sim ao não? (ou você adora um “se…”?)

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desde ontem, a mídia foi ficando apinhada de artigos e articulistas contrariados com a derrota do “sim” no referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo. alguns deles guardam argumentos bastante bons, mas chama atenção especial um tom irritadiço em comum entre a maioria deles. com freqüência perturbadora, a irritação malcontida leva articulistas pelo percurso tortuoso de formulações que conhecemos desde a outra encarnação, de que o povo não sabe votar, a democracia representativa não nos serve, perdemos uma oportunidade histórica de nos desarmar (se bobear, tem gente praguejando isso agora, depois de passar o período “eleitoral” inteiro reclamando que o referendo era inútil, feio, burro e besta), de que o medo venceu a mudança (hum, discurso requentado esse, hein?), de que o povo “urrou” nas urnas feito besta-fera.

por falar em “povo”, o fenômeno é parecido nas seções de cartas dos leitores. se antes os leitores dos jornalões mais “críticos” já se manifestavam em peso e agressividade pelo “não”, agora invadem os painéis de leitores tiradas inspiradas, quase geniais, sobre a miséria de termos escolhido o “não”. “armai-vos uns aos outros”, parodia um, elevando num tom a habitual morbidez bíblica católica.

cego no meio do tiroteio persistente, fico tentando não estar triste com mais uma “derrota” democrática da opção que fiz (já são tantas em 37 anos de vida, nossa senhora). e, de quebra, implico com esse tom de superioridade com que os articulistas (& seus espelhos leitores) interpretam a “derrota”, me debato contra a dificuldade de cada articulista do “sim” em encarar de frente sua própria “derrota”. ora, será que em nenhum momento os perdedores toparemos parar assimilar e consolidar a decisão que prevaleceu, para tentar dialogar com o resultado que venceu e, portanto, com a maioria dos eleitores que decidiu o que decidiu?

num momento doído de irritação, os articulistas do “sim” sairemos do seio da sociedade em que vivemos, rumo a um brasil-bolha que flutua no universo paralelo e que não integra de fato e direito a sociedade toda que determinou que “não”?

pois eis aí a perpetuação do que nós mesmos, os “perdedores”, mais criticamos. uma das nossas maiores mazelas, acredito, é a persistência dessa comunicação interrompida, desse convívio de desavenças e desarmonia, desse má compreensão mútua entre os que analisam a realidade e os que produzem a realidade que os cronistas analisarão. a profecia coletiva de auto-enganos (alô, luiz eduardo soares) se perpetua: o povo vota “não” para que nada mude e para que os analistas possam continuar compondo as antigas cantigas de maldizer contra a realidade que nunca muda; a população votante majoritária é tratada como incapaz-impotente-estúpida pelos cronistas de pretensas contracorrentes, para se ressentir e devotar rancor aos que se julgam superiores em suas proposições minoritárias, para na próxima decisão rejeitar novamente os ditames das supostas contracorrentes. cada parte atribuirá à outra as “culpas” da frustração e dos desgostos promovidos pela realidade escolhida, sinais trocados que se neutralizam e auto-anulam reciprocamente, noves fora, nada.

essa estrutura de círculo vicioso alimentado nas duas pontas sempre passa batida, mas parece ficar mais evidente desta vez, quando não se está falando de partido político e, por isso, cada analista pode, sorrateiramente, disfarçar menos a opção que fez (que bom!) e, em seguida, a contrariedade com a própria “derrota”. é como se haver optado e manifestado opinião fosse retribuído com punição e castigo, associação de idéias que é por si só outro equívoco dramático e pernicioso, compartilhado irmanamente (mas cegamente) pelas rés do chão e pelos barões da torre.

o sim É o não?

ora, pergunto, mesmo pactuando de diversas das opiniões sobre o significado da “vitória” do “não”: será que já não chega de subestimar a maioria dos brasileiros, de tratar como bestas energúmenas as feras domadas que carregam nas costas nossa infra-estrutura? mesmo supondo que fosse plausível a formulação (jurássica e ignorante, na minha opinião) da idéia da massa predominante dos brasileiros como cavalgaduras imprestáveis, de onde parte a idéia torta de que alguém é menos “imbecil” porque votou “sim” e foi “derrotado” em sua tão “nobre” convicção? por que esse almofadinha intelectual genérico [eu mesmo?] que votou “sim” e agora acha que está banhado num oceano de idiotas [eu, não!] não reuniu antes esforços suficientes para forçar limites e fazer prevalecerem seus argumentos “progressistas”? por que não lutou por eles de forma efetiva, objetiva, militante? por que não conquistou a “vitória” contra os argumentos toscos, alarmistas e obscurantistas que se alastravam feito rastilho de pólvora?

por que esse cara hoje banhado no rancor da “derrota” tarja de toscos os que elegeram o outro lado do muro, se ele próprio foi tão tosco a ponto de não fazer soarem convincentes seus argumentos e se continua sendo tão tosco em rotular de toscos os cidadãos que escolheram a opção mais tosca (sim, estou entre os que acham que a posição mais tosca foi a que “venceu”)? por que a cegueira do olhar ao outro ameaça sair vencedora paralela do referendo, de todos os referendos?

mais que patinar no pantanal dos irritadiços, dos candidatos a “donos da verdade” e dos carcereiros da atraente e sedutora teoria da imbecilidade nacional, que tal os “perdedores” (entre os quais também se alistam milhões de votantes do “não”, fosse qual fosse a opção “triunfante”) nos leantarmos para tentar sondar de modo menos superficial e mais reflexivo-analítico dilemas profundos como a) por que os que se julgam mais progressistas e libertários não conseguem espraiar seus saberes por camadas mais amplas e democráticas da população?; b) que conjunto complexo de estados de espírito leva a uma decisão tão potente pelo “não”, para lá de fórmulas esquemáticas (toscas) de cartola do tipo “foi um não a lula”, “foi um não à classe política”, “foi um sim à violência”?; c) que movimentos reflexos de maturidade são possíveis agora, para que se neutralize o impacto negativo do “não” e se impeça, nem que seja pelo susto, uma escalada de violência potencialmente identificável à decisão pela veia bélica e armamentista?; d) o referendo abre cortinas para conjeturas de cada um de nós sobre a morte, o ato de matar, o não-ato de ser morto, o não-ato de matar, o ato de ser morto, a violência potencial inerente em cada pessoa, o pacifismo constitutivo de cada pessoa?; e) ………….

o não É o sim?

o brasil teria dito “não” a si mesmo (mais uma vez, ó, maldita novidade…), incluídos nesse caldeirão os brasileiros que dissemos “sim”? ou mesmo uma tentativa de resposta-pergunta como essa é frívola demais para dar conta de uma proposição bem mais complexa e contraditória do que parecia de início? em outras palavras-perguntas, resultados à parte, não resultamos enobrecidos dessa beliscada no desejo de reletir mais, debater mais, reivindicar mais, esperar mais, oferecer mais, desejar mais, agir mais no intuito de conquistar o desejado?

não? ou sim?

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