Especialista em samba e romantismo, nossa mais completa cantora de jazz forra de sangue negro o repertório mais romântico de Roberto Carlos, em apresentação única, em São Paulo.   

 

Parecia uma impossibilidade lógica. Alcione é sambista, e Roberto Carlos tem implicâncias particulares com a cor marrom. Ainda assim, a mágica se fez: na quarta-feira que passou, num gigantesco teatro tipo bróduei em São Paulo, Alcione dedicou um show de arrepiar as mais gélidas espinhelas à obra romântica, jovem-guardista e gospel-católica de Roberto Carlos.

Roberto é o mais romântico de nossos intérpretes — a um só tempo, nosso Frank Sinatra e nosso Wando. Alcione é a mais completa de nossas cantoras de jazz — se fosse norte-americana, não se chamaria Clementina, Elza, Ivone ou Leci, mas Billie, Ella ou Sarah. Entre um extremo e o outro, o encontro aparentemente ilógico se completou. Tudo que há de suspiro contido nas interpretações de autor de Roberto para “Olha” (1975) ou “Falando Sério” (1977) foi transformado por Alcione em trovão de peito aberto, rasgado.

Em “Olha”, ela trouxe do âmago frases como “coisas que eu quis ser e não fui”, de tempos nos quais às mulheres negras brasileiros não era permitido ser senão sambistas. Âmago é um dos muitos tesouros dos quais Alcione não tem resquício de medo.

O que já era funk e soul nos originais de Roberto “Por Isso Corro Demais” (1967) e “Sua Estupidez” (1969) continuou black music na voz de Alcione, mas o que ainda não era também se transformou em samba-rock-soul de negona: “As Canções Que Você Fez pra Mim” (1968), “Detalhes” (1971), até mesmo “Emoções” (1981). Em “Como Vai Você” (1972), ela começou enganando com inesperada doçura, para logo explodir de excesso nalguma misteriosa mistura feminina entre Ray Charles, James Brown e Tim Maia. O que era contenção em Roberto virou entrega na garganta potentíssima de Alcione — mas será que uma já não é a outra, e vice-versa?

Da black-índia maranhense para o guarani kaiowa branquelo capixaba, quase dava vontade de pedir para que ela cantasse “Meu Ébano” (parceria de Paulinho Rezende com o black-jovem-guardista roberteiro Nenéo, que ela transformou em sucesso nacional em 2005): “Você é um negão de tirar o chapéu/ não posso dar mole senão você créu”. Roberto haveria de gostar, assim como haveria de também arrepiar a espinhela com esse show, se não estivesse, na mesma noite, cantando “Esse Cara Sou Eu” no ginásio do Ibirapuera.

Roberto à parte, a lulodilmista de carteirinha Alcione também tinha atenções voltadas para o cara que acha que Luiz Inácio Lula da Silva é “o cara”. Contou que havia levantado três vezes durante a madrugada, para checar se o negão de tirar o chapéu Barack Obama havia de fato sido reeleito nos Estados Unidos de cima. Manifestou alegria pela confirmação, mas não ingenuidade. Classificou Obama de “rico”. “Aquele ali nunca conheceu pobreza”, atestou, com autoridade. Roberto, ciumento e insatisfeito com apenas a alcunha de “Rei”, haveria de contestar: “Esse cara sou eu!”.

Alcione é uma mulher sem pudores. Bole com o público e deixa que o público bula com ela. Em metade do repertório, copia de fio a pavio a aventura da amiga Maria Bethânia com o repertório de Roberto, em 1993 — e supera com folga aquela que é sem chance de dúvida uma de nossas maiores cantoras de MPB.

Alcione é mulher que não se deixa intimidar por homem nenhum deste mundo — seja ele seu ébano, Lula, Obama ou Roberto. Católica, espírita, candomblezeira, evangélica, umbandista, ateia, entregou à tradicional família paulistana uma versão reverente de “Nossa Senhora” (1993), elegendo a mãe do “cara” em detrimento do clássico “Jesus Cristo” (1970) em pessoa.

Mas, sem falsos ou verdadeiros pudores, emendou “Nossa Senhora” imediatamente com um trecho curto de “Quero Que Vá Tudo pro Inferno” (1965), desterrada pelo “Rei” por questões de céu e inferno. Negra gata de arrepiar, ainda cometeu a traquinagem de misturar essa última com “Negro Gato” (1965), hit iê-iê-iê composto pelo negro gato Getúlio Côrtes, e com “O Calhambeque” (1964), roquinho de paquera que Erasmo Carlos emprestou de uns branquelos norte-americanos para dar a Roberto.

Meu calhambeque, bibi, charme pastoso na voz da deusa, despedidas: era chegada a hora do bis. “Gente, eu já estava de chinelo!”, zombeteou na volta, em clave 100% alcionista. De cara, avisou que canções do próprio repertório estavam vetadas — “este show é só de Roberto”. Rebelde desde criancinha, parte da tradicional família paulistana pediu mesmo assim canções da rainha, e não do rei. Alcione se autodesobedeceu e sapecou logo três, todas brega-jazz-romanticíssimas: “A Loba” (2001), “Se Não É Amor” (2005) e “Estranha Loucura” (1987).

Onde Roberto Carlos se despede jogando rosas à plateia, Alcione o fez recebendo dos fãs buquês vermelhos como a poltrona onde esteve sentada a maior parte do tempo. Manhosa, sabe como ninguém gemer pelo carinho da plateia: “Larga o meu corpinho, que não está no pacote”, reagiu a um grito de “maravilhosa!” ou adjetivo equivalente. A manha é justificada. Alcione sabe que é dona de uma das melhores vozes do mundo. Com um repertório desses, então, nossa senhora! Que o homenageado não se iluda: Alcione é o cara, Roberto.

 

O repertório

“As Canções Que Você Fez pra Mim” (1968), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos

“Olha” (1975), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos

“Falando Sério” (1977), de Maurício Duboc e Carlos Colla

“Você Não Sabe” (1984), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos

“Sua Estupidez” (1969), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos

“Como Vai Você” (1972), de Antonio Marcos e Mario Marcos

“Como É Grande o Meu Amor por Você” (1967), de Roberto Carlos

“Por Isso Corro Demais” (1967), de Roberto Carlos

“Detalhes” (1971), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos

“Café da Manhã” (1978), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos

“Emoções” (1981), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos

“Nossa Senhora” (1993), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos

“Quero Que Vá Tudo pro Inferno” (1965), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos

“Negro Gato” (1965), de Getúlio Côrtes

“O Calhambeque (Road Hog)” (1964), de Gwen Loudermilk e John D. Loudermilk, versão de Erasmo Carlos

Bis

“A Loba” (2001), de Paulinho Rezende e Juninho Peralva

“Se Não É Amor” (2005), de Luciana Browne e Carlos Colla

“Estranha Loucura” (1987), de Michael Sullivan e Paulo Massadas

 

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

 

P.S. do PAS às 19h14 de 12 de novembro: acabo de receber, atarantado, um telefonema de dona Alcione. Ligou para agradecer o texto acima – uma dama é uma dama é uma dama, não é mesmo, cavalheiros? 🙂 Fez só um não lá muito minúsculo reparo: quem ela disse que tem cara de rico e nunca conheceu pobreza não é Barack Obama, mas sim Mitt Romney – o equívoco desmorona um pedaço do argumento, mas é tarde para eu tentar remendar. Fiquem registrados, então, o meu erro não-reparável e minha contenteza pelo telefonema.

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