Quando entrevistei o rapper Emicida para o iG, menos de um mês atrás, optei por produzir um texto corrido, mais um complemento em que ele comentava, faixa-a-faixa, sua mixtape “Emicídio”.

Entre os muitos detalhes que ficaram de fora da edição extraída de uma conversa de 2h48min, há um trecho de diálogo que permaneceu inédito, porque expunha o entrevistador (eu), e eu (o entrevistador) não sabia como encaixá-lo no texto corrido. E eu quero agora tirá-lo do ineditismo, no formato pingue-pongue, tal qual aconteceu no aqui-e-agora da entrevista.

É o seguinte:

Emicida – Quando escrevi essa música (“Você Não Faz Ideia”) eu tava sentado na calçada do metrô, esperando alguém. Levantei pra atravessar a rua, e aconteceu um bagulho muito louco que sempre acontece, cara: você vai atravessar uma rua, quem tá no farol já olha pra você e já começa, de uma forma sutil – os caras acham que a gente não percebe -, a fechar o vidro, tipo rezando pro farol abrir, tá ligado? Você pega um táxi e o cara te faz milhares de perguntas, e dependendo do lugar que você tá indo o cara fala que não vai. O Fióti (irmão de Emicida) acabou de passar por um bagulho desses, o taxista falou que não levava o cara. Por quê? Porque o cara é preto. “Não leva por quê?” O cara não responde.

PAS – O cara não responde nada?

Emicida – Não responde. Tipo, “ah, não, não dá pra eu levar duas pessoas”. É um bagulho bem comum, embora tenha uma parada que a gente brinca até, mas é bem séria: os pretos, na sociedade, eles são vistos como se fossem ratos. Você vê que tem vários ratos que são famosos, tipo Mickey Mouse (risos), o Tom & Jerry, o Pink & Cérebro – as pessoas andam com camisa dessas coisas. Só que, se as pessoas veem um rato na rua, a primeira coisa que elas pensam é em matar e sair de perto. Com os pretos rola uma coisa muito parecida. As pessoas escutam Jimi Hendrix, andam com camisa do Bob Marley, vão a shows de rap, e quando elas encontram com a empregada, com o porteiro, com um preto na rua, a primeira coisa que fazem é pensar “mano, esse maluco vai me roubar” e atravessar a rua pro outro lado.

PAS – Qual é o sentimento do preto quando ele tá nessa situação? Não só de ver o cara se afastando, mas… Digo, o desencontro é das duas partes, não é?

Emicida – É, já teve momentos de eu ficar muito mais puto. Obviamente eu fico puto, tá ligado?, acho uma situação ridícula. Mas eu fico, tipo, que idiota, se eu quisesse roubar ele eu não ia vir de frente, saca? Eu me pergunto mais por quê, pô, e quando essa porra vai mudar? O Brasil vai mudar em 50, 100 anos? Tem muitas ideias pra ser quebradas, a gente tá no começo dessa briga ainda.

PAS – O que eu queria te perguntar, na verdade, é outra coisa. Vou me expor um pouco. A coisa que mais odeio na vida é racismo, mas um momento muito difícil e sofrido da minha vida, recente, foi um dia que eu descobri que, se eu descuidar, eu posso ser o cara que atravessa a rua…

Emicida – Sim.

PAS – …Eu vejo alguém lá longe e a reação automática é atravessar a rua… Aí, como eu posso dizer que não sou racista se intuitivamente eu ajo assim? Mas, quando percebo isso, o que eu fico pensando é o seguinte: e aquele cara lá do outro lado da rua, o que será que ele pensou de mim nessa hora?

Emicida – Total.

PAS – É isso que eu quero perguntar na verdade: o que você pensa quando o branco vem vindo do outro lado e… começa a se afastar? O que você pensa do branco?

Emicida – Cara, tem uma música do Tio Fresh, do SP Funk, que ele fala: “Desde a época da balança já havia uma matança/ olho para os brancos e às vezes eu penso em vingança”. É um bagulho muito pesado, é muito ruim quando você percebeque aquela pessoa tá com medo de você, e você não é ameaça nenhuma pra aquela pessoa. Várias vezes você nem notou a presença daquela pessoa, e só nota quando tem um gesto desse tipo, sabe?

