da História como algo inevitável. Milton Santos afirmou, em entrevista a Gilberto Gil, em 1996: “Estamos entrando em uma fase diferente, porque vai haver uma mudança qualitativa extremamente forte, onde tudo vai se submeter ao homem e não à técnica, ela própria comandada pela produção como tem sido até hoje.” Assim, por mais que forças produtivas, corporativas ou capitalistas tentem dominar o ciberespaço, eles também têm de trabalhar no contexto do imperativo tecnológico, na qual estão todos inseridos e onde todos se tornam produtores e receptores da cultura. “Eles estão nesse mundo (digital) e não há outro mundo possível. (…) Estamos sob a égide do Todo Poderoso e também dos que não têm poder”, disse o cantor e compositor baiano. [Nunca antes na História houve tanta criação musical, de tantos músicos e sonoridades distintas, de todos os cantos do Brasil, e ao mesmo tempo tão poucos retratados pela mídia tradicional]
Para espanto de Lessig, que voltará para os Estados Unidos com o pensamento “esses brasileiros reclamam de barriga cheia”, o retrato do avanço brasileiro que ele imaginava pode estar ameaçado agora com as discussões sobre o Plano Nacional de Banda Larga, que não é visto como uma questão de infra-estrutura e não está no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ou com a não-discussão sobre a computação nas nuvens (cloud computing), como ponderaram Ronaldo Lemos e Amadeu. “O Brasil mais consome conteúdo do que fornece, e a nossa internet gera despesa e não receita”, diz Lemos, diretor do CC no Brasil e professor da Fundação Getúlio Vargas. “Ou a gente produz conteúdo ou vamos ser sempre a periferia da internet mundial. Conteúdo relevante deveria ser uma questão do MinC.” No caso da computação nas nuvens, que permite qualquer internauta armazenar seus arquivos (documentos, músicas, vídeos) em repositórios virtuais (a quase totalidade deles localizados fora do Brasil), Amadeu adverte que ou assumimos também essa missão, ou corremos o risco de ficar refém de monopólios mundiais. “Cadê o MinC?”, questiona. [Steve Jobs, que renunciou ontem ao cargo de manda-chuva da Apple, é, ao lado do gigante Google, um dos maiores incentivadores do cloud computing, claramente percebendo que o mundo cada vez mais consome música e não precisa ficar refém dos downloads]
Tudo isso acaba nos levando a uma indagação que Lemos arrematou com perfeição. Sim, fomos pioneiros, estamos numa situação privilegiada na cibercultura, mas num mundo em que tempo e espaço ganham outras percepções é fundamental que o Brasil tome para si a responsabilidade de criar tecnologias para nações em desenvolvimento, ou, traduzindo, para cerca de 4 bilhões de pessoas que vivem nos países pobres ou em desenvolvimento. Para o mundo desenvolvido, já há tecnologias de sobra e todas elas sob ameaça de serem controladas, cerceadas ou manipuladas ao interesse das corporações e dos governos. Mas nada tem sido feito para o resto do planeta, que compõe a maioria da população. Por que não um MIT Media Lab no Brasil que crie produtos tecnológicos voltados para os países em desenvolvimento? E bem que o nosso Massachusetts Institute of Technology poderia ser o “Minas Instituto de Tecnologia”, descontrai o mineiro Lemos. [E assim a música se insere nesse mundo digital repleto de oportunidades, onde, afinal, “tudo é perigoso/tudo é Divino Maravilhoso”]
Ótimo registro.
Obrigado, companheiros. O encontro foi muito rico, não?
Lindo ese blog, essa matéria ficou fantástica,claro que principalmente porque um diálogo desse nível não poderia resultar em outra coisa. Estamos vivendo sim um momento do dispertar da sociedade para as tecnologias digitais como parte fundamental e necessária dela, e que deve ser discutida e comandada pelo povo, e não ter suas diretrizes manipuladas por uma minoria no poder.
Valeu Pedro, de fato dá para se entusiasmar com as possibilidades múltiplas que as tecnologias digitais abrem para todos e, quer saber, sou otimista para acreditar que não serão minorias, nem qualquer governo, que tirar a força dessa gente bronzeada que quer mostrar o seu valor.