Há no mínimo duas vanguardas reunidas nesta tarde de quarta-feira, 15 de junho de 2011, no confortável estúdio-casa dos músicos Paulo Lepetit e Vange Milliet, no Jardim Previdência, proximidades do Butantã, zona oeste de São Paulo.
Uma é a há muito decantada vanguarda paulista da Isca de Polícia, big band que desde 1980 acompanhou a trajetória de um dos maiores compositores e músicos da história deste Brasil, Itamar Assumpção (1949-2003).
Outra é a bem mais misteriosa vanguarda matogrossense (do sul, mas considere o norte também), da compositora e cantora Alzira E, uma entre sete filhos cantantes (Celito, Geraldo, Humberto, Jerry, Sérgio, Tetê) da introspectia-extrovertida família Espíndola, e de um dos maiores homens-cantores da história deste Brasil, Ney Matogrosso.
Ney, homem de 1001 fantasias, todas elas hiper-realistas, veste hoje a capa preta de Itamar Assumpção. Ocupará o lugar que foi dele em três shows no Sesc Vila Mariana, hoje, amanhã e domingo. A voz aguda de Ney toma conta da voz grave de Itamar, e o espírito que canta está presente em cada um dos presentes – além dos já citados, a cantora Suzana Salles, o trombonista Bocato, o baterista Marco da Costa e os guitarristas Luiz Chagas (pai de Tulipa Ruiz, garota-síntese de novas transvanguardas paulistas-matogrossenses) e Jean Trad.
“A inspiração vem de onde?”, pergunta a letra da canção em ensaio, composta por Itamar e Alzira e lançada em 2004 por Ney com a banda carioca Pedro Luís e A Parede. A reinvenção do arranjo e da canção está acontecendo ali, ao vivo e em cores, na presença do espírito que canta. A algazarra se mistura aos versos, todo mundo debate, discute, delibera e decide enquanto canta.
Homem-ponte entre o litoral e o interior, Ney avisa que vai “fazer vozinha”. Vai poupar a garganta para os shows. E não faz vozinha. Faz vozão. Sereno e sorridente, resmunga da dificuldade de cantar sentado. Explica que sua postura é corpo projetado para trás, não corpo projetado para frente. A inspiração “vem de um gesto preciso/ vem de um amor, vem do riso, vem por alguma razão/ vem pelo sul, pelo não”.
O big grupo se subdivide em big subgrupos. De um lado, os canários Ney, Alzira, Suzana, Vange – é a primeira vez em 69 anos que Ney canta secundado por mulheres. Do outro lado, a cozinha musical, fumegante entre 1001 olhares cúmplices. “Que saudade de ver Bocato e Paulinho tocando juntos!”, exclama Alzira, assistindo aos trechos de que não participa.
Os tempos são curtos, rápidos, escorregadios. Bocato soca o ar de satisfação quando consegue ajustar seu solo de trombone em sincronia tanto com as vozes quanto com as linhas melódicas. “É aqui, na cabeça”, Ney aponta a própria têmpora, em cumplicidade simultânea com vocalistas e instrumentistas, tentando determinar a hora de introduzir sua voz num arranjo. A inspiração “vem pelo mar, gaivota/ vem pelos bichos da mata/ vem lá do céu, vem do chão/ vem na medida exata”.
“Vocês vão na frente, e eu vou na de vocês”, ele pede às companheiras, sabedor de que não é do dia para a noite que se aprende os mirabolantes efeitos vocais que Itamar e suas 1001 mulheres-orquídeas criavam. O frio lá de fora vira calor aqui dentro, Suzana fica de pé, Ney tira o casaco. A inspiração “vem dentro da tua carta/ vem do Azerbadijão/ vem pela transpiração”.
Alzira, que no palco participará de dois números, fica no ensaio para vibrar e zelar por “Bomba H”, outra parceria dela com Itamar lançada originalmente por Ney, em 1999. O desenho vocal é sinuoso, Ney canta lento, Suzana e Vange aceleram, todo mundo tem de se encontrar no final. “Pra que rancor, tanto tédio?/ pra que terror, tanta mágoa?/ a vaca já foi pro brejo, os burros já deram n’água”, pergunta-exclama, ferino, o espírito simbolista que canta.
