Sobre aquela tal de tropicália, uma reportagem publicada na revista “CartaCapital” 586, de 10 de março de 2010. Sabe que, até ler o livro do Christopher Dunn, eu NUNCA tinha prestado atenção nessa passagem do Gilberto Gil em “Questão de Ordem”? Até me diria estarrecido pela descoberta demorada – se não estivesse entusiasmadíssimo com o jardim (de brutalidade) escondido atrás da repulsa do público de 1968 por Gilberto Gil.
Reorientar o movimento
Christopher Dunn diz que o comportamento rebelde, mais do que a política, tirou público da Tropicália
POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES
Um dos episódios mais emblemáticos da música brasileira sob a ditadura militar foi o da vaia fragorosa a Caetano Veloso em 1968, três meses antes da instauração do Ato Institucional No 5, quando cantava É Proibido Proibir no III Festival Internacional da Canção (FIC). Fora de si, o músico entrou em confronto verbal com a plateia que o rejeitava e, em seguida, desafiou nervosamente o júri: “Me desclassifiquem junto com o Gil, tá entendendo?”.
Hoje poucos lembram qual era a canção de Gilberto Gil a que o parceiro se referia. Chamava-se Questão de Ordem, e fora desclassificada na eliminatória anterior. “Gil fundiu cuca de vocês, hein?”, bradou Caetano no calor da hora. E Questão de Ordem não sobreviveu ao calor da hora. Costumamos nos lembrar do rififi de É Proibido Proibir tantas vezes quantas nos esquecemos da apresentação do rockinho tropicalista no qual Gil antecipava o exílio que viria: Daqui por diante fica decidido/ quem ficar vigia/ quem sair demora.
Essa cena esquecida volta ao palco brasileiro 41 anos mais tarde, sob o olhar estrangeiro de Christopher Dunn, professor e pesquisador do departamento de espanhol e português da Tulane University e autor do ensaio Brutalidade Jardim – A Tropicália e o Surgimento da Contracultura Brasileira (273 págs. R$ 37). Publicado nos Estados Unidos em 2001, em meio a uma onda de valorização do movimento tropicalista por críticos e fãs norte-americanos e europeus, o livro demorou nove anos para ganhar edição brasileira, consumada por iniciativa da editora Unesp e mediação do encenador teatral Zé Celso Martinez Corrêa.
Dunn leva vantagem sobre intérpretes locais do fenômeno musical dos anos 1960 por abordá-lo à distância e alheio à perene relação de conflito entre os tropicalistas e seu Brasil natal. A leitura faz compreender que a tropicália atraiu vaias à direita e à esquerda menos por seu conteúdo propriamente político que pela revolução comportamental que propunha. Se a postura sexualmente ambígua de Caetano motivou em parte a rebelião contra É Proibido Proibir, Dunn reconstrói a imagem de Gil amparado por uma túnica de motivos africanos, barba, bigode e cabelo black power e musicalidade próxima à do roqueiro negro Jimi Hendrix.
O autor transcreve trechos de um artigo-discurso que Gil enviou à época do exílio para O Pasquim, com o propósito de recusar um prêmio que o Museu da Imagem e do Som carioca queria lhe outorgar, pelo samba Aquele Abraço (1969). “E que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que Aquele Abraço não significa que eu tenha me ‘regenerado’, que eu tenha me tornado ‘bom crioulo puxador de samba’ como eles querem que sejam todos os negros que realmente ‘sabem qual é o seu lugar’”, escreveu um Gil muito menos brando que aquele com que nos acostumamos mais tarde. “Eu não sei qual é o meu, e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo à mesa dos senhores brancos, e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil. Por isso talvez Deus tenha me tirado de lá e me colocado numa rua fria e vazia onde pelo menos eu possa cantar como o passarinho. As aves daqui não gorjeiram como as de lá, mas ainda gorjeiam.”
Segundo o registro de Dunn, o jornalista Nelson Motta (que décadas mais tarde evocaria o rancor racial como elemento da derrocada do ídolo black pré-tropicalista Wilson Simonal) foi um dos que se voltaram contra Questão de Ordem. “Gil derivou para uma linha mais africana, mais identificada com a moderna música negra internacional, mas não está sendo entendido nem pelo público nem por mim”, queixou-se o crítico em 1968, no jornal Última Hora.
“Minha leitura é especulativa, mas acho que a performance da africanidade e negritude de Gil incomodou boa parte do público”, afirma em português fluente o autor, numa entrevista por e-mail.
Seu interesse por esse aspecto tem relação com o fato de ele atuar no Programa de Estudos da África e Diáspora Africana da Tulane. Não chega a ser o fio condutor do livro, mas o componente racial, sempre escamoteado por aqui, vem se somar à afronta sexual-comportamental proposta por Caetano, Gal Costa e Mutantes, bem como ao intricado xadrez político que indispôs os tropicalistas tanto com artistas de esquerda quanto com a ditadura de direita.
