odisséia dolorosa é assistir a dois dos filmes oscareiros da safra mais recente, “dúvida”, de john patrick shanley, e “o leitor”, de stephen daldry.

ambos são pesados, orientados por temas dos quais é fácil e cômodo fugir, bem penosos de encarar e digerir – pedofilia, abuso sexual, abuso emocional, intolerância religiosa, abuso religioso, violência física, violência emocional, nazismo, holocausto, antissemitismo, miséria física e psicológica…

ambos parecem meio gêmeos, não só por cruzarem esses assuntos que se repetem, mas também por outra característica. nenhum dos dois faz da certeza seu alicerce. ambos são pautados pela dúvida, integralmente pautados pela dúvida.

é a partir daí que começam a ser interessantes. fazem da dúvida seus troféus, lá dentro de uma hollywood que não raro faz das (falsas) certezas seus trunfos mais fortes.

por mais doloridos que sejam os dois filmes (e por mais que possam ser formalmente chatinhos e convencionais), minha sensação ao sair exausto de ambos é bem mais de deitar num oásis que numa câmara de torturas. lidar com uma pilha de dúvidas num macroambiente ainda tão povoado de certezas reconforta como a mordida faminta numa maçã gelada e crocante, num dia de calor.

quem é mais escroto em “dúvida”, o padre ou a freira? quem é mais frio e insensível em “o leitor”, a nazista pobre ou a judia rica? quem é o mais assassino (simbólico ou de fato), entre esses todos? nem adianta esperar respostas prontas para tais perguntas. o espectador terá de mastigar, ruminar, se colocar no lugar de cada um dos polos em conflito – ficar do lado de fora dos filmes, na velha posição de voyeur crítico a tudo e a todos (menos a si mesmo), será tão inútil quanto impraticável.

não é de hoje que essa nova tradição da dúvida se arma lá no país mais quebrado do planeta – penso em “as horas” (do mesmo daldry de “o leitor”), “monster”, “terra fria”, “o segredo de brokeback mountain”, “não estou lá”, “na natureza selvagem”, “ensaio sobre a cegueira”, “juno”, “o curioso caso de benjamin button”…

são, todos, filmes sobre temas espinhosos, tratados com enorme densidade psicológica (para quem gosta de enveredar pelos labirintos de dentro, é um banquete – eu amo). para minha alegria, não são poucos os indícios de que nesse tipo de trabalho é que está escondido o futuro.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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