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“carta capital” 542, 22 de abril de 2009.

O MODESTO “GENIALF”
Autor de Rapaz de Bem, Johnny Alf completa 80 anos num hotel-residência para idosos e volta a fazer shows

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Alfredo José da Silva completará 80 anos em maio. Mora há um ano num “hotel-residência para idosos”, em avenida movimentada de um bairro industrial de Santo André, no Grande ABC paulista. Não possui uma aposentadoria oficial, apesar de trabalhar num mesmo ofício desde o início da juventude. Perdeu o pai cabo do Exército aos três anos e a mãe empregada doméstica quando jovem, não teve herdeiros e não lhe restaram parentes vivos.

Embora o câncer na próstata e outros problemas de saúde lhe tenham roubado o equilíbrio para caminhar com segurança, este Silva estará no centro do palco e das atenções numa homenagem a seus 80 anos, nos próximos dias 23 e 24 de maio, no Sesc Pinheiros de São Paulo. Alfredo José é Johnny Alf, desbravador de florestas até a clareira que viria a ser chamada bossa nova e músico sutil e virtuoso reconhecido bem além das fronteiras brasileiras.

O governo estadual ajudou nas despesas com os tratamentos, mas a clínica ele paga de bolso próprio, com reservas e recursos de direitos autorais. Quem conta é Nelson Valencia, empresário transformado num tutor e/ou anjo da guarda do autor de Eu e a Brisa (1967), canção desclassificada no festival que consagrou Ponteio, Roda Viva e a Tropicália.

Para Valencia, o recolhimento é característica inerente do artista, e não circunstância da idade avançada. “Johnny é o pior inimigo dele mesmo. Sempre se coloca numa posição abaixo dos fatos”, diz. “Uma vez estava me falando que era feliz, e dizia: ‘Eu consegui muita coisa, tenho fogão, geladeira’.”

Encontro Johnny Alf em seu quarto, às voltas com a tela da tevê e a leitura de uma revista. Conversa em frases e respostas curtas (o que não chega a ser novidade), e fala dos shows que marcaram sua volta no fim de janeiro, no Sesc Vila Mariana: “Eu estava gripado, uma semana antes não dava uma palavra”. Ansioso com o retorno, talvez? “Não era ansiedade, não, era gripe mesmo. A clínica toda pegou.”

Atravessou o show sentado ao piano, seu instrumento preferido desde quando, aos nove anos, pôde aprender a tocá-lo na casa da família que empregava sua mãe e de quebra lhe deu guarida. Sua história, aqui, diverge da de outro quase-bossa-novista, Wilson Simonal (1939-2000), cuja mãe doméstica era proibida de levar o filho ao emprego e atirava marmitas clandestinas por cima do muro para alimentá-lo.

Nos shows da volta, Johnny apoiou-se nas vozes das cantoras Leny Andrade e Alaíde Costa. Juntos no palco, os três evocavam um outro lado da bossa nova, uma bossa negra refugiada em São Paulo (e no exterior, no caso de Leny) e bastante distante do imaginário de amor, sorriso e flor fixado a partir de 1958 pelo núcleo carioca.

“É coincidência”, esguia-se, monossilábico, de abordar um possível componente racial no relativo isolamento de sua turma. Mas Valencia, também empresário de Alaíde Costa, vê sentido na a hipótese: “A classe social certamente tem a ver. A Bossa era um movimento de brancos da zona sul, e ser negro era ser negro. Alaíde sempre falou que muitos torciam o nariz para ela porque não cantava samba”.

Johnny estreara profissionalmente em 1952, desde cedo absorto numa atmosfera de canções contemplativas e ligadas à natureza. Tais motivos seriam caros aos filhotes bossa-novistas, mas esses converteriam a contemplação no entusiasmo sorridente de barquinhos e tardinhas, divergente dos estados de espírito do precursor. Minha vida é uma ilha bem distante/ flutuando no oceano, cantava em Céu e Mar (1953), uma de suas primeiras composições. De fato, o carioca Alf migrara para São Paulo quando a garota e os garotos de Ipanema arrendaram novos paradigmas musicais.

Ele escorrega entre os rótulos habituais à sua arte, primeiro como jazz, e como Bossa depois da Bossa. “Saiu assim, eu nem esperava que fosse agradar. Achava que minha voz não tinha alcance nenhum.” Aceita, quanto muito, o carimbo de fazedor de sambas, a despeito do andamento quase sempre desacelerado de suas canções: “Era muito ligado em música americana, sentia que tinha uma leveza que o samba podia ter também”.

Valencia traduz na prática as hesitações de Johnny em relação a si mesmo: “É de uma humildade tão grande que deixa as oportunidades passarem. Quando tinha uns 40 anos, Sarah Vaughan esteve com ele, e tem uma história de que ela queria levá-lo para fora. Não capitalizava nada. Descobri há alguns anos que Tom Jobim o chamava de ‘Genialf’, ele nunca falou disso”.

Outra dessas histórias se refere à mulata Dolores Duran (1930-1959), amiga íntima e expoente da fossa antecessora da bossa. Dolores acabava seus shows e seguia para a boate onde o amigo estivesse trabalhando. Invariavelmente, pedia que cantasse Céu de Estrelas, definida por ela como “a minha música”. Com a morte de Dolores, não gravou a canção, guardou na gaveta e a escondeu até poucos anos atrás.

Além do tom contemplativo, também o platonismo ocupa lugar crucial em várias de suas canções. Amor discreto pra uma só pessoa/ pois nem de leve sabes que eu te quero é o amor em outra de suas obras-primas, Ilusão à Toa (1961), explicitada há dois anos por Caetano Veloso, num show, como uma canção gay.

O protagonista da inaugural Rapaz de Bem (1953), que acha o trabalho “a pior moral” e obtém dinheiro “só de arrumação”, foi interpretado como prostituto pelo antropólogo Néstor Perlongher, em O Negócio do Michê. “Procurei o livro para ler. Realmente se encaixa, para os dias de hoje”, afirma, sem buscar orientar interpretações. E o autor, era “rapaz de bem”? “Não, nunca fui. Eu era um rapaz pobre.”

Também platônica é Fim-de-Semana em Eldorado, gravada em 1961, no primeiro álbum de uma carreira discográfica sucinta, em termos numéricos: uma lagoa de água doce foi a única que trouxe eu e você junto à verdade/ tudo eu vou deixar calado/ embora aguarde ansioso/ outro domingo em Eldorado. “Eldorado é uma cidade, um recanto no interior de São Paulo. Quem me levou lá foi Dick Farney”, lembra.

Fã das vozes macias de Dick e Lúcio Alves, Johnny desta vez não cita a influência sempre creditada de Cole Porter, e vai mais atrás (e mais perto) ao listar preferências: “Gosto de música brasileira. Francisco Alves, Orlando Silva, Ary Barroso, Caymmi, Custódio Mesquita. O rádio é o que melhor repertório tem, não é Bossa Nova nem coisa nenhuma”.

Declara-se admirador de Milton Nascimento (dele, gravou Outros Povos, em 1974), mas não o poupa de crítica por conta de um episódio com outra artista de quem se diz fã incondicional: “Não foi a Wanderléa, Nelson, que foi pedir uma música ao Milton e ele falou para ela voltar para a jovem guarda? Foi. Foi bem cruel isso, uma falta de educação muito grande”.

Nos shows do início do ano, foi ovacionado por uma plateia reverente e compreensiva com as limitações atuais. Afora esses momentos, passa os dias quieto no quarto modesto do hotel-residência, de onde só sai para fazer fisioterapia. Queixa-se com certo humor das perguntas repetitivas dos poucos jornalistas e estudantes que conseguem chegar até ele. Luta contra a depressão profunda que se seguiu à convalescença física do ano passado. Não tem composto “agora”, e afirma só ouvir música “por acaso”, na tevê. Mas participa do coral da clínica. Abaixa a cabeça e faz cara de dor quando o empresário o flagra numa gargalhada junto à enfermeira.

Perto de sua nona década, Alfredo José da Silva vive de brisa, a mesma brisa que acariciou, acaricia e acariciará os afro-sambas-canções de Johnny Alf.

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