Norte-americano de descendência irlandesa e alemã, Dunn diz que seu interesse pela música daqui foi despertado por um professor especialista em história brasileira. “Meu interesse pelo Brasil não é porque seja ‘exótico’ em relação aos Estados Unidos, mas porque é similar, comparável, e ao mesmo tempo diferente”, diz. “Como os Estados Unidos, o Brasil é um país social, étnica e culturalmente complexo e heterogêneo, com traços distintivos devido a seu legado lusitano, africano e indígena. A cultura afrobrasileira é para mim especialmente impressionante na forma em que concilia a tradição (penso, por exemplo, em candomblé, capoeira, formas tradicionais de fazer música) com a modernidade globalizada.”
É eloquente que a tropicália só tenha despertado o interesse nos norte-americanos mais de duas décadas após o nascimento e morte do movimento – bem diferente do que acontecera antes com a bossa nova, bem mais embranquecida e elitizada, e prontamente capturada por plateias primeiro-mundistas. “Ao longo de muitos anos, a música brasileira era ouvida no exterior como um grande desdobramento da bossa nova, que está longe da questão terceiro-mundista”, observa Dunn. “Essa situação muda um pouquinho com o surgimento dos blocos afro e a expansão internacional da capoeira, mas em geral o consumo de música brasileira no exterior não passa por aí. E muito menos no caso da tropicália, que foi reconhecida tardiamente como mais um som interessante a ser citado como referência, e não como discurso político insurgente.”
A identificação tardia se consolidou nos anos 1990, quando o músico David Byrne descobriu a obra de Tom Zé, um tropicalista iconoclasta que, por aqui mesmo, andava redondamente esquecido. A tropicália almejou conduzir a música brasileira ao mercado de massas, e, ironicamente, foi o menos comercial de seus participantes quem inseriu a tropicália no mercado dito “global”.
“A música de Tom Zé abriu nossos ouvidos para uma tradição experimental e vanguardista na música brasileira que tinha sido ignorada, salvo algumas exceções como a música instrumental de Hermeto Pascoal”, diz o autor. “A coletânea dele (lançada pelo selo de Byrne) foi uma revelação para o público norte-americano e europeu, e preparou o terreno para a apreciação tardia da música tropicalista no exterior. Na época, tive várias conversas com pessoas que não sabiam nada da música brasileira, mas adoravam Tom Zé.”
Dunn coloca foco na dimensão política em Brutalidade Jardim, como quando procura defender o movimento, apenas parcialmente, de acusações de que operasse uma “modernização conservadora” no cenário local. “(José Ramos) Tinhorão interpretou a tropicália simplesmente como a vanguarda cultural do regime militar”, menciona, afirmando discordar de tal leitura.
Detém-se, por exemplo, no gesto tropicalista pioneiro do filme Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, na cena em que o intelectual Paulo Martins tapa a boca do personagem que alegoriza o “povo” e esbraveja: “Você vê o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado! Vocês já pensaram Jerônimo no poder?”. Dunn mostra como se tratava de uma (auto)crítica de Glauber ao paternalismo “nacionalista-participante” de esquerdistas mais ortodoxos (como Geraldo Vandré), desenvolvida e aprimorada em seguida pelos tropicalistas.
Curioso é testemunhar como Caetano ainda hoje ecoa aquele momento histórico, como na crítica recente a Luiz Inácio Lula da Silva (Jerônimo) em termos do tipo “analfabeto” e “grosseiro”. É como se Jerônimo houvesse ido ao poder e Paulo Martins cedesse, ainda hoje, ao cacoete de querer calar a boca de Jerônimo. É como se Caetano, jovem vilipendiado de 1968, cansasse por ora de nos tantar fazer entender por que seu corpo queria ficar Odara e agora se alinhasse, simultaneamente, aos paternalistas de esquerda e aos autoritários de direita que tanto combateu quatro décadas atrás.
“Não vejo a analogia, porque o insulto de Caetano é coerente com a posição antipopulista que ele sempre defendeu”, discorda Dunn. Mas, em seguida, ele cita uma possível perda de espaço e poder do artista-intelectual (“ou do ‘intelectual pop star’, para citar a autodenomincação de Caetano”): “É uma figura que há muito deixou de ter relevância nos Estados Unidos, mas resistiu por mais uma geração no Brasil. Pode até indicar a decadência do intelectual público, seja artista ou não, na sociedade brasileira”.
Se aqui e ali o discurso de Dunn chega a soar cético quanto às conexões entre política da arte, seu próximo livro pode demonstrar que as coisas não são bem assim. Prepara, em parceria com o brasileiro Idelber Avelar, seu colega em Tulane, um livro de ensaios sobre cidadania na música brasileira. “Constatamos que algumas das músicas mais interessantes do ponto de vista de invenção formal também são ‘engajadas’ no sentido de abordar questões sociais e políticas com um olhar crítico. Quem vai dizer que a música de artistas como Tom Zé, Nação Zumbi, Nega Gizza, Racionais MC’s, Pedro Luís e A Parede, Titãs ou Bezerra da Silva é chata ou panfletária?”, pergunta, em permanente diálogo com as tradições e contradições dos antropófagos tropicalistas.