Tudo isso ainda se soma ao fato de a gente viver numa cidade muito violenta, você não sabe quem é quem, quem é o quê. Somando tudo, fortalece vários estereótipos, e aí as pessoas ficam reféns desse tipo de atitude. A minha sensação é bem mais de tristeza, sabe? Fico puto, porque, por exemplo, eu quero pegar um táxi e os taxistas não param pra mim. Fico puto mais porque eu deveria chegar num lugar em tal horário e não vou conseguir por causa desses filhos da puta que tão pensando que eu vou roubar eles, tá ligado? É uma coisa assustadora, mas a situação em si eu já começo a encarar como uma extremamente comum, “essa porra não vai mudar hoje”.

*

O trecho que eu queria mostrar era esse, mas a conversa prosseguiu depois disso, e transcorreu maravilhosamente, como todas as vezes em que já entrevistei esse jovem artista paulistano. A mãe dele, Jacira, chegou ao estúdio vinda da hemodiálise e passou a assistir e a participar do papo. Já tínhamos falado sobre os negros e sobre o racismo, em seguida conversamos também sobre as mulheres e a misoginia, a propósito do rap “Rua Augusta”. Foi assim:

Emicida – Cara, essa aí cê vai ver, a gente vai fazer um vídeo dessa música que vai ser foda. A gente vai falar lá com aquelas minas da Daspu pra elas participarem, sabe? Vamos fazer um documentário. Boa parte dos shows que eu fiz em São Paulo nesses últimos tempos foi na rua Augusta, e eu fico olhando os detalhes assim calado, fico vendo as minas lá, e fico imaginando como é a vida das putas durante o dia. Imagino as minas se preparando pra ir pra lá, ficando ali, o tanto de coisa que elas tão sujeitas ali. Todo mundo tem isso aí como se fosse uma vida fácil, mas, pô, não é fácil, não. Já vi várias vezes os caras passarem zoando mesmo, jogando bagulho nas minas, ovo, pedra.

PAS – É muito preconceito também, né?

Emicida – Porra, mano, pra caralho. E eu fiz uma música que fala disso, tem um verso que fala essa parada, que todo mundo fala que é errado, mas foda-se se é erro, “quem fez o certo foi Jesus, e cês agradeceram pregando ele numa cruz”.

PAS – Muitas vezes quem fala que é errado usa também, né?

Emicida – É, então, a música fala disso também, “o homem bom que não aguentou ser solitário”. Fala bem disso, mas com uma visão bem minha, não de “elas são putas”, mas, tipo, de prestar atenção em todos os detalhes.

PAS – Também ali você é um cara que tem identidade na periferia passeando pelo centro…

Emicida – Passando pra lá, é, porque, vindo de lá, eu conheço várias minas que são putas.

PAS – Você diz daqui (a entrevista acontece na zona norte de São Paulo), ou de lá mesmo?

Emicida – Conheço de vários lugares, mas eu conheço da quebrada mesmo. Aí você vê os bastidores da coisa, sabe? Cê não vê a prostituição…, eu não consigo ver uma puta como vê, sei lá, um cara que realmente come as putas. Mano, quando eu vejo uma puta eu penso em tanta coisa, tá ligado? Penso nos filhos que ela tem pra criar, na casa de onde ela veio, se ela tá com frio. Eu penso em todos esses bagulho. A imagem de uma prostituta pra mim é um bagulho muito mais vasto. É muito simplista você ligar aquilo só ao sexo, que é um detalhe.

PAS – Quem vê uma puta só como uma puta não tá enxergando nada…

Emicida – Não tá enxergando nada, é isso aí. Então, por ter visto essas minas fora dali, eu consigo ter essa visão, da mina que o marido abandonou e ela teve que se virar de alguma forma e o que encontrou foi isso… Porque a rua abraça, né? Elas têm que ganhar dinheiro e tão ali no meio de qualquer jeito. Muitas vezes é uma vida zoada… Porque ninguém sonha em ser prostituta com oito anos de idade, tá ligado? É uma profissão que realmente você vai parar lá dentro.

PAS – Nessa idade, certamente chega levada por outras pessoas.

Emicida – Sim.

*

Nesse embalo, quase imediatamente o espelho refletiu para o lado que faltava naquele triângulo: os homossexuais, a homofobia. E eu tenho certeza que todo mundo entendeu o que estava falando, mesmo que eu não tenha tido coragem de declarar ali, cândida e textualmente, que, sim, eu sou homossexual. Foi o seguinte:

Emicida – Se você abrir o leque, mano, tem tanto tipo de preconceito. Eu fico lutando, igual essa parada que você falou, “eu fico me policiando porque, se eu moscar, viro racista”, e eu fico na mesma coisa comigo, porque se eu vacilar eu trato alguém diferente. Cê tem que ficar se policiando, isso aí é bem comum. Num momento tem o bagulho da proteção, puta, a gente nunca teve nada, a gente morou numa favela a vida inteira, não tinha comida, não tinha tênis, não tinha nada, e de repente você vê as coisas acontecendo. Um tênis, na favela, é a maior conquista que um cara pode ter, mano. Por isso cê vê todo mundo de tênis branco, limpinho – se é branco, limpinho, “mano, esse tênis é novo!”. E com um tênis novo você é tipo Antônio Ermírio de Moraes, tá ligado?

Então as pessoas se apegam muito a isso, mas expõe de uma forma simples uma conquista, e, se você olhar com atenção, é uma pobreza de espírito muito grande sua maior conquista ser um tênis, uma garrafa de champanhe. Isso realmente muda a sua vida? Os caras se escondem atrás disso, e é mais uma forma de preconceito: cê tá começando a ir pro lado das coisas que combatia. Embora você chame as minas de “vagabunda” ou “vadia”, você não gostaria que falassem assim com a sua mãe e com sua irmã.

PAS – E nisso a gente acaba descobrindo que todo mundo tem preconceito, né? A diferença é que uns policiam os seus e outros não.

Emicida – Sim, não sei quem falou pra nós uma vez, que é prova do preconceito… Acho que foi talvez minha mãe que perguntou: sabe a diferença do homossexual e do viado? Os caras falam que viado é o filho dos outros.

Jacira – Acho que fui eu…

Emicida – É, minha mãe que falou.

Jacira – Eu disse, lembro que tava preocupada com a sua irmã, e um dia eu disse assim: será que ela tá vivendo lá no meio dos veado, meu Deus do céu? Aí você falou: “Mas a senhora não disse que é preconceito?”. Acabou de descobrir que eu tenho preconceito… Só porque até então eles não tinham adentrado a minha casa, puta que pariu, olha, eu também penso do mesmo jeito: tem que respeitar e tudo, desde que eles se mantenham da minha porta pra fora.

PAS – Esse é o funcionamento do preconceito, seja qual for…

Emicida – Total, cê vê como que o bagulho entra?

PAS – E a gente só tem preconceito contra o que não conhece (Jacira ri)… Você não sabe como vive uma puta, ou um gay, ou um negro, e aí não tem jeito.

Emicida – Tem a ideia assim: puta dá, viado é promíscuo e preto rouba. Já era. A ideia simples é essa. E aí é bem isso, cê vê como o preconceito tá ali. Quando é próximo a você, você tenta cuidar. Por exemplo, eu tenho um primo que é gay, e a mãe dele fala que ele é deficiente mental, mano.

Jacira – Ela trata ele.

Emicida – Ela trata ele com remédio!, tá ligado?

PAS – Como se fosse doença…

Emicida – Puta, mano, e ninguém assume que o cara é gay. É só falar. É só deixar o cara. O cara é gay, mano. E pior, que quanto mais cê tenta esconder mais fica aparente. Pô, todo mundo sabe, se você ficar 15 minutos na casa dele você vai se ligar que, pô, o cara é gay.

PAS – De deficiente mental não tem nada?

Emicida – Não tem nada, ele é normal, tá ligado? Mas a mãe dele vai ficar te explicando, te dá milhares de explicações inúteis. Cê vê o receio dela de assumir pro mundo que tem um filho gay, que é um receio que o filho dela não tem, tipo “foda-se, sou gay”.

*

Então, é mais ou menos isso que eu queria dizer, nada mais é preciso acrescentar. Aliás, sim, só uma coisa, ou duas: não é maravilhoso descobrir como mulheres, negro(a)s, homossexuais (e outras tantas ditas “minorias”) podem se sentar numa mesma mesa e conversar de modo aberto, pacífico e harmonioso, se assim quiserem? A quem mesmo interessava desesperadamente nos separar e nos desunir?

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome