uma vez escrevi sobre kazuo. foi em 26 de maio de 1997.

foto: emidio luisi
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ARTISTA NÃO SE PRESTA A JULGAMENTOS

Ele nos livra da artimanha do gosto para nos pôr em contato com sua experiência

Neste arremedo de mundo neoliberal em que vivemos, regido tão-somente por uma
espécie de código do consumidor onde tudo precisa ter antes uma função
utilitária, é interessante notar o estrago promovido pelos espetáculos de Kazuo
Ohno.

Impossibilitada de julgar Kazuo, a crítica age como comentarista de
vernissage – o público estava mal-vestido, o filho de Kazuo é careca, a rosa no
chapéu dele não deveria ser vermelha, etc. e tal.

Isso porque Kazuo Ohno não se presta a julgamentos, não se submete à facilidade
comparativa dos cânones de técnica e gosto ou à meia dúzia de clichês
estruturalistas. Por uma calculada ironia ou por excesso de generosidade, ele
nos livra da artimanha do gosto e da adjetivação burguesa para nos colocar em
contato com sua experiência bruta, seu desejo sobre-humano de alcançar o último
impulso.

Os braços e os dedos descarnados de Kazuo Ohno não contemplam gestos banais.
Ele é (notem bem: ele é, não se traveste de) uma mulher enlutada e árida
caminhando sobre um facho de luz em No Aniversário da Morte do Meu Pai Eu
Caminhei por uma Ponte entre Íris em Flor
, esquete arrancado a fórceps de um
haicai de Koi Nagata. A travessia de Kazuo na ponte é infinita, nunca vai nos
deixar, assim como não esqueceremos o solo de seu filho Yoshito Ohno em
Primavera, digna proeza do digno herdeiro de uma tradição inteira de
delicadeza.

Já em Suiren, Kazuo não representa a vida, mas a representação da vida já
retratada por Monet no quadro Lírios dÁgua. Ele agora persegue a sombra, a
projeção da imagem, o clarão que algum dia possibilitou a visão de Monet.
No palco, Yoshito e Kazuo observam a ansiedade do público e ocupam-se em
preencher os espaços dessa ansiedade, como se estivessem costurando uma grande
teia de cumplicidade entre a aranha e suas presas.

O público, envaidecido, é brindado no final com dois solos de Kazuo sobre música de Elvis Presley. Kazuo agora brinca, rodopia, se exaure. Está feliz. E infelizmente para você, prezado consumidor, Kazuo Ohno não faz performances. Não veio com manual de montagem e uso.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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