O chapeiro da lanchonete é desdentado e tem uma cabeça de míssil, pontuda e reluzente, olhos sem expressão e, para piorar, uma fuligem nas maçãs do rosto, como ferrugem de goiaba. É feio de dar cãibras nos olhos. E eu, como sou um chato pretensioso, estou ali há 15 minutos e já desenvolvi uma tese movediça sobre a condição do feio na sociedade. A tese é a seguinte: ninguém é suficientemente feio nesse mundo. Quer ver? Bastou que surgisse o homem da limpeza, um quasímodo com voz pastosa e rosto de castor, e o chapeiro bizarro da lanchonete desandou a rir sem parar da aparência do sujeito, com um olhar que procurava e encontrava cumplicidade de ponta a ponta do balcão – até a minha mesma, hipócrita que sou.

– “E aí, Sassá?”, disse o chapeiro ao homem-castor, a risada engatilhada, óbvia, sentindo-se subitamente colocado na até agradável posição de menos feio. Agradável deve ser exagero meu. Ser um feio mediano também não deve ser agradável. O problema de ser medianamente feio é que o feio médio não tem status. É apenas feinho e o desprezo que acarreta é somente mediano. O feio fora de série suscita mais que desprezo, mais que repulsa. É alvo de manifestações de carinho e passa a ter um capital de feiúra que o faz romper barreiras de classe e de intelectualidade. O feio de doer pode entrar em qualquer roda e ser imediatamente aceito. É ele a única unanimidade ali. Rindo da minha própria ociosidade intelectual, nem vi o delegado instalar-se na cadeira à minha frente.

– “Preciso de uma ajudinha, um tipo de consultoria”, disse–me o delegado Giudice.
Meu Deus! O delegado Giudice, solucionador de 17 sequestros, a estrela do mundo da lei? Em carne e osso, ali na minha frente?

Ufa, e eu que pensava que era pepino. Quando ele me ligou, um dia antes, pensei que poderia finalmente sair do anonimato por conta de um grande equívoco burocrático, e tornar-me enfim uma celebridade, preso erradamente por algum crime estúpido.

– “Em que posso lhe ser útil?”

– “Bebe algo?”, disse o tira.

– “Só gosto de vinho. E hoje tá quente, não tá pra vinho.”
O delegado fez um gesto e veio o garçom.

– “Dois sucos de laranja.”

Quer me irritar é pensar por mim, pedir algo que não pedi. E qual terá sido o filho da mãe que deu meu telefone para esse delega? Já estou coberto de aflição de novo.

– “Você coleciona CDs antigos, não é? Foi o que me disseram. Dizem que tem mais de mil.”

– “Dois mil e setecentos, para ser mais exato. De rock. Só de rock.”

– “Então me diz algo sobre isso.”

E Giudice pôs sobre a mesa um CDplayer antigo, provavelmente japonês, com uns frisos bonitos ao redor dos comandos. Um aparelho raro, coisa fina, coisa de colecionador. Tenho quase a tentação de lhe perguntar onde arrumou a maravilha. Mas ele aperta o play e começamos a ouvir uma espécie de lamento.

– “While you make pretty speeches”, canta a voz no aparelhinho, “i’m being cut to shreds”.

– Radiohead!, eu digo, sem hesitação, o que parece impressionar deveras o delega.

– “O que quer dizer?”

– “Banda inglesa da virada do século. Essa é uma canção do auge do grupo. Romântico, no sentido clássico do termo. O cara é Thom Yorke, um olho mais alto que o outro, como um farol de carro desregulado. E ele sempre cantou como se estivesse se desfazendo no palco.”

– “Não, o que quero saber é o que diz essa parte. O que diz a letra?”
Porra, o delega não sabe inglês? Tem um monstro de reputação, mas não sabe nem olhar no dicionário de inglês! Eu quase começo a admirá-lo.

– “Quer dizer mais ou menos o seguinte: ‘Enquanto você faz discursos bonitos, estou sendo cortado em tiras’”.

Ele parou, ficou olhando o aparelhinho e pensando. Então, apertou outro botão:
– “O que você acha que essa letra tem a ver com essa outra aqui?”.

E começou a sair outro som interessante dos falantes.
– “Quando ficarmos velhos, você ainda me amará?”, dizia a letra, outro lamento. Eu já a traduzi em tempo real, para encurtar caminho.

– “Isso é de outros tempos. Bem antes de Radiohead. O cara que canta é Ian McCulloch, e a banda é Echo and the Bunnymen. Tudo a ver uma com a outra, uma só existe porque a outra existiu antes. Era um negócio que chegou a ser chamado de rock gótico. Ficou célebre um cara dessa geração aí, um ser de voz de trovão chamado Peter Murphy, que um dia casou com uma turca, deixou-se seduzir pelo islamismo e foi morar em Istambul. Murphy acabou a vida como um sacerdote gótico abençoado pelo Islã”.

O delegado parecia querer me perguntar mais alguma coisa, mas desistiu. Tampouco me explicou alguma coisa. Tomou um gole do suco de laranja e fez uma careta. Pegou um papel que estava dobrado no meio de sua carteira, entre o talão de cheques e a carteirinha do sindicato dos meganhas. Num guardanapo de papel, me apontou um nome anotado: STIFF KITTENS.

– “E isso, o que é?”.

– “Não me é estranho. Mas eu preciso fazer uma busca em casa. Posso ligar mais tarde?”.

– “Pode não. Deve. Aqui tem meu cartão.”

mais um post da série de trechos do policial inédito que repousa na minha gaveta, ‘a morte engarrafada’

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

3 COMENTÁRIOS

  1. pode até não parecer, mas tô acompanhando cada capítulo da morte engarrafada. e com ansiedade. O que eu tô achando?! porra, não me faça essa pergunta. dizer apenas "legal" ou "um barato", talvez seja pior que dizer "não gostei" e ponto. aquela ideia de colar aí fragmentos (posso chamar assim?) das tuas andanças profissionais me é no mínimo curiosa. continua. abraço.
    PS: Manu é minha filha

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