iê-iê-iê dos anos 2000

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momento maçã do amor & algodão doce (alô, china!) na “carta capital”, edição 336, 6 de abril de 2005. arranque o freio e pé na tábua, brotinho!

IÊ-IÊ-IÊ DOS ANOS 2000
Roberto Carlos e Jorge Ben motivam onda de releituras roqueiras por bandas em busca de comunicação com o público, como Lafayette e Os Tremendões

Por Pedro Alexandre Sanches

O baile está animado: jovens moderninhos dançam o rock, o twist e o iê-iê-iê, entre uma e outra pausa para o tradicional momento romântico, daqueles de fazer casais se juntarem para dançar de rostos colados. “Abram os braços para um novo amor”, comanda o crooner do conjunto, prontamente atendido na platéia pelos fãs mais afoitos. Mas, não, não estamos nos anos 60 nem num filme da Sessão da Tarde, e sim numa noite enluarada de 2005.

O crooner, que já foi líder juvenil da banda de rock hardcore Sheik Tosado, é pernambucano, chama-se China e nessa noite do festival Vivo Open Air pilota a banda Del Rey, que se dedica de corpo e alma a perverter o repertório mais antigo de, você conhece, Roberto Carlos.

Antes, já passara pelo mesmo palco o grupo carioca Lafayette e Os Tremendões, dono da proeza de agrupar num mesmo projeto o sessentão Lafayette, organista dos discos dos anos 60 de Roberto, e um punhado de jovens egressos de bandas roqueiras como Acabou la Tequila, Autoramas, Nervoso e Canastra. Nesse caso, o repertório passa do “rei do iê-iê-iê” e se estende a seus parceiros de Jovem Guarda Erasmo Carlos e Wanderléa, a Leno & Lilian, a Renato e seus Blue Caps e até aos Beatles.

A tendência retrô não se resume à retomada do rock ingênuo que revolucionou a música de massa no Brasil quatro décadas atrás. Alegorizando um reverso negro e sambista do bom moço Roberto Carlos, o compositor Jorge Ben (hoje Ben Jor) polariza essa pequena febre, atraindo outros tantos jovens rebeldes para sua obra.

Ben é o motor de Los Sebosos Postizos, que tocara dias antes no mesmo festival. O quarteto é, na verdade, parte da banda mangue bit Nação Zumbi, que sob a alcunha latina canastrona vem pinçar as músicas mais antigas e menos batidas do autor.

Em outros shows recentes em São Paulo, no projeto independente “2em1”, China em versão-solo e os meninos do Del Rey (que nas horas não vagas compõem a festejada banda recifense Mombojó) também costumam citar não só Jorge Ben (China canta Rosa, mas Que Nada, de 1967), mas outros nomes tão díspares quanto Martinho da Vila e Ronnie Von.

O músico e produtor Pupilo, dos Postizos, tenta decifrar por que os jovens têm se encantado mais por esses nomes que por ex-prediletos como Chico, Caetano ou Gil: “Acho que são artistas mais colados no inconsciente do povão. O apelo popular hoje em dia é muito vulgar, acho que esses caras levavam o popular a sério, falavam de modo direto, faziam as pessoas se identificarem”. Ele diz que Tim Maia, outro “popular sem ser apelativo”, poderia também ser alvo de algum tributo dos Postizos.

Exímio tecladista pop que atravessou a década de 60 vendendo milhares de cópias da série instrumental Lafayette Apresenta os Sucessos, Lafayette vinha tocando de rock a forró com seu conjunto de baile, em Niterói, para “público adulto, de mais de 40 anos”, até ser convidado pelo músico Gabriel Thomaz para tocar em sua festa de casamento. O contato culminou na formação de uma banda que demole conflitos de gerações, une teclados pop a uma parede de guitarras e dosa rebeldia rock’n’roll com bom-mocismo iê-iê-iê.

O inventor da sonoridade que com Quero Que Vá Tudo pro Inferno(1965) consagrou a Jovem Guarda manifesta seus receios e sua surpresa ao presenciar o reencontro entre a molecada e pai Roberto: “Quando vi no primeiro show todo aquele pessoal de 20 anos na platéia, tive dúvidas, achei que aquela garotada não podia gostar de Roberto Carlos. Mas tive uma enorme surpresa. A princípio, estranhei o volume alto deles, mas talvez a garotada goste exatamente pela maneira mais agressiva de tocar”.

Agressivos ao avesso, Los Sebosos Postizos optaram por convulsionar a alegria inerente à obra de Jorge Ben, transformando temas dançantes como Umbabarauma (1976) em peças soturnas, viajantes, quase mal-humoradas. O efeito é curioso: em seus shows sempre lotados, quase ninguém dança, mas nem por isso alguém arreda pé do salão.

O Del Rey consegue efeito contrário, transformando em festa-baile descontraída as lamúrias amorosas do “Rei”. China revela-se possuído no palco ao cavalgar, com idêntica seriedade bem-humorada, desde o romantismo roqueiro infanto-juvenil de Ninguém Vai Tirar Você de Mim (“o nosso amor é puro/ espero nunca se acabar“), de 1968, até a cafonice madura de Coisa Bonita (“coisa bonita, coisa gostosa/ quem foi que disse que tem que ser magra pra ser formosa?“), de 1993. E dirige provocação extra ao castelão MPB, encerrando o show com uma versão Jovem Guarda de O Pato, clássico da esnobe bossa nova na voz de João Gilberto.

Também inclinados à festa, Os Tremendões (que têm quatro vocalistas) alternam-se entre a interpretação racional de Renato Martins para o soul As Curvas da Estrada de Santos (1969) e a terna zombaria de Gabriel Thomaz na cafona O Portão (1974), aquela de “meu cachorro me sorriu latindo” – a platéia responde ao estímulo, latindo.

Aprofundam-se igualmente no apreço pela rebeldia envenenada de Erasmo Carlos (em Minha Fama de Mau, de 1965, ou Vem Quente Que Eu Estou Fervendo, de 1967) e pela ingenuidade desabalada de Wanderléa e Leno & Lilian (em Pare o Casamento e Pobre Menina, ambas de 1966 e ambas cantadas com doçura pela única menina do grupo, Érika Martins).

China conta que montou o Del Rey com o propósito único de reconquistar a namorada após uma briga, mas cai na real e vê o outro lado da moeda: “É tudo uma grande brincadeira, mas o Del Rey já está bancando minhas contas. Fizemos show para 800 pessoas, se fosse só eu não daria metade daquilo”.

Ele toca, assim, numa das outras possíveis chaves para entender esse pequeno levante, tanto em termos de comércio como de comunicação. A visita aos populares de ontem tem proporcionado a novos artistas um grau de diálogo que suas próprias canções não conquistam de modo tão rápido e direto.

Dizendo-se honrado por devolver Lafayette ao rock, Gabriel Thomaz opina: “Nossos projetos autorais sempre tiveram influências da Jovem Guarda. O diálogo com a massa já foi proposto, mas ainda não fomos ouvidos”.

Nessa forquilha encontra-se ainda um outro “revisor”, o cantor Wilson Simoninha, que acaba de gravar um DVD MTV Apresenta, reinterpretando ao vivo (e com lotação esgotada) só canções de… Jorge Ben, ele de novo.

“É claro que a MTV quer que seja um sucesso. Mas eles lançam 20 acústicos e eu só tenho a minha carreira. É um conflito para mim, mas também é legítimo e natural querer o sucesso, querer ser popular”, afirma o filho mais velho de Wilson Simonal, líder de popularidade há quatro décadas e depois transformado em maldito por razões extramusicais.

Ele se diz consciente de que saudosismo pode ser “ruim” para o atual pop nacional. Mas encontra no vínculo com seu pai já morto uma outra ponte. “Quando pedi autorização ao Jorge para o projeto, ele sugeriu que eu cantasse suas músicas que foram lançadas por Simonal. Acho que ele entendeu que era também um modo indireto de eu homenagear meu pai.”

Entre celebrações e conflitos, é notável que artistas muitas vezes colocados em segundo plano por serem populares demais ou até simplórios sejam evocados por jovens músicos, direta ou indiretamente, em razão do poder comunicativo que possuíam.

O desejo de superar uma época de “música impopular brasileira”, ainda que nostálgico, é comum a todos eles. China resume a ópera, brincando que sua meta “é tocar no especial de fim de ano do ‘Rei'”: “É lógico que quero ser reconhecido pelo que sou, mas o legal é que as pessoas estão me vendo, sabendo do meu trabalho. E eu estou até cantando melhor”.

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