Alzira acha que a letra está sendo deturpada em prol da pororoca de todas as vozes. “As deturpadoras”, diverte-se Luiz, olhando em riso aberto para as vocalistas. “Pra que olhar raso d’água?/ por que não só de desejo?/ paixão é qual bomba H/ seu estopim é o beijo.” Tudo se resolve, na transpiração. Na hora H será aqui, na têmpora.
A inspiração “vem com meu bem de Belém/ vem com você nesse trem/ das entrelinhas de um livro/ da morte de um ser vivo/ das veias de um coração”. Mortos estão os seres vivos Itamar Assumpção, espírito que canta, e Secos & Molhados, grupo de origem de Ney Matogrosso. Os “tchutchurus” concretistas de Vange e Suzana iniciam o ensaio de mais uma canção, e algo novo e esquisito transpira no ar.
Entra a voz de Ney. Trata-se de “Sangue Latino”, hino 1973 dos S&M. (Re)nasce uma nova canção, vanguarda paulista-matogrossense, ecos interiores de Brasília, Goiás, Espírito Santo (que canta), Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Tocantins. “Puta que pariu!”, cochicha Ney para si ao terminar o último verso da primeira faixa do primeiro LP que gravou. Jurou verdades e segue acompanhado pela Isca de Polícia. “Sangue Latino” lhe exige à beça, até hoje.
Então o corpo ainda sentado de Ney se projeta de modo diferente. O último soul-rock-etc. do show entra em ensaio. O corpo se infla, a feição se adensa, as artérias do pescoço pulsam. O espírito que canta transmite a Ney “Fico Louco”, canção de sonho do primeiro disco da Isca de Polícia, lá de 1980. Até outro dia, o intérprete não conhecia essa música; hoje, seu espírito-corpo está em estado de graça.
Dos princípios tortos e esguios de Itamar, Ney e Isca trarão “Fico Louco” e “Chavão Abre Porta Grande” (1986). Essa foi gravada por Ney em 1988 – a primeira vez que um ícone da MPB furou o cerco e interpretou o dito maldito, nego dito Itamar -, mas jamais cantada em show. O cantor gamou em “Fico Louco”. Promete que “no mínimo” vai gravá-la num futuro CD de carreira.
Pergunto se a transformação durante o ensaio de “Fico Louco” acontece porque a música lhe exige demais, ou se por puro entusiasmo e diversão. É entusiasmo, ele responde. Antes de ir embora da casa-estúdio, volta-se para mim e pergunta, uma pontinha de insegurança no espírito que canta-e-dança, se transpareceu algo de negativo naquela transfiguração. Não, Ney, transpareceu foi empolgação, da mais cristalina.
“A inspiração vem de onde?/ de onde?” Vem do mesmo lugar que a transpiração, proclamam em coro as vanguardas caipiras de um país que não é só litoral: vem do interior.
Acho que essa química que rola entre Ney e a Vanguarda Paulista vai muito além da música ou da estética. Claro que Ney sempre teve um enorme reconhecimento de seu talento por aí tempo afora, muitos prêmios, etc; e é claro que em cena Ney é sempre uma estrelona de primeira grandeza. Mas apesar disso, ele nunca deixou de ser um artista alternativo. Há nele uma coisa meio anti-star system, anti-mainstream, sei lá, em que ele parece estar cagando p/ o que se espera de uma “estrela”. Ele diz e faz coisas que não se espera da “preocupadíssima” ala sagrada da mpb (da qual ele sempre fez parte). Acho que a marginália provoca uma irresistível atração em Ney. Ela é mais um veículo pra que esse artista, ao mesmo tempo lúcido e anárquico, zombe (com o maior tesão) do amor e da razão.
Pedro, adoro os teus textos. Parabéns! Abs.
Oi, Afonso, obrigado!
Concordo plenamente com você, e isso faz de Ney uma figura dupla, tripla e multiplamente especial, não? Levou a (homo)sexualidade livre à tela da Globo em plena era Medici, levou e leva Itamar à nobreza-de-araque da dita MPB, levou e leva uma multidão de velhinhas e velhinhos de cabelos brancos a seus shows…
Essa última aconteceu de novo ontem, no show do Sesc, e os grisalhinhos e grisalhinhas se esbaldaram de… Itamar Assumpção!
Sensacional, sensacional.