vai parecer que não, mas estarei falando sobre a crise que nos assola.

hoje me arrepiam as soluções que passam pela fresta, as possibilidades de encontrar interruptores ligados e saber que a atração pela falência não é o único motor que nos alimenta e consome nosso combustível vital.

fico arrepiado em saber que várias das coisas em que mais tenho acreditado já estavam escritas, algumas delas pelo punho de gestores públicos, esses mesmos homens que hoje nos dedicamos 24 horas por dia a achincalhar (é um modo de acreditar que estamos nos poupando do auto-achincalhe, pois não?).

vai aí mais um trechão de duas páginas e meia de “meu casaco de general”, desta vez copiadas sem brinquedos de recortar-e-colar. a retórica é cristalina, e naquela experiência se tornava prática depois de vir sendo teórica por já muito tempo. documenta o saber aplicado à prática além do falatório estéril, coisa que tão raramente nos preocupamos em fazer.

mas olha só que coisa de doido, que coisa mais linda, mais cheia de graça, que bossa nova, que jovem (van)guarda. luiz eduardo soares explica que, enquanto subsecretário de segurança do rio de janeiro, procurou tratar como duas faces inseparáveis de uma mesma moeda a campanha do desarmamento e… campanhas contra a homofobia.

será que a gente consegue vislumbrar a relação, e ver que marchar pelo desarmamento é igual a marchar pela diversidade e pela liberdade sexual?

[atenção: o referendo sobre o desarmamento vem aí. o direito de escolher e decidir pelo desarmamento da população braileira não há de nos ser subtraído pelo vendaval político que hoje mora dentro da nossa pequena delegacia moral-mental. e aí, vamos utilizar a crise para nos desarmar? topas o convite?]

pois é, passeata pela paz e passeata gay são a mesmíssimaa coisa. aliás, é preciso parar com o discurso tropical-fascista que desqualifica e ridiculariza o aliado mais poderoso que possuímos para sair de todas as crises: o respeito rigoroso pelas atitudes politicamente corretas.

nenhum pefelista neo-indignado nem nenhum tucano neomoralista vai fazer plástica na ética nacional se não tomar como palavra de ordem o triunfo do politicamente correto, seja na política, na delegacia, no fluxo de caixa, no asfalto, no dia-a-dia, na tão ridicularizada cartilha do nilmário miranda.

reconectando com os dias de agora, quero, antes que luiz eduardo soares comece a falar, chamar a atenção para a profunda ligação de tudo que ele dizia em 2000 com o que eu chamaria hoje de “efeito roberto jefferson”, essa arma letal que hoje equipa e dá munição a dez entre dez pessoas que se odeiam a si próprias.

porque roberto jefferson, coitado(s de nós), reúne o pior desses dois mundos que luiz eduardo soares gostaria de paralisar, minar e demolir (mas não consegue, por falta de apoio político do pp, do pl, do pfl, do psdb, do pdt, do pt, do psol, do pstu, do seu zé da padaria da esquina).

do lado a da moeda que é uma pataca furada, bobjeff pertence à bancada do tiro, pratica tiro ao alvo, é financiado pela fabricante de revólveres taurus, é contra o desarmamento da população brasileira.

do lado b da moeda que é um disco furado, robferson é um machão decadente típico, daqueles de mal dissimulam por trás da própria truculência os instintos primitivos que o põem fora de si diante do ex-galã josé dirceu (esse próprio uma caricatura mais branda do machão decadente sem nenhum escrúpulo ou sentimento).

lado a mais lado b, rojefberfertoson pôs bolerão no melodrama brasileiro, consumou-nos não como tragédia shakespeariana, mas como dramalhão de fotonovela.

lado cara mais lado coroa, robejefo ocupou um espaço inteligentemente deixado vago pela pacificação de homens como mv bill: fez-se homem-bomba, guardou o fuzil de seu próprio ódio em casa e saiu à luta armada portando na língua a metralhadora giratória das palavras, arma mortífera para mel gibson nenhum botar reparo. bush e bin laden coraram de vergonha, o oeste longínquo passou a ser aqui mesmo.

foi a “macheza” desse homem, que anda forrado da capa protetora blindada do ódio interno guardado, que encantou e seduziu, nesta (in)exata seqüência, o governo petista do brasil e a mídia antipetista do antibrasil. foi a esse homem que primeiro o governo e depois a mídia confiaram os seus destinos, os nossos destinos.

nos socorra, dr. soares:

“é claro que havia muito mais, naquela nossa preocupação com a homofobia. sabíamos que os símbolos do poder são muito sexualizados, sobretudo nas polícias e particularmente entre os militares. acreditávamos também que nosso problema mais grave – o tráfico armado de drogas nas favelas – tinha mais relação com a escassez de recursos simbólicos para a construção positiva das identidades dos meninos do que com a escassez de recursos materiais para sua sobrevivência física. ou seja, a fome que leva ao crime é a fome de ser alguém visto, reconhecido e respeitado, e não a fome propriamente dita. em outras palavras, mais grave que a miséria é a exclusão social. a fome física pode conduzir ao desespero e até a atos extremos, mas dificilmente leva uma pessoa à imersão no mundo do crime (quando este não se apresenta como um modo alternativo de vida, mas um modo de lançar-se à morte precoce e violenta), a não ser com a mediação da revolta, que, associada à falta de perspectivas de identificação positiva, transforma-se em ódio duplo, contra si próprio (vazio de valor) e contra o mundo (no qual não há espaço para uma integração que valorize positivamente o portador do ódio).

“o tráfico seduz a garotada oferecendo-lhe recursos simbólicos compensatórios de sua invisibilidade social. o principal deles é a arma. quando um menino pobre e negro passa por nós, nas calçadas, nem sequer o notamos. se nos pede ajuda, muitas vezes recebe expressões de enfado, indiferença ou até repugnância. sua experiência pública mais marcante é a da invisibilidade. é como se ele não tivesse corpo, presença, opacidade social, é como se não tivesse valor e não ocupasse lugar no espaço. nossa indiferença e nosso gesto de desconforto, ou mesmo de nojo, é carregado de sentido e transmite ao menino a mensagem mais violenta que lhe poderia ser enviada: ele não é nada, não vale nada, não merece ocupar um minuto da atenção e da preocupação das pessoas que passam, cada qual fixada em sua própria vida e seus interesses. o menino e a menina pobres que vagam nas ruas, em busca de algo que nem eles sabem muito bem o que seja (talvez porque nunca tenham tido), morrem todo dia um pouco, vítimas dos pequenos assassinatos simbólicos cotidianos de que somos cúmplices. todos nós, afinal, temos mais o que fazer, pensamos. para isso pagamos impostos. para resolver esses problemas é que existem os governos. onde estão os governos? nós temos mais o que fazer. a garotada pobre, muitas vezes sem apoio familiar forte e permanente e quase sempre desprovida do sentimento de pertencimento a uma sociedade que lhe dá lugar, reconhecimento, afeto, perspectivas de futuro e sonhos nos quais possa engatar seus desejos e seu imaginário, colherá nas ruas sua ração diária de invisibilidade. sobre que base erguer a auto-estima, então?

“a solução que improvisam, mais os meninos do que as meninas, é a construção pelo avesso de si próprios, apoiando a auto-estima, o sentimento positivo do próprio valor, no reconhecimento negativo que obtêm dos outros quando lhes provocam medo. é só pelo medo que essa garotada perdida, sem rumo e sem esperança, anulada pela indiferença generalizada, consegue a migalha reconfortante de nossa atenção. através da imposição do medo, os meninos tornam-se visíveis, ganham corpo e opacidade social, ou, como talvez dissessem os filósofos, ‘densidade ontológica’. os mais perversamente afortunados ganham nome e chegam a conquistar notoriedade, que será, entretanto, tão fugaz quanto suas vidas de glórias degeneradas. lançam-se à morte para alcançar pelo mal o que o bem lhes negou: um fiapo de humanidade. a arma será o principal instrumento dessa construção invertida de si; será a carteira de identidade na qual os rejeitados e excluídos encontrarão a única descrição verossímil de si próprios. a arma será o espelho possível.

“nós procuramos agir contra a arma, não só na esfera da prática policial, estimulando a apreensão do armamento dos criminosos (que atingiu números recordes em 1999), mas também na esfera legal e, sobretudo, na esfera do imaginário coletivo, sabotando sua valorização simbólica. a campanha pelo desarmamento e a campanha contra a homofobia, dentro e fora das polícias, representavam para nós, portanto, duas faces da mesma moeda. explico: na medida em que tornávamos pública a preparação dos policiais para o respeito aos homossexuais e às minorias sexuais, estávamos desestabilizando alguns vínculos simbólicos estratégicos – mais especificamente, a estrutura associativa inconsciente que organiza a imagem das polícias, sobretudo da polícia militar: arma-virilidade-poder fálico-exclusão das diferenças como condição da masculinidade. por outro lado, com a crítica moral e simbólica da arma que a campanha pelo desarmamento encetou, procuramos devolver a arma a seu lugar puramente instrumental, a serviço de funções profissionais muito específicas e sempre associada a valores negativos quando extraída do contexto profissional (mesmo aí, era ligada a circunstâncias defensivas, da lei e da vida). o núcleo simbólico falocêntrico perdia seus elos estreitos com a violência, elos articulados pela força expressiva das armas, e se abria para conexões positivas alternativas, com outros valores, entre os quais a paz e a liberdade para a diferença. diferença acolhida pelo poder – legitimada, portanto -, que se podia vivenciar, então, como forma de poder ou instrumento de autoconstrução positiva. novos jogos, novas linguagens podiam circular, nas mais diversas áreas da sociedade. estávamos mexendo em ideologias plantadas fundo no inconsciente e lançávamos pontes de comunicação com aqueles que permaneciam invisíveis socialmente.”

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