a cultura das ruas, vol. 1

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seguindo a rota daquelas histórias de semanas atrás sobre indústria das (ou nas) ruas, falemos então sobre cultura nas (ou das) ruas… texto extraído da “carta capital” 445, de 23 de maio de 2007.

(peço sua atenção, lá pelo meio, ao conceito de “espírito da dádiva” – cê já ouviu falar?, cê pratica?)

A TORTO E A DIREITO

A defesa da propriedade intelectual é ameaçada pela livre circulação de imagens e sons na internet

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Uma pergunta assombra os bastidores da indústria cultural: os avanços tecnológicos, disseminados especialmente pela rede mundial de computadores, terminarão por decretar a morte dos direitos autorais?

Não é um assunto que paute, por exemplo, a festa de quarta-feira 17, em comemoração aos 25 anos da maior sociedade arrecadadora do País, a Abramus (Associação Brasileira de Música e Artes). A entidade detém hoje 34% da distribuição nacional de direitos autorais de compositores, intérpretes, músicos, produtores fonográficos, dramaturgos, artistas plásticos, fotógrafos. No aniversário, só se celebra a proteção do patrimônio artístico, inclusive no show-apoteose dos irmãos Caymmi, com repertório centrado na obra do patriarca Dorival, filiado à Abramus. No entanto, o mundo novo propiciado pela Internet está no ar, à espreita.

Contra ele se rebela Glória Braga, superintendente do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), que no Brasil centraliza e coordena a ação da Abramus e de outras 11 associações arrecadadoras. “Não sei se esse mundo novo ou pseudonovo ameaça o direito autoral. É um modelo que se propõe, mas não se prova ainda. O que fez o cara do YouTube? Pegou um monte de conteúdo de graça, vendeu e ficou com o dinheiro para ele. É uma coisa fundada no desprestígio do conteúdo da criação”.

No YouTube, recentemente vendido para o Google por 1,65 bilhão de dólares, os próprios consumidores disseminam livremente imagens e sons. O arco de vídeos acumulados abrange de produções caseiras até o acervo de imagens da Rede Globo, sem que por enquanto ninguém seja remunerado por isso.

“Nos anos 30, houve uma crise importante e parecida com esta de agora, embora de dimensões menores. Foi quando as rádios começaram a proliferar e surgiu o mote de que o direito autoral havia acabado”, afirma no salão do evento um dos advogados autoralistas mais atuantes do Brasil, José Carlos Costa Netto. “Não acredito que o direito autoral vá morrer. Mas há, nitidamente, a necessidade de uma reorganização.”

O exemplo do YouTube é só um dos muitos que se desenvolvem, ignorando o pagamento de direitos a quem cria obras autorais. É numerosa a série de ferramentas que permitem que arquivos de música, imagem e texto sejam compartilhados consumidor por consumidor, sem a intermediação de gravadoras, editoras, distribuidoras de filmes e assim por diante.

De lá para cá, uma geração de novos criadores que não conseguem (ou não desejam) se vincular aos intermediadores tradicionais tem passado a trabalhar num novo sistema, denominado Creative Commons. Eles abdicam de todos ou de alguns direitos autorais e permitem, por exemplo, que as obras que criam sejam distribuídas espontaneamente pela Internet. O fundamento é compartilhar, e não trocar produção intelectual por dinheiro.

O músico Lucas Santtana é um dos que vivem na pele a transição entre modelos. Começou publicando disco por um selo distribuído pela poderosa BMG, mas hoje usa como plataforma de lançamento o site Diginóis, onde distribui downloads gratuitos e desprotegidos pelos direitos tradicionais. “Minha realidade econômica tem melhorado lentamente, pois agora detenho praticamente 100% do que faço”, diz (pelos contratos habituais, autores costumam receber de editoras e gravadoras 10% do preço de venda nas lojas).

“Em um ano no Diginóis, foram mais de 10 mil downloads, e o resultado foi que duas mil cópias do CD esgotaram em sete meses, algo que nunca havia acontecido comigo”, conta. O rapper BNegão dá testemunho parecido: “Um mês depois de meu disco sair, já estava na Internet, e eu sempre incentivei as pessoas a baixarem. Comecei a usar computador por causa disso. Resultado: fiz sete turnês na Europa em três anos, tudo graças a essa parada”.

“Creative Commons é uma reinvenção da roda. Falam como uma coisa socializante, mas o que querem é usar sem nada pagar. A liberdade do autor de usar a obra como quiser existe, está consagrada na Constituição”, reage aos novos modelos o presidente da Abramus, Roberto Corrêa de Mello. “A lei foi aprovada há sete anos, após dez de discussão, fui um dos formuladores. É nova, uma das mais modernas do mundo, não precisa ser modificada.”

Não há consenso, nem mesmo no ambiente da administração de direitos. Uma proposta de mudança da lei do direito autoral vem sendo debatida, em temperaturas elevadas, por iniciativa da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), que se ocupa de proteger a produção autoral, industrial e tecnológica.

“O capítulo da lei que determina em que situações o uso das obras seria livre é muito defasado, e é o mais sensível, porque há interesses corporativistas de setores da indústria cultural em jogo”, afirma o coordenador da comissão de direito autoral da ABPI, Guilherme Carboni. “Nossa proposta é abrir essas limitações em determinadas hipóteses, como de educação e pesquisa, de modo a permitir a reprodução integral de uma obra, desde que não cause impacto econômico para o autor.” Caso efetivada, a mudança afetaria positivamente jovens que fazem download de música para consumo caseiro ou universitários que xerocam textos com fins educativos, por exemplo.

Carboni resume as distorções: “O direito autoral foi concebido para proteger os criadores, as pessoas físicas, mas a gente sabe que hoje ele protege a indústria cultural”. Ou seja, do lado dos críticos ao atual estado de coisas o argumento também é de que o modelo antigo desprestigia o conteúdo, e os criadores.

É crescente a pressão dos novos agentes, que se apóiam nos conceitos dos “commons” (ou seja, um espaço cultural de uso comunitário e livre) e do chamado “espírito da dádiva”, que propõe algum grau de substituição da cultura de competição do capitalismo por um espírito de compartilhamento.

São os argumentos centrais do livro coletivo Comunicação Digital e a Construção dos Commons, lançado pela Fundação Perseu Abramo em regime de Creative Commons. O trabalho aborda criticamente o direito autoral e, mais ainda, o modo como é gerenciado hoje o espectro radioelétrico, através do qual são transmitidos sinais de rádio e tevê. É outro setor que enfrenta a revolução do advento da convergência digital.

“Quando o Titanic naufragou (em 1912), foi dito que ocorreram interferências nas transmissões entre o navio e o ponto mais próximo, que não permitiram a comunicação. Esse foi um dos argumentos usados para que o espectro fosse entregue a operadoras concessionárias, um tipo de privatização”, afirma um dos autores, o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, ex-presidente do Instituto Nacional de de Tecnologia da Informação (ITI), da Casa Civil.

“A escassez do espectro é um fenômeno analógico, de uma época. Podemos querer ficar nela, mas precisamos saber que estamos em outra época. O que nosso livro defende é que com o uso digital todos poderão ocupar aquelas freqüências, seguindo regras básicas, tal como motoristas seguem regras para trafegar nas vias públicas”, diz.

Ele fala sobre a questão do direito autoral: “Não dá para confundir autoria com propriedade. Não tem sentido bloquear meu texto e dizer que é minha propriedade. Não, usei conhecimentos de outros para fazê-lo. Não é como uma mesa ou cadeira, em que para lhe dar um pedaço eu fico sem aquele pedaço. No mundo das redes, quanto mais eu compartilho conhecimento, mais rapidamente ele aumenta”. Como os autores sobreviveriam, num sistema de compartilhamento total, é questão que permanece em aberto.

“Com a Internet, a informação se revelou o que ela sempre foi: uma não-mercadoria. Sobrou à indústria o papel da repressão, ideológica, jurídica e tecnológica”, resume outro dos autores, o jornalista Gustavo Gindre, membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), criado pelo governo federal em 1995.

Mas a lógica da mercadoria não acabará por englobar os novos meios? “O capitalismo transformou terra em propriedade, trabalho em propriedade. Se continuar assim, a tendência é de privatização do cyber-espaço, e aí já temos o Second Life com loja de marca, desfile de moda… Mas tendo a acreditar que estamos no limiar de uma nova fase”, aposta Gindre.

Dentro da indústria, por ora, a tensão explode em casos como o da proibição da biografia Roberto Carlos em Detalhes.. O Cantor conseguiu sustar na Justiça a comercialização da obra, mas poucos dias depois cópias virtuais do livro começaram a se espalhar livremente pela Internet.

O autor, Paulo César de Araújo, fala das perdas e ganhos de ter o trabalho ausente das lojas, mas presente na rede: “Ganho evidentemente muitos mais leitores. Mas talvez perca em apoio e indignação de pessoas que poderiam reclamar da falta de acesso ao livro”.

Nos meios literários, há casos como o da editora Hedra, que coloca na rede versões virtuais integrais de obras que caíram em domínio público, de nomes como Fernando Pessoa, José de Alencar e Oscar Wilde. “A versão é gratuita para visualização, mas não pode ser impressa. É um ato simpático, gera venda em vez de inibir”, aposta André Fernandes, da Hedra.

O tema do domínio público é outro nó da legislação, que prevê, no mundo todo, a garantia de direitos até no mínimo 50 anos após a morte do autor. “É inegável que existe um bloqueio do acesso à cultura por essas corporações tipo Disney”, afirma o advogado Costa Netto. Nos EUA, a proteção do personagem Mickey, de Walt Disney, foi estendida até 2018, ou seja, por 90 anos.

“Qual é o sentido de proteger idéias por 50 anos além da morte do autor? Incentivar a criatividade? De quem, do artista que já morreu?”, pergunta Sérgio Amadeu. “Não, é para que as empresas, intermediárias da criação, continuem ganhando, lucrando e controlando a disseminação cultural.”

Pensamento contrastante é expresso na festa da Abramus por Walter Franco, compositor rebelde revelado nos anos 70 e hoje vice-presidente da associação: “Luto por direitos que também são meus. Minha obra é o patrimônio que tenho a deixar para meu filho”.

Entre artistas atuantes na indústria musical, as posições oscilam entre a despreocupação e a flexibilidade. O músico Nando Reis, ex-integrante da banda Titãs, fala sobre o impacto das novas tecnologias: “Para mim, é pequeno, muito pequeno. A venda de CDs de fato encolheu, hoje o grosso do meu trabalho e da minha receita é rádio e show. Minha arrecadação não diminuiu. Mas também não aumentou”.

O roqueiro Chorão, líder da popular banda Charlie Brown Jr., também fala do assunto no aniversário da Abramus: “A mim a pirataria não prejudicou, porque ela divulga nosso trabalho junto a quem não tem poder aquisitivo. Se não paga direito autoral, é outra questão, mas acho legal a galera baixar música no meu site. A gente tem que se adaptar às mudanças de linguagem”.

Longe da festa, por e-mail, Lucas Santtana desenvolve uma reflexão sobre a atual transição: “O modelo antigo era apenas para alguns e fundado em personas públicas, o que agora virou esse vírus chamado celebridade. Ficar famoso e rico era uma distorção”.

“Se a Globo quiser tocar minha música quero ganhar, mas, se um garoto quiser baixar numa lan house em Macapá, não quero. É simples. A licença Creative Commons e os direitos autorais são compatíveis”, conclui, em posição que recusa tanto a defesa intransigente dos direitos aos moldes forjados pela indústria quanto a proposição radical de que eles estariam no rumo da extinção. Falta a discussão chegar de modo transparente à sociedade